Os segredos da propaganda anticomunista


11/04/2011


A contra-ofensiva do Governo britânico contra a influência soviética na América Latina, durante o período da Guerra Fria (1947-1991), é o tema do livro “Segredos da propaganda anticomunista”, do jornalista Geraldo Cantarino, lançado recentemente pela editora Mauad.
 
 
O livro de Cantarino é o resultado de uma extensa pesquisa realizada no Arquivo Nacional britânico (The National Archives) sobre a atuação no Brasil do Departamento de Pesquisa e Informações (Information Research Department – IRD na sigla em inglês), cuja missão principal era a de coordenar a política do Governo britânico contra o avanço soviético e a propaganda comunista.
 
 
Na introdução do livro, o próprio autor explica que este é resultado da continuação de um levantamento que ele fez sobre correspondências diplomáticas do Governo britânico enviadas ao Brasil, que originou a publicação do livro “1964 — A revolução para inglês ver”, lançado em 1999, no qual Cantarino apresenta uma análise de centenas de documentos confidenciais e mensagens “urgentes sobre o golpe de 1964”.
 
 
Cantarino diz que, à época, o que lhe chamou a atenção foi não ter encontrado nenhum material jornalístico ou acadêmico sobre as intervenções do IRD no Brasil:
— O que me despertou o interesse pelo assunto foi o fato de não ter localizado nenhum livro, reportagem ou trabalho acadêmico sobre as operações secretas do IRD no Brasil. Percebi que tinha em mãos um material inédito e revelador de ações sigilosas realizadas no País por mais de 20 anos. Uma história que precisava ser contada, explica o autor.
 
 
 
Presença sistemática
 
 
 
Geraldo Cantarino disse que o que ficou impressionado com o volume de ações do IRD no âmbito da política anti-soviética:
— Eu percebi que a atuação do IRD foi sistemática. O órgão iniciou suas atividades na América Latina logo após a sua criação, em 1948, a atuou até meados da década de 1970. A presença na região seguia o modelo internacional de atuação do Departamento, que consistia de tradução e distribuição de material de propaganda para a imprensa, publicação de livros e realização de contatos com pessoas e organizações em cada país, disse o autor.
 
 
Segundo o autor, os alvos da propaganda eram selecionados de acordo com a sua capacidade de influenciar a opinião pública dos países onde a mensagem deveria ser divulgada. Preferencialmente, eram pessoas estabelecidas no poder e aquelas com potencial para assumir funções importantes nas esferas administrativa, acadêmica e de grande influência na sociedade:
— O IRD procurava atrair professores universitários, estudantes, líderes sindicais e pessoas com possibilidades de ingressar na política no futuro. O objetivo da operação era realizar, secretamente, uma ampla e constante campanha anticomunista e monitorar ações associadas ao comunismo, reunindo informações e inteligência, afirmou Cantarino.
 
 
O jornalista disse que esse trabalho era executado localmente por oficiais especialmente treinados e lotados em missões diplomáticas, como Embaixadas, Consulados e escritórios de representação, que se encarregavam de relatar com regularidade suas atividades para os dirigentes do IRD em Londres.
 
 
 
Estratégia política
 
 
De acordo com historiadores, a Grã-Bretanha foi o primeiro país a desenvolver uma estratégia política para conter a propaganda comunista. No período imediatamente posterior ao fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), os britânicos estabeleceram uma frente ideológica destinada a combater o comunismo no campo da Guerra Fria.
 
 
Entre 1945 e 1951, a propaganda anticomunista deixou de ser um complemento da política externa para se transformar em uma arma estratégica da Grã-Bretanha contra a influência soviética, que vinha ganhando corpo em vários países do mundo.
 
 
Em 1948, o Governo britânico lançou uma nova propaganda política criada “para se opor à invasão do comunismo” vindo mais tarde a atuar em estreita cooperação com os Estados Unidos.
 
 
Em 1950, o Governo do Presidente norte-americano Harry Truman lançou a chamada “Campanha da verdade”, criada para desqualificar os movimentos pela paz lançados pelos militantes e dirigentes comunistas, em várias regiões do mundo, com o objetivo de “salvaguardar a paz mundial” (Saeculum — Revista de História [17]; João Pessoa, jul/dez. 2007).
 
