Monopólio da força


03/07/2008


Colaboração de Altamir Tojal, jornalista e escritor

Há tiros e mortos todos os dias no Rio de Janeiro, mas não se declara guerra.
 À sombra do poder, o crime não pára de avançar e o Estado, de recuar. A cada
 dia, mais um pedaço do território é ocupado e mais uma parte da população é 
subjugada e deixa de viver sob a democracia.

A manchete do principal jornal do Rio de Janeiro e um dos mais importantes do País diz: “Grupos ilegais de segurança se espalham pela Zona Sul”. Estamos no último domingo de junho de 2008. A novidade que sustenta a notícia é a generalização, na região mais rica da cidade, da chantagem e da venda de proteção à população por grupos armados, ou seja, a expansão das chamadas milícias, que há tempo disputam território e poder com os traficantes de drogas nos morros, favelas e bairros pobres.

Dez dias antes, O Globo publicara, na coluna de Merval Pereira, um comentário sobre a tese do economista Sérgio Besserman de que a causa central do quadro dramático da violência na cidade é a inexistência do monopólio da força pelo Estado em áreas crescentes onde governam grupos de traficantes e de milicianos. Vale ler a coluna. Mostra que, embora carentes de serviços públicos, muitas das áreas dominadas pelo poder paralelo do crime são tão ou mais bem servidas e assistidas pelo Estado, em termos de educação, saúde e saneamento, que diversos municípios e mesmo outros bairros da cidade. A tese destoa, como se vê, do diagnóstico generalizado de que a grande causa da violência incontrolada na cidade é o abandono, por sucessivos governos, dos bairros mais pobres e das favelas. Besserman é pessoa bem qualificada para falar do tema. Foi Presidente do IBGE e hoje dirige o Instituto Pereira Passos, da Prefeitura do Rio. Para ele, o principal serviço público negado a essas populações é a segurança.

Democracia cancelada

Falar do monopólio da força pelo Estado parece coisa de conservador. Também pode parecer extemporâneo. Não é uma coisa nem outra. Quando o Estado não exerce o monopólio da força em seu território, abre-se espaço para que outros entes se imponham pela violência, cerceando liberdades fundamentais, como o direito de ir-e-vir e de se manifestar, como ocorre aqui e agora, nas áreas dominadas pelo crime no Rio de Janeiro, com populações submetidas a toques de recolher e ameaças permanentes à integridade física e à própria vida. O acesso de autoridades e serviços depende de permissão dos bandos. O mesmo ocorre com os candidatos a cargos eletivos, o que significa intervenção no direito de voto. A lista de violações e abusos é extensa. Até a imprensa discute se pode ou não enviar jornalistas a estas áreas, depois dos casos de assassinato e tortura de repórteres.

Estado e antipoder

Se o Estado nacional é hoje acossado por poderes globalizados, isso não significa que possa deixar de cumprir suas obrigações perante a população, exercendo o monopólio legítimo da força. Este dever é um dos fundamentos da idéia do Estado moderno, ressaltado de Maquiavel a Hobbes e Weber. Marx desvelou a lógica da dominação na idéia de Estado e preconizou que a saída definitiva dos conflitos e injustiças sociais seria a sociedade sem Estado. Pode ser, mas quando? Os governos ditos de orientação marxista não deixaram de exercer o monopólio da força, abusaram disso e foi aí que mais tropeçaram. Gramsci trouxe o conceito de Estado ampliado. Mesmo reflexões contemporâneas sobre o poder formuladas por pensadores como Foucault, Deleuze, Hardt e Negri parecem não conduzir a proposições que descartem o Estado na configuração que conhecemos. As noções de revolução subjetiva e antipoder, inspiradas nessa base conceitual e em movimentos como o zapatismo lançam mais perguntas que respostas.

E se os problemas e injustiças sociais exigem ações decisivas e urgentes, não é a ausência da autoridade do Estado que vai viabilizá-las. Estamos longe, no Brasil de hoje, de uma situação em que a insurreição armada seja a única instância de reivindicação e oposição ao poder. Também não vivemos nada parecido com uma estrutura ditatorial ou oligárquica que justifique movimentos como o brigantaggio (Itália, século XVIII) ou o cangaço no Nordeste brasileiro, em que banditismo e revolta social podiam se confundir.

