Violação de direitos humanos não impediu o Reino Unido de fortalecer relações com o Brasil durante a ditadura, revela livro de Cantarino


13/11/2023


Em 20 de dezembro de 1971, o embaixador britânico no Brasil, Sir David Hunt, consultou o Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido se não teria chegado a hora de propor ao Brasil uma visita de Estado ao Reino Unido. A proposta seria em retribuição à visita da rainha Elizabeth II ao Brasil, em 1968.

No entanto, o embaixador sabia de antemão que a ideia do convite precisaria ser ponderada diante da repercussão internacional da repressão no Brasil e, por isso, não seria bem recebida por setores da sociedade britânica. “Compreendo que a reputação brasileira na Europa Ocidental esteja arranhada no momento por alegações de tortura em prisões políticas e talvez ainda pelas histórias de genocídio de indígenas da floresta”, escreveu Hunt.

A sugestão do embaixador foi analisada por John Hunter, chefe do Departamento de América Latina do Ministério das Relações Exteriores britânico. Apesar de o Brasil ser, na época, o maior parceiro comercial britânico na América Latina, e de haver interesse em manter e fortalecer essas conexões, o clima naquele momento não foi considerado o mais propício. “O subsequente surto de atividade de guerrilha urbana, com as resultantes acusações generalizadas de tortura e maus-tratos de prisioneiros políticos, não fornece as melhores condições para uma visita de reciprocidade”, avaliou Hunter.

Entretanto, havia uma outra visão dentro do ministério britânico de que o Reino Unido tinha mais a ganhar com o Brasil do que com qualquer outro país da América Latina. Em carta ao embaixador Hunt, em 5 de janeiro de 1972, o secretário-geral do ministério, Sir Denis Greenhill, defendeu a possibilidade da visita. Para ele, o risco de uma publicidade negativa em função do tratamento de presos políticos no Brasil não deveria influenciar a posição do Reino Unido em relação à proposta de visita.

Nesse sentido, as preocupações políticas, como críticas ao governo britânico por estreitar laços com um regime ditatorial, não precisariam ser vistas como um impedimento a possíveis ganhos comerciais que uma visita de Estado pudesse oferecer. Essa visão de Greenhill acabou prevalecendo no núcleo decisório do governo britânico.

A proposta de estender o convite ao Brasil seguiu em banho-maria até o general Ernesto Geisel despontar no horizonte, em junho de 1973, como o provável futuro presidente do país. Diplomatas britânicos viram em Geisel o perfil ideal para o arriscado e complexo projeto, que levaria três anos para se concretizar: a primeira visita de Estado de um presidente brasileiro à Inglaterra.

Em 29 de agosto de 1974, cinco meses e meio depois de sua posse, Geisel fez o pronunciamento político mais importante desde que assumira a Presidência. Afirmou que sua missão era a de promover “o máximo de desenvolvimento possível – econômico, social e também político – com o mínimo de segurança indispensável”.

O incipiente “discurso da distensão” ou “abertura política” era exatamente o que os diplomatas britânicos precisavam ouvir naquele momento para justificar, perante o governo e a opinião pública no Reino Unido, uma visita de Estado do presidente Geisel a Londres. Para eles, a simples sinalização rumo a uma “normalização” – especialmente na esfera dos direitos políticos e liberdades civis – era mais significativa do que ações concretas na direção de um afrouxamento das rédeas autoritárias.

Ao mesmo tempo, organizações no Reino Unido continuavam a denunciar as graves violações de direitos humanos no Brasil e a fazer campanhas pela restauração dos direitos civis no país. Em julho de 1974, a Anistia Internacional publicou a segunda edição do Relatório sobre Alegações de Tortura no Brasil, lançado originalmente em setembro de 1972. O relatório apresentou um histórico de cada vítima, indicou os locais onde ocorreram as torturas e descreveu as técnicas utilizadas. “O Brasil é quase um exemplo clássico de um país em que a tortura se tornou um instrumento institucional de terror”, afirmou a publicação.