 
Uma crítica direta ao estatismo soviético, a “Campanha da verdade” foi um apelo de Truman aos veículos de imprensa mundiais, para que fossem “derrubadas as barreiras que impediam as comunicações livres no mundo”, como mostra um artigo publicado em O Jornal, em abril de 1950.
 
 
A mensagem de Truman — muito bem absorvida pelos jornais brasileiros, entre os quais O Jornal — era de que o chamado mundo livre deveria se articular em uma “campanha pela verdade contra a propaganda russa”. À época, o Presidente dos Estados Unidos disse o seguinte: “Se não conseguirmos fazer chegar histórias genuínas aos outros países, perderemos, por falta de ação, a batalha pela conquista da mentalidade humana”.
 
 
 
Material inédito
 
 
O ineditismo do conteúdo do material encontrado por Cantarino no Arquivo Nacional britânico é que torna o seu livro um documento de extrema relevância para o estudo da História Contemporânea.
 
 
O trabalho do jornalista contribui para o entendimento da geopolítica adotada pela Grã-Bretanha no período em que o mundo estava dividido em dois blocos: um de influência da antiga União Soviética; e outro no qual prosperavam as normas de segurança nacional “sugeridas” pelos britânicos e pelos Estados Unidos a seus aliados, como é o caso da maioria dos países sul-americanos, inclusive o Brasil.
 
 
Outro aspecto que faz do livro de Cantarino uma leitura recomendada é o fato de que revela um lado pouco explorado da propaganda anticomunista no período da Guerra Fria, ou seja, a participação dos britânicos nesse processo, por meio do IRD. É um documento raro em meio a dezenas de estudos sobre o anticomunismo disponíveis no Brasil, que abordam preferencialmente a atuação dos Estados Unidos.
 
 
Como já foi citado acima o mais comum é que a memória da Guerra Fria indique os Estados Unidos como os mentores e maiores operadores da política anticomunista que se desenvolveu nesse período. Cantarino explica por que os britânicos são menos citados e qual é a diferença de comportamento em comparação aos norte-americanos:
— Os britânicos são menos citados porque optaram, desde o início, pela produção de conteúdo anticomunista e realização de operações psicológicas encobertas, tanto na Grã-Bretanha como no exterior. Todo esse trabalho era feito de forma não atribuível, ou seja, sem nunca revelar a fonte, disse Geraldo Cantarino.
 
 
Documentos secretos
 
 
O autor explica que a confidencialidade era defendida entre os oficiais do IRD, para evitar que o Governo britânico fosse acusado de intervir em assuntos internos de outros países. Essa estratégia era usada também para superar diferenças partidárias dentro do próprio Reino Unido. A preocupação inicial, segundo o autor, era de que a União Soviética não fosse alertada e não lançasse uma contra-ofensiva:
— Os estrategistas do Foreign Office, o Ministério das Relações Exteriores britânico, temiam que uma ofensiva abertamente anticomunista lançada pela Grã-Bretanha pudesse provocar uma “reação violenta por parte dos russos”. Como chegou a ser descrito, “o sigilo obsessivo do IRD tinha como fim manter a sua existência oculta do público e do Parlamento britânico, além de minimizar os elos entre o governo e sua propaganda velada”, afirmou.
 
 
Ele disse que essa “atuação silenciosa”, ao contrário da estratégia mais direta do Governo norte-americano, “oferecia melhor trânsito diplomático e vantagens nas relações internacionais com outros países”.
 
 
De acordo com o pesquisador, existem dois outros importantes fatores que não podem ser desprezados: além de interesses econômicos, o volume de recursos que os Estados Unidos dedicaram à causa anticomunista, que foi muito superior ao empregado pela Grã-Bretanha.
 
 
 
No Brasil, conforme documentos do IRD produzidos entre 1963 e 1964, a Igreja Católica e os jornais figuram como importantes na lista dos setores mais visados pelo órgão para espalhar a sua propaganda anticomunista. De acordo com um relatório do oficial do IRD, Robert Evans, o trabalho da Igreja Católica era “provavelmente o mais importante e o que tinha mais chances de obter continuidade e eficácia no país”.
 
 
O livro revela que entre os contatos de Robert Evans na Igreja Católica figurava o então Diretor do Instituto de Estudos Políticos e Sociais da PUC-RJ, Padre Fernando Bastos de Ávila, S.J.
 
