A tortura, essa praga que paira sobre nós


19/10/2020


Por Álvaro Caldas

Envelhecemos sim, mas não a ponto de esquecer que um dia entramos de capuz num dos Doicodis da vida e tivemos um Ustra pela frente. Ora, Mourão, cinismo não combina com verdade e História. Ustra e seu exército macabro violaram as leis e merecem repúdio. Tortura é crime inafiançável

Com o elogio da tortura e a reverência a seu principal praticante na ditadura, o general Hamilton Mourão, vice-presidente desta ofendida e resignada República, trouxe novamente à tona essa história de terror, assassinatos e desaparecimentos de pessoas que permanece insepulta. O coronel Brilhante Ustra foi um agente da morte e do Estado que cometeu crimes imprescritíveis. Chamá-lo de um homem honrado que respeitou os direitos humanos “constrange a Nação e desonra as Forças Armadas”. E, sobretudo, agride a dignidade e a memória dos que padecerem em suas mãos, como denunciou a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns.

Faço parte de uma geração que envelheceu com essas marcas no corpo e na alma. Talvez a primeira na história que tenha passado, em seu conjunto, por uma experiência desta magnitude na pátria amada e torturada Brasil. Centenas de jovens que um dia, no início dos anos 70, foram levados para quartéis militares com um capuz enfiado na cabeça. Enfrentaram a nudez e a solidão de uma sala onde não havia lei muito menos honra. Foram chantageados e torturados por homens fardados, empregados do Estado, que manejavam máquinas, fios, cavaletes, seus coturnos e outros instrumentos soturnos para provocar dor e obter uma confissão. Os “honrados” capatazes da família Ustra. Registro que não vi nem tive notícia de nenhuma mulher entre os seus integrantes.

Os que sobreviveram, envelhecemos. Enlouqueceram alguns, o alcoolismo perturbou a vida de outros. Houve os que se mataram. Alguns morreram precocemente de câncer, enfrentaram o mal pelo Parkinson, o Alzheimer e um variado cortejo de sequelas e desajustes que incluem os amorosos, afetivos e filiais, na conturbada relação pais e filhos. Foram buscar apoio no consultório de um psicanalista.

Envelhecemos sim, mas não a ponto de esquecer que um dia entramos de capuz num dos Doicodis da vida e tivemos um Ustra pela frente. Ora, Mourão, cinismo não combina com verdade e História. Ustra e seu exército macabro violaram as leis e merecem repúdio. Tortura é crime inafiançável.

Num angustiado ensaio escrito em meio ao espanto e à indignação provocados pela revelação dos porões da guerra da Argélia, Sartre advertiu que “a tortura não é civil nem militar, nem tampouco especificamente francesa, mas uma praga que infecta toda nossa era”. Naquele momento, entre l957 e 1958, os franceses tomaram conhecimento de que o Exército francês e as forças policiais da colônia empregaram sistematicamente a tortura no enfrentamento aos rebeldes argelinos. Houve uma comoção. A França levantou-se, indignada.

Não tivemos no Brasil essa comoção, um movimento de repúdio à praga da tortura, porque não se deu à opinião pública informações sobre a profundidade da infecção. A sociedade transitou da ditadura para a democracia mantendo em seus postos no executivo, legislativo e nas Forças Armadas os responsáveis o pelo regime de arbítrio, com a colaboração da imprensa, que silenciou e não assumiu suas responsabilidades. As bandeiras de denúncia, os cartazes com os mortos e desaparecidos, o grito de Tortura Nunca Mais, ficaram nas mãos de entidades de anistia, mães, avós, filhos e netos. A sociedade não discutiu o alcance da tortura, não passou a limpo a História. Por isso, a repete.

A família Ustra no trabalho 

Cena 1 ‒ Durante os primeiros dias, Juliano viveu numa espécie de estado de coma permanente, como se estivesse numa Unidade de Tratamento Intensivo, torturado sem trégua o tempo todo. Perdeu os sentidos em diversos momentos, pensou que fosse morrer. Conheceu a perversão da tortura em seus mínimos detalhes. Viu despejarem baldes de água em seu corpo dependurado para aplicação de choques elétricos. E descobriu que havia uma sofisticação metodológica na aplicação dos choques. 