Pobres e ricos

Não é de hoje que Besserman expõe a idéia de que a vitória sobre a violência no Rio passa pela reconquista do monopólio da força pelo Estado nas áreas dominadas pelo crime, geralmente onde vivem populações pobres. Mas cabe indagar se o domínio do crime se restringe somente a essas áreas.

Besserman acredita que o Estado ainda exerce o monopólio da força nas partes ricas do Rio, e dá o seguinte exemplo na entrevista a Merval: “Se amanhã o Novo Leblon ou o Jardim Pernambuco fossem tomados por um bando qualquer, uma milícia ou o tráfico, no dia seguinte estava todo mundo lá: Exército, Marinha, Aeronáutica, Polícia Federal e Polícia Civil. E não seria para acabar com o tráfico, mas para libertar o território, proteger os cidadãos, garantir que ali o Estado tem o monopólio da força.”

Talvez sim. Mas seriam as mesmas tropas que garantiam as obras do Projeto Cimento Social, no Morro da Providência?

Império da corrupção

Aquela manchete dominical do Globo parece prenunciar que mesmo o território dos bairros mais ricos da cidade começa a ser conquistado pelo crime, com o conseqüente enfraquecimento do poder do Estado e todas as decorrências já conhecidas nas áreas mais pobres. Se isso ainda não é ostensivo nas ruas e praças da Zona Sul, é realidade há muito tempo no medo, nas precauções e nas restrições a que se impõe a população. Sabemos que a violência acontece, com tanta ou mais eficácia, de formas mais sutis que a mira de uma arma.

Não bastasse a ocupação do território físico da cidade por traficantes e milícias, há a ocupação do território simbólico pelo império da corrupção em palácios, gabinetes, parlamentos e tribunais, que abonam a permissividade com o crime e fomentam o processo que subtrai do Estado o monopólio da força.

A Colômbia será aqui?

Não há como evitar uma aproximação entre o que se passa no Rio de Janeiro e o caso da Colômbia, onde a nação encontra-se há décadas fissurada pela violência, que envolve o tráfico de drogas e outros crimes, o paramilitarismo e a guerrilha. São dois processos distantes na origem e nos desdobramentos, mas têm em comum exatamente a perda progressiva do monopólio da força pelo Estado.

Lá, este processo tem origem em acontecimentos políticos do fim da década de 40, que inauguraram um longo período de insurreições, deflagrando a guerrilha. Recorro ao texto “Do monopólio legítimo da força às dificuldades encontradas pelo Estado contemporâneo: o caso da Colômbia”, de autoria de Cesar Dutra Inácio, pesquisador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente, da Faperj. Equívocos por parte do Estado colombiano, incentivando o armamento de cidadãos particulares para enfrentar a guerrilha, permitiram a formação de grupos paramilitares, o que acentuou ainda mais o quadro da violência no país.

À privatização da guerra interna juntou-se a degradação estatal, com a corrupção policial incentivando a elite a investir em segurança privada. Em 1968, o Governo legalizou a formação de organizações mercenárias. Hoje, o Estado colombiano não exerce o monopólio da força em amplas áreas de seu território. O narcotráfico é o fio condutor de todo o emaranhado de violência na Colômbia, envolvendo a guerrilha e paramilitares. E confere um cunho internacional ao problema interno, ou seja, mais um elemento que afeta o Estado, mas está fora de sua esfera de controle.

É claro que o Brasil não é assim. E no Rio de Janeiro a história é outra. Não há insurreição nem guerrilha. O processo aqui é sutil. Trocam-se tiros e há mortos todos os dias, mas não se declara guerra. À sombra do poder, rua a rua, praça a praça, o crime não pára de avançar e o Estado, de recuar. A cada dia, mais um pedaço do território é ocupado e mais uma parte da população é subjugada e deixa de viver sob a democracia.