 
A seguir reproduzimos um documento de Evans sobre o seu contato com o padre: “Tive várias reuniões com o padre Ávila, S.J., diretor do Instituto de Estudos Políticos e Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e, desde abril, vice-reitor. Ele recebe remessas regulares da material do IRD e solicitou traduções da série Anatomy of Communism e de outra publicação. Em mais de uma ocasião, mostrou-se decepcionado por não oferecermos material em português. Ele é ativo nos bastidores com organizações anticomunistas, incluindo a recentemente formada ‘Aliança Eleitoral pela Família’, sobre a qual relatei separadamente.”
 
 
 
 
Segundo Geraldo Cantarino, em 29 de novembro de 1962, Robert Evans escreveu um comunicado ao IRD em Londres, dizendo que o momento era favorável para fossem enviados ao Brasil dois ou três empresários britânicos, para realizar palestras “para um público de alto nível”. Evans inclusive sugeriu o nome de algumas entidades onde deveriam ser realizadas as palestras: Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (Adesg), universidades, Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e Instituto Rio Branco (IRBr).
 
 
O motivo da realização das palestras Robet Evans explicou no documento enviado ao escritório do IRD, em Londres: “O objetivo, obviamente, é organizar palestras que exponham as falácias da ideologia marxista, os perigos da subversão comunista e as ambições imperialistas do bloco sino-soviético, apresentando, simultaneamente, os argumentos em favor dos valores ocidentais e das vantagens de nossas instituições britânicas”.
 
 
 
Outro documento secreto, expedido em 1964, assinado por um diplomata britânico, descreve os objetivos e alvos do IRD na América Latina e sintetiza, em sua conclusão, a extensão do problema, a influência dos Estados Unidos e a importância da região na batalha anticomunista durante a Guerra Fria. Veja o que diz o documento: “Os EUA já estão investindo muito esforço e dinheiro no continente, que é sua preocupação especial. Temos prioridades em outros lugares do mundo em que os interesses britânicos são mais diretos”.
 
 
 
 
Mídia e propaganda
 
 
Geraldo Cantarino fez uma análise sobre o papel da imprensa brasileira como veículo da propaganda anticomunista. O autor diz que os veículos nacionais “beberam nessa fonte”, mas não foram os únicos. Ele destaca que o grande volume de material impresso pelo IRD alimentou a imprensa em todo o mundo, “que tinha dificuldade de acesso a informações sobre a União Soviética e o Leste europeu”.
 
 
À época Guerra Fria a União Soviética era liderada por Joseph Stalin, que exercia um rígido controle sobre as comunicações. Ao abordar esse contexto, Cantarino lembra o livro que o jornalista John Jenks escreveu sobre a mídia britânica no período da Guerra Fria, em que afirma que “o bloco do Leste estava virtualmente fechado para contatos significativos com indivíduos do mundo não comunista”: 
— As visitas eram poucas, os encontros eram coreografados e a verdadeira interação era praticamente inexistente. Assim, indaga Jenks, “onde é que jornalistas, políticos, funcionários do governo, acadêmicos e outros líderes de opinião poderiam buscar informações seguras?” Na ausência de alternativas, o IRD do Foreign Office supria essa lacuna, disse Cantarino.
 
 
No exercício dessa função o IRD procurava agir com discrição, principalmente para manter as aparências de que a sua atuação era legítima. Segundo Cantarino, a base factual da maior parte do trabalho do IRD aparentava estar de acordo com as normas anglo-americanas de “facticidade e objetividade”. Com isso, o órgão aparentava ser apenas mais uma fonte de informação de credibilidade, “com seus ensaios, artigos para a imprensa e outras publicações”.
 
 
Para o leitor ou ouvinte menos atento — disse Geraldo Cantarino — o material produzido pelo IRD apresentava, aparentemente, uma visão imparcial ou autêntica sobre fatos relacionados ao comunismo internacional e à própria União Soviética:
— Na verdade, tratava-se de uma literatura habilmente elaborada sub-repticiamente por escritores e jornalistas britânicos, com a ajuda de tradutores imigrantes e refugiados políticos de países da chamada Cortina de Ferro. O acervo em Londres contém várias listas sobre a publicação de material britânico na imprensa do Brasil ao longo de mais de 20 anos, afirmou.
 
 
 
Conteúdo anticomunista
 
 
A pesquisa de Geraldo Cantarino verificou que cerca de 50 jornais brasileiros, de diferentes Estados do País, publicaram conteúdo anticomunista distribuído pelo IRD, por intermédio da Embaixada britânica no Rio de Janeiro, na década de 1950.
 
