O BRASIL DA VACINA NÃO, CHACINA SIM


17/05/2021


Por Norma Couri, Diretora da Comissão de Inclusão Social, Mulher e Diversidade


Sem casa, sem trabalho, os 300 anos de escravidão terminaram com um despacho da princesa branca quando o Brasil era o último país do globo a manter a prática. Não foi um ato de benevolência. A escravidão era insustentável política e economicamente pela resistência dos escravos multiplicada por fugas, quilombos e revoltas, pela pesada campanha popular interna e pela pressão internacional. Nossa imagem estava manchada lá fora. Manter a escravidão ficou inviável. Esta semana o dia 13 de maio foi comemorado com camélias e 2 mil cestas básicas distribuídas na Favela do Jacarezinho pela Frente Nacional Antiracista. Mas bastava um olhar com atenção aos rostos dos chacinados em Jacarezinho na semana anterior para descobrir que todos os 27 mortos eram negros ou pardos. Na falta de nomes, as duas dúzias e meia de cadáveres eram identificados como homem negro I, homem negro II, e assim por diante, ou homem pardo I, homem pardo II e por aí vai. Caio da Silva Figueiredo tinha 16 anos, Jonathan Araujo da Silva, 19.

A pergunta é : quando a lei Áurea vai realmente vingar no Brasil se ainda permanecem as  dúvidas sobre a lei de cotas? Ela será revalidada para os próximos 10 anos, já que a avaliação é feita de 10 em 10 anos? Até hoje há dúvidas se a lei é social ou política, se ajuda ou incensa o racismo, se forma realmente novos profissionais ou desnivela o padrão das universidades.

Outra vez, basta um olhar com atenção para as algumas vítimas de Jacarezinho e ver os corpos dilaceradas e trocados de lugar. A falta de respeito com a pobreza e a negritude é brutal neste país, prova de que não será fácil acabar com a mentalidade escravocrata. Haja comemoração, mas nesses 133 anos da lei Áurea ainda não conseguimos libertar os escravos.

Racismo é um sistema de dominação, nem os policiais negros escapam da dominação dos policiais brancos. Como anunciar igualdade se o preconceito é grande e a desigualdade persiste em todos os segmentos da sociedade? Hoje a integração é uma tarefa inglória. Até o momento, mais de quatro séculos depois, os negros ocupam em mais de 80% as classes C, D e E.  Entre os negros, 67% ganham um salário mínimo, 50% vão de 1 a 5 salários. E apenas 13% ganham mais de 60 salários mínimos. É graças às cotas que 11% chegam à universidade , mas a grande maioria, quase 60% mal consegue concluir o ensino fundamental. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilio Contínua:Educação 2019 feita pelo IBGE concluíu que, dos 10 milhões de jovens que não terminaram o ensino médio, 70% são pretos ou pardos

O pior não é isso. A  Locomotiva Pesquisa & Estratégica revela que mais de 80% da população reconhecem o Brasil como um país preconceituoso. Mas só 4% admitem ter, eles próprios, preconceito racial. Nessa escala, são as mulheres que sentem mais o problema porque elas são as responsáveis pela família geralmente com pais ausentes, com a carga de trabalho e despesas dobradas.

A Enciclopédia Negra (Cia das Letras) de Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Moritz Scwarcz acaba de sair com 720 páginas e verbetes biográficos de personagens, muitos anônimos, que foram influentes no país onde 56% da população é considerada negra. Neste 13 de maio mais de 200 organizações do movimento negro brasileiro pediam o fim do racismo e do genocídio. O fim do mecanismo de controle social da atividade policial. No governo Bolsonaro essas organizações querem chamar atenção para o nível do genocídio negro promovido no Brasil, a violência e a falta de alimentação nesta pandemia. As estatísticas revelam que 75% dos atos violentos do país estão focados na população negra. Agora o Brasil está trocando a vacina pela chacina. Tanto tempo depois do decreto da princesa, isso constitui crime contra a humanidade, sim.