Milton Santos, um santo que só falava palavrão dedicou sua vida ao Correio da Manhã


17/01/2022


Por Alcyr Cavalcanti, conselheiro da ABI e presidente da ARFOC.  Curador da série “fotógrafos brasileiros”.

Milton Santos ou Milton Palavrão era uma figura marcante. Foi cria e chefiou a derradeira fase de um dos mais importantes jornais de nossa história, o Correio da Manhã. A relação do Clã Bittencourt com seus empregados era uma relação familiar. Paulo mandou construir apartamentos para seus funcionários, para ter sempre a mão e solicitá-los a qualquer hora do dia ou mesmo da madrugada. Eram pequenos apartamentos duplex na Rua do Lavradio, nos fundos do Correio, que ficava na Avenida Gomes Freire. Milton sempre dizia que fazia parte da família. De baixa estatura, muito forte se gabava de sua macheza, em uma época que era uma virtude, embora exagerasse nos atributos masculinos com sua voz grave e suas atitudes extremamente viris. Vivia para o “seu jornal “, era madrugador, acordava bem cedo e por volta de oito horas adentrava a redação, que já tinha um número considerável de jornalistas e dizia sua saudação matinal que ficou para as memórias do Jornalismo: “Em primeiro lugar um bom dia e em segundo lugar, quero que todo mundo Vá pra Pu** que o Pa**, que eu vou também”. Depois dessa saudação exótica ele se retirava às gargalhadas para seu domínio, a Fotografia onde viveu anos e anos. Nos anos 60 e início dos anos 70, onde passei a trabalhar no Correio, eram poucas mulheres na redação, as poucas eram do Segundo Caderno como Germana Delamare, Gisele Porto entre outras e o nosso chefe moderava o palavreado depois da chegada das meninas em um determinado horário.  

(O texto continua abaixo das fotos)

 Leila Diniz e Brigitte Bardot

Milton Palavrão era muito emotivo, talvez aquela aparente grossura  fosse para esconder sentimentos que na época seria taxados de “frescura”. Compartilhava com seu grupo das alegrias e das tristezas que viriam no decorrer da jornada. O Correio teve durante muitos anos um ícone da Fotografia, Luiz Bueno Filho, que fez fotos históricas de Getúlio Vargas, Santos Dumont, mas tinha a seu lado para “conduzir a tropa” Miltinho, como Seu Bueno gostava de chamar para por ordem na casa. Sua esposa Dona Ilka, sabia das estrepulias de seu marido e às vezes vinha trazer o almoço e no final um remedinho para poder controla-lo. Era muito solidário, um exemplo de fraternidade, cultivava o hábito do novato ao entrar para a gloriosa equipe do Correio, pagar um churrasco para o grupo, uma forme de construir amizades. Ele fazia questão de comandar a farra.. Parte do salário ia embora na comilança, mas era uma festa. Mas como sempre havia exceções, como JM,  ótimo fotógrafo mas que era muito econômico, e arranjou mil e uma desculpas para não ir à tradicional baderna mensal, Miltinho não gostou nem um pouco, ficou muito ressentido e custou a assimilar o golpe. O colega em questão era irmão mais novo de  outro fotógrafo que anos atrás fez questão de pagar a esbórnia e ainda deu gorjeta bem gorda. Coisas de família. Mas nem tudo era festa, já no final, na época dos “Irmãos Bobagem” um fotógrafo, com alguma experiência estava por lá a cobrir férias, era assim o início, se corresse tudo certo poderia ser contratado, afinal eram doze fotógrafos e haveria sempre férias a cobrir. O pagamento das férias não veio e Milton convenceu todos da equipe a ceder uma parte do salário para ajudar o colega nas dificuldades. Todos contribuíram, menos o “mineirinho” que fugiu da comilança e claro saiu da “vaquinha solidária”. 