 
Segundo o jornalista, entre os diários que mais publicaram o material produzido pelo IRD figuram o Jornal do Paraná, Jornal de Joinville, A Notícia (Joinville), Jornal do Brasil, O Globo, O Estado do Pará, A Tarde (Curitiba) e Correio da Noite (Rio de Janeiro):
— O Jornal do Brasil, por exemplo, chegou a publicar três textos fornecidos pelo IRD em uma mesma edição. Em 27 de dezembro de 1955, o jornal reproduziu os seguintes artigos: “Um significado de amizade”, “Problemas da população da China” e “Rublos contra religião”.
 
 
Geraldo Cantarino disse que as relações do IRD com veículos de comunicação brasileiros “foram estendidas e aprimoradas” na década de 1960. O oficial do quadro especial do Foreign Office, Robert Evans, era o responsável por fazer contato direto com diretores de jornais no Rio de Janeiro.
 
 
O relatório anual de atividades do IRD de 1963 mostra que Evans funcionava na Embaixada britânica, e que um dos executivos de jornal com quem ele se encontrava era o Vice-presidente do JB, Manoel Francisco do Nascimento Brito.
— De acordo com o oficial britânico, o Jornal do Brasil cooperava efetivamente em expor a verdadeira natureza e o propósito do movimento comunista mundial e era o melhor veículo para a propaganda do tipo “positiva” e “construtiva”, considerada a mais apropriada para as condições do Brasil naquele momento, disse Cantarino.
 
 
O pesquisador observa que no mesmo relatório de 1963, Robert Evans também comentou que o Estadão, em textos próprios, sempre publicava notícias desfavoráveis à causa comunista, além de críticas às influências socialistas no Brasil.
 
 
A seguir reproduzimos trecho do relatório de Robert Evans encontrado por Geraldo Cantarino: “O seu editor internacional e um dos seus principais redatores, ambos excepcionalmente bem informados em ideologias e assuntos internacionais, são leitores apreciadores dos documentos do IRD”, relatou o oficial britânico.
 
 
 
Jornalismo contaminado
 
 
 
Afinal qual seria a verdadeira função do IRD? Órgão responsável pela organização e veiculação da propaganda anticomunista do Governo britânico, ou, a partir das suas relações com a mídia, assumiu o papel de autêntico gerenciador de notícias?
 
 
Geraldo Cantarino disse que o jornalista inglês David Leight foi quem resolveu a charada. Em 1978, ele foi um dos primeiros a escrever reportagens no The Guardian sobre a atuação do IRD, mostrando que o órgão tinha uma função que ia além da missão de frear a propaganda soviética, ao tornar-se “um instrumento de gerenciamento de notícias”.
 
David Leigh escreveu que com essa atuação o IRD “contaminou os poços do jornalismo” e enganou “as pessoas que liam livros e jornais (e, em alguns casos, até mesmo aquelas que escreviam para essas publicações) sobre o que estava acontecendo no mundo”.
 
 
Geraldo Cantarino disse que a maior contribuição que o seu livro traz para o estudo do anticomunismo brasileiro é a revelação, pela primeira vez, da abrangência das atividades do IRD no País.
 
 
Segundo o jornalista, por meio da documentação consultada é possível entender como o Governo britânico atuou no Brasil, aliado ao bloco liberal que formou a cruzada anticomunista durante a Guerra Fria:
— Livros, revistas, folhetos, boletins, artigos, charges e conteúdo radiofônico foram especialmente produzidos, compilados e distribuídos pelo IRD em território brasileiro, como parte de uma campanha internacional direcionada, principalmente, a países do Terceiro Mundo, disse o jornalista.
 
 
Para o autor de “Segredos da propaganda anticomunista”  as correspondências e relatórios reunidos no livro demonstram como o IRD operou secretamente no Brasil por mais de duas décadas; quais foram os seus principais contatos em organizações civis, acadêmicas, religiosas e governamentais; e como conseguiu, por tanto tempo, inserir centenas de artigos, habilmente escritos e cuidadosamente distribuídos, na imprensa brasileira:
— As revelações dessa pesquisa suscitam a reflexão sobre parcialidade da imprensa e informação/formação da opinião pública. É mais uma lição do passado que pode colaborar na interpretação de fatos contemporâneos, afirmou Geraldo Cantarino.