‘Eu sou poesia, rima, leveza; e você é fuzil’


25/10/2022


Por Walter Casagrande Junior, em Folha de São Paulo

Dia desses, recebi de uma amiga um vídeo do jornalista musical Gilvan Moura, do canal do YouTube Pitadas de Sal. Ele lê um texto de autoria desconhecida que descreve a perda de uma amizade não por divergências políticas, mas sim pela distância de ideais, questões de princípios e valores que determinam quem é quem dentro de uma sociedade.

O texto se chama “Amizades” e lista várias diferenças de escolhas. “Eu sou Renato Russo, Cazuza, Caetano e Chico; você é Amado Batista e Roger Moreira.” “Eu sou dos livros, revistas, jornais, noticiário, e você é das fake news.” “Eu sou pela democracia; você, pela ditadura.” “Eu sou paz, você é teoria de conspiração.”

“Eu sou universidade; você é corte de verba.” “Eu sou caridade; você é dízimo.” “Eu sou Pepe Mujica, Luther King, Nelson Mandela, John Lennon; você é Hitler.” “Eu respeito hospitais, e você acha normal uma invasão a eles.” “Eu sou Paulo Freire, e você é Olavo de Carvalho.”

“Eu sou pelo coletivo, por justiça social, bolsa, auxílio, e você apoia privilegiados.” “Eu sou fauna e vida; você é caça.” “Eu sou coragem, e você é covardia.” “Eu acredito na moral das fábulas, e você acredita em kit gay nas escolas.” “Eu acredito no espírito, em vida além da terra, e você é pena de morte.” “Eu sou poesia, rima, leveza, e você é fuzil.”

“Eu sou mato, bicho, verde, floresta, sombra; você é fogo, trator e tora.” “Eu sou todas as cores, e você tolera racismo.” “Eu sou Mário Sergio Cortella, e você é Ustra.” “Eu sou Frida, cores e flores; você é Damares.”

“Eu sou pelo amor; você fortalece a homofobia.” “Eu sou pela evolução, e você, pelo retrocesso.”

O texto se encerra com um agradecimento: “A nossa amizade acabou porque eu respeito todas as religiões e sou cristão; você apenas finge ser um, mas obrigado por me ajudar a me conhecer e também a reconhecer”.

Agradeço por esse texto, que me inspira a traçar outros parâmetros para entender a distância existente entre quem vota de um lado e quem vota do outro.

Eu, por exemplo, sou por Richarlison e Paulinho, enquanto você é por Robinho, condenado por estupro na Itália, e Bruno, mandante de assassinato.

Eu sou por mim, Raí, Juninho Pernambucano; você é por Neymar, Thiago Silva e Felipe Melo.

Eu torço por Carol Solsberg, Isabel Salgado, e você, por Ana Paula Henkel e Maurício Souza.

Eu sou Fernanda Montenegro e Bruna Marquezine; você, Regina Duarte.

Eu sou padre Júlio Lancellotti, e você é Kelson, Kelmo, ou qualquer coisa assim.

Eu sou pelo pastor Henrique Vieira; você acende vela por Silas Malafaia e Magno Malta.

Eu sou pelo empresário Guilherme Leal, da Natura, que defende a educação; você, pelo Luciano Hang, que quer demitir professores.

Eu sou Michelle Obama; você, Michelle Bolsonaro.

Eu sou Silvio Almeida; você, Sergio Camargo.

Eu sou Marina Silva; você, Ricardo Salles.

Eu sou pelos povos indígenas; você é garimpo.

Eu sou floresta; você é pasto.

Eu sou Eduardo Suplicy; você, Roberto Jefferson.

Essas são algumas das muitas diferenças que fazem a gente perder uma amizade. Não tem a ver com opção política. E tem zero a ver com o time do coração ou a religião.

Quando os dois lados têm acesso à informação e estão cientes de quem defende o quê, todas essas distâncias resumem o abismo entre princípios e valores de um e do outro.