Teve brilhante carreira como repórter-fotográfico, tinha muita sensibilidade e muita coragem, e também gostava de fotografar a beleza feminina, fez fotos esplêndidas de várias beldades, podemos citar Leila Diniz e Brigitte Bardot que ele considerava “meio branquela e muito magrinha. Quanto à bela Leila, mais do que sua beleza adorava o palavreado, dizia que o palavrão na boca de mulher bonita era o máximo. Milton gostava mesmo é das belas passistas das Escolas de Samba, com suas curvas e a pele aveludada. Como não conseguiu um espaço, nem dinheiro para montar um estúdio fotográfico, resolveu o problema no prédio do jornal, improvisava fotos das beldades na parte de cima do prédio, onde ficava uma enorme caixa d’água e as caixas de força, dos elevadores e da eletricidade. Com a chegada da Ultima Hora que ocupou o prédio e se juntou ao Correio em uma só firma ( que acabou não dando certo) os fotógrafos, seis da Ultima Hora e seis do Correio da Manhã formavam uma só equipe para servir aos dois diários. Ultima Hora de estilo mais popular tinha a coluna do Roy Sugar, “o príncipe da madrugada” que sempre publicava mulheres de biquíni, ou sem ao estilo Play Boy. Milton orientava, à sua maneira, os jovens fotógrafos preferencialmente, as melhores poses. Sua pose predileta era a mulher meio de cócoras, para ele a “posição de defecar” (posição de cagar no dialeto Miltinho), que nem sempre dava certo. Fui designado e arduamente orientado, era uma passista em ascensão recomendada pelo príncipe Roy. Era de fato muito bonita, com muitas curvas. Milton que sempre subia para dar instruções teve a ideia de dizer que ela se bronzeava na piscina do príncipe da madrugada, e mandou um contínuo comprar um óleo de bronzear para a bela passista esfregar no corpo para realçar as formas e desceu para as reuniões na redação. Fiquei animado, então peguei um balde de água enchi e joguei no corpo da jovem e comecei a clicar ao estilo Blow-Up. No auge da sessão a jovem se animou (eu também) e começou a dançar no parapeito do telhado e começou a tirar uma peça do minúsculo biquíni, animada por um coro expressivo do prédio em frente que urrava “Tira tira”. Só que eram doze andares sem proteção e poderia haver uma queda fatal. Tive um lampejo de realidade e pedi para a bela descer e continuarmos as fotos com mais calma. Por sorte ou talvez pela repercussão da gritaria da vizinhança que delirava chegou um contínuo com a ordem expressa de acabar com sessão fotográfica. A jovem, meio alterada queria que eu e o contínuo jogássemos baldes d’água para tirar o excesso de óleo, mas fomos impedidos, dois taludos seguranças vieram dispostos a acabar com a farra, de qualquer forma. Durante um tempo as fotos ao estilo Play Boy passaram a ser trazidas pelas próprias modelos. A “piscina do príncipe da madrugada” teve de fechar.

O tempo passa de maneira inexorável  e a decadência física do nosso  herói acompanha a decadência e o consequente fechamento do Correio da Manhã. Miltinho fica sem chão e começa a depressão, não faz aquelas entradas triunfais na redação, não tem hora pra chegar, sai da chefia que agora é exercida por um fotógrafo da Ultima Hora, Paulo Reis. Paulo trata Miltinho com delicadeza, resolve aproveitá-lo na função de auxiliar, mas somente até o meio dia. Passa a ser apenas uma peça decorativa, um ambiente de incertezas começa a pairar em todo o jornal, somente seis fotógrafos vão ser aproveitados na Ultima Hora, a mudança para um prédio na Rua Equador será em breve, seis profissionais e o Miltinho ficarão abandonados. O ambiente é de um velório, as conversas nos bares próximos terminaram, as brincadeiras cessaram e até as fotografias marcantes que sempre foram a marca do jornal não mais existiam. Mas, como sempre resta uma esperança, um dos diretores da Ultima Hora tem um rompimento como Ary de Carvalho e funda um jornal, com um nome ousado Estadão, e contrata vários jornalistas que saíram do Correio após seu fechamento em 1974. Miltinho é convidado e aceita  chefiar o departamento fotográfico. O sorriso e os palavrões voltam a dominar a pequena redação do Estadão. A aventura dura muito pouco. Meses depois o novo jornal vai falir e deixar todos ao desamparo. Miltinho não resiste a dois golpes seguidos em tão pouco tempo. Começa a ter problemas cardíacos e um enfarte o deixa totalmente inválido e sua voz possante não existe mais. Fui visitá-lo algumas vezes, ficou às lágrimas com a nossa presença, falava com muita dificuldade, estava de fato nas últimas, desgostoso com a extinção do “seu jornal”, a quem tinha dedicado toda sua vida. Milton Santos partiu, suas brincadeiras, seus palavrões, seus esporros não mais seriam ouvidos, ficou apenas uma lembrança e muitos ensinamentos que deixou para seu filho Pami de Souza, que deu seus primeiros cliques no sexto andar da Gomes Freire e depois de algum tempo foi ser editor de Fotografia da Folha de São Paulo.. Salve Miltinho Palavrão que dedicou sua vida à nobre arte da Fotografia.