Em outubro de 1975, o ministro brasileiro das Relações Exteriores, Antônio Francisco Azeredo da Silveira, assinou em Londres um memorando de entendimento, que criava um mecanismo permanente de consultas entre os dois países, principalmente nas áreas de política e economia. Durante a visita oficial, o chanceler brasileiro reuniu-se com o primeiro-ministro britânico, Harold Wilson, em Downing Street, sede do governo britânico. O assunto mais importante desse encontro foi a confirmação do convite ao presidente Geisel para visitar o Reino Unido no ano seguinte. Três dias depois, o jornalista Vladimir Herzog, 38 anos, diretor de Jornalismo da TV Cultura, foi torturado e morto no DOI-Codi de São Paulo, órgão de repressão do exército brasileiro. O caso Herzog, um dos mais documentados do período, comoveu o país, representou um marco na resistência contra a repressão e ganhou repercussão internacional.

A visita de Estado do presidente Geisel a Londres estava sendo articulada, portanto, em um contexto em que a violação de direitos humanos durante a ditadura ganhava grande evidência e provocava repúdio, tanto diante da brutalidade do regime quanto pelas tentativas de ocultação de crimes cometidos por agentes do Estado.

Formalmente, a viagem presidencial seria em retribuição à visita da rainha ao Brasil, realizada um mês antes da decretação do AI-5 (Ato Institucional nº5). Essa visita constituiu um fator determinante que levou o governo brasileiro a encomendar navios de guerra, submarinos, helicópteros, armamentos e munições de empresas do Reino Unido na década de 1970.

O sucesso comercial, resultante da viagem da monarca, tornou-se um motivo significativo para considerar uma visita de reciprocidade. De acordo com documentos oficiais, o propósito principal da visita de Geisel foi o de assegurar maior acesso da indústria britânica aos grandes projetos industriais e de infraestrutura, que faziam parte dos planos nacionais de desenvolvimento do Brasil.

No entanto, a questão da violação dos direitos humanos na ditadura brasileira permaneceu um ponto central em todo o processo de preparação e realização da visita. Quando a proposta de convite começou a ser ventilada, organizações de defesa dos direitos humanos desempenharam um intenso trabalho de denunciar, tanto na esfera do governo britânico como na imprensa, as violações que estavam ocorrendo no Brasil.

Como previsto, a visita de Geisel recebeu duras críticas, sendo considerada “controversa”, “polêmica” e um “erro moral”. Foi alvo de moções no Parlamento britânico, boicotes de deputados e ministros, manifestações de repúdio, protestos públicos e artigos desfavoráveis na imprensa inglesa. Até mesmo a Executiva Nacional do Partido Trabalhista britânico, que estava no poder, afirmou que o presidente jamais deveria ter sido convidado.

Por outro lado, diplomatas, políticos, empresários, industriais, associações comerciais e investidores colocaram pressão no governo britânico para que a visita fosse adiante. Ao final da visita de Estado, foram assinados dois memorandos de entendimento relacionados à participação britânica na construção da usina siderúrgica da Açominas e na Ferrovia do Aço. Ao longo dos anos, os dois projetos resultaram em enormes desperdícios de recursos públicos para o Brasil.

O processo de decisão e formalização do convite, que culminou na realização da visita de Estado é reconstruído em detalhes, com base em extensa documentação diplomática, no livro Geisel em Londres: A visita de Estado em 1976 e a questão dos direitos humanos, do jornalista Geraldo Cantarino, que está sendo lançado pela editora Mauad X.

“O livro de Geraldo Cantarino é uma análise meticulosa e devastadora dos bastidores diplomáticos, políticos e econômicos da visita do presidente de uma ditadura militar a uma das democracias mais antigas do mundo”, escreveu a jornalista inglesa Jan Rocha, ex-correspondente da BBC no Brasil, no prefácio do livro. “Ele revela todos os detalhes do minueto que foi cuidadosamente dançado pelos diplomatas e membros de vários governos britânicos para contornar as crescentes denúncias de violações de direitos humanos no Brasil e não atrapalhar os potenciais contratos milionários, trazendo encomendas e empregos para a indústria britânica, que uma bem-sucedida visita poderia produzir”, afirmou Jan Rocha.

O livro – que antecipa as reflexões mais amplas sobre o golpe civil-militar de 1964, que completará 60 anos no próximo ano, e as profundas marcas da ditadura no Brasil contemporâneo – será lançado nessa segunda-feira (13) na Blooks Livraria, em Niterói, a partir das 17h30.