Um dos fios desencampados preso no dente e o outro amarrado no saco era o preferido do tenente Correia Lima. Mas havia uma modalidade pior, defendida pelo capitão Duque Estrada. Com os fios amarrados nos dois mindinhos, o choque é mais intenso, corre o corpo inteiro, ensinava o especialista em comportamento humano. Tinha razão o filho da puta. A descarga elétrica de mais de 100 volts transita instantaneamente por todos os nervos do corpo, dos pés à cabeça, provocando uma contração violenta e dolorosa.          

Cena 2 ‒ O capítão Gomes Carneiro despacha a testemunha. Apertando um lábio contra o outro, dá um soco na mesa, impaciente. Cobra de Santiago um nome, que ele volta a negar. Com a voz trêmula, explica que não sabia os nomes dos caras que ficaram em sua casa. Todos clandestinos. O capitão vira-se para um tenente da equipe e determina: “Traga a suíte quebra nozes! Vamos partir para os choques”.       

O estudante tremeu. O capitão deu uma gargalhada. “Vou te dar uma chance.” Puxou um maço de cigarros do bolso da camisa. Um maço vermelho, com tarjas em azul e branco, símbolo da aventura e do sucesso nos comerciais da década de 70. O tenente se adiantou para acender o Hollywood do chefe, que aspirou com vontade a fumaça da primeira tragada. E disse em tom de intimidação: “Assim que eu acabar de fumar este cigarro, você vai me revelar o paradeiro desse sargento que dormiu em sua casa. Ou volta para a porrada, te devolvo pro Zamith”.          

Santiago viu o cigarro queimar lentamente entre os dedos do oficial, a fumaça se espalhar em círculos em torno da mesa. Tentou entender que espécie de homem tinha à sua frente. De repente, beirou o absurdo ao desejar que o cigarro daquele filho da puta tivesse filtro. Pelo menos ia demorar um pouco mais para chegar ao fim.          

Cena 3 ‒ Nas madrugadas em que não tinham o que fazer, os oficiais divertiam-se com as prisioneiras. São machões, sádicos e misóginos. Chamam uma a uma para conversar, às vezes juntam duas ou até mais, formam um grupo. Numa noite, o capitão de cavalaria João Gomes Carneiro reclamou de Mariana, de seus gritos exagerados quando ela estava dependurada. Queria silêncio. Depois repreendeu e xingou Maruza, que não o avisou de que estava menstruada. Restos de sangue que ficaram na cadeira onde ela foi interrogada mancharam a capa do major de cabelos ruivos. Na fronteira de um mundo violento e sem lei, onde torturam e matam, ele se preocupa em preservar sua limpeza. Precisa sair limpo e imaculado para o jantar em casa com a família.

Cena 4 ‒ Novamente só neste cárcere, esfrego a mão sobre os olhos como se precisasse acordar, e sinto o tecido dolorido e inchado. Eis que de novo me sobressalto com o barulho do ferrolho da porta sendo retirado. São várias as vozes que ouço agora, vozes diferentes que determinam a colocação do capuz, que me empurram. Pressinto que esta não é uma visita de rotina, pode ser que agora o mistério se resolva. Uma voz mais forte, uma voz de comandante desta nave espacial, determina que levantem o meu capuz e eu me vejo frente a um homem alto e forte, de ombros largos, lábios grossos, que me olha com a autossatisfação de me ter sob seu inteiro domínio, tendo a seu lado uma meia dúzia de professores-torturadores subalternos. 

Ele move zombeteiramente os lábios grossos e pergunta, apontando para os meus olhos: “O que fizeram com este rapaz?” É ele mesmo que responde, já completando o sorriso sarcástico: “Ah, já sei, foi um Fenemê que passou sobre sua cabeça”. E o Fenemê faz uma rápida manobra, engrena uma primeira e segue com o seu sorriso zombeteiro, com seu poder absoluto, à procura de novas mutilações. O atropelado no caso sou eu mesmo e o homem-Fenemê é o general Adir Fiúza de Castro, então comandante do Codi, integrante da honrada família do coronel Brilhante Ustra. Os trechos em itálico foram tirados de meu livro Estação Doicodi, inédito.