11/01/2010
A tortura não é crime político; portanto, não poderia ser alcançada por qualquer lei ou Constituição, afirma o Professor Lenio Streck, mestre e doutor em Direito, em entrevista concedida por e-mail ao site da Universidade Federal do Vale dos Sinos–Unisinos, de Santa Catarina, “No caso da Lei da Anistia – diz Streck –, será ilegal, nula, qualquer interpretação que estenda os seus efeitos para além daquilo do que nela está previsto: a anistia aos crimes políticos.”
Pós-doutor pela Universidade de Lisboa, docente do curso de Direito da Unisinos, membro da Comissão Permanente de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros e Presidente de Honra do Instituto de Hermenêutica Jurídica, o Professor Lenio Streck respondeu assim às questões que lhe foram propostas pelo IHU On-Line:
“Nenhuma lei pode proteger de forma deficiente ou insuficiente os direitos humanos fundamentais”, assegura Lenio Streck, prof. do PPG em Direito da Unisinos. Como tortura não é crime político, explica, não pode ser alcançada por qualquer lei ou constituição. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, reitera que o problema acerca da Lei da Anistia está na sua interpretação, que “deu azo a que se considerassem, indevidamente, anistiadas todas as pessoas que participaram das ações contra e favor do regime”. E continua: “Se o Brasil se comprometeu a punir com rigor a tortura, seria incoerente que aprovasse uma lei ‘inocentando’ aqueles que praticam esse tipo de crime”.
IHU On-Line – A comunidade jurídica apresenta divergências no que se refere à revisão da Lei da Anistia. Em que consistem tantas oposições, e como o senhor as percebe?
Lenio Streck – Antes de tudo, parece que as divergências se dão principalmente em razão da visão de mundo de cada um. Misturam-se, inclusive, as concepções pessoais com a análise jurídica (algo como “esquerda” e “direita” do Direito). Mas não deve ser assim. Por isso tem razão Ronald Dworkin, jurista norte-americano, cujas posições se aproximam das de Gadamer – com as quais concordo -, para quem os argumentos no Direito devem ser de princípio, e não de política (ou de moral). Não importa a concepção moral que o juiz tem sobre determinada matéria; pode importar para ele (e, com certeza, importa), mas isso não significa que ele possa colocá-las acima da Constituição.
De todo modo, ultrapassada essa discussão, as diferenças se localizam no alcance da lei que concedeu a Anistia. Para a maioria dos juristas, não é possível rediscutir os efeitos da lei, porque isso violaria o princípio da reserva legal. Ou seja, para os defensores de um Direito Penal clássico (de feição iluminista ou até mesmo pós-iluminista), o Direito deve ser utilizado apenas para proteger o “débil” contra um Estado “mau”. Além disso, os tratados internacionais, para a corrente contrária à punição da tortura (nos termos da discussão posta), não se aplicariam ao caso brasileiro. É possível até que alguns juristas, no íntimo, sejam a favor da punição. Entretanto, um eventual apoio à tese da reavaliação da lei de anistia para punir torturadores poderia colocá-los em contradição, exatamente em face da predominância, no Brasil, das teses que fundamentam – ainda – um classicismo penal. Adianto, aqui, minha posição, no sentido de que tais concepções estão equivocadas e desfocadas do Estado Democrático de Direito, em que até mesmo o Direito Penal deve ser utilizado para a transformação da sociedade.
IHU – A Lei da Anistia, no concerne à absolvição de torturadores, pode ser considerada legitima?
STRECK – Penso que nenhuma lei poderia considerar a tortura como crime político, implícita ou explicitamente. A Lei nº 6.683/79 concedeu anistia apenas aos crimes políticos; a tortura ficou efetivamente fora do seu alcance; o art. 8 do ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) não concede anistia a qualquer atitude violadora dos direitos humanos; as leis 9.140 e 10.559 não dizem respeito ao “apagamento” de crimes que não os de índole política. Ou seja: como a tortura não é crime político, não poderia ser alcançada por qualquer lei ou Constituição. Mas, mais do que isso, nenhuma lei pode proteger de forma deficiente ou insuficiente os direitos humanos fundamentais. O Estado Democrático de Direito tem o dever de proteger os direitos dos cidadãos, tanto contra os ataques do Estado como dos ataques dos demais cidadãos. No Direito Constitucional do segundo pós-guerra denominamos isso de Schutzpflicht. No caso, a Lei da Anistia, se interpretada no sentido de que poderia englobar a tortura, violaria o princípio da proibição de proteção deficiente, que os alemães chamam de Untermassverbot. Sendo mais claro: o Estado deve proteger os direitos humanos de forma adequada. Assim, mesmo um acordo ou um pacto não podem acarretar/ratificar essa deficiência na proteção. Em termos hermenêuticos, uma lei pode ser nula, ilegal ou inconstitucional, por várias razões. Se ela for excessivamente rigorosa, ela pode estar violando o princípio da proteção de excesso (Übermassverbot). Por exemplo, se o Brasil aprovasse uma lei prevendo uma pena mínima de 10 anos para quem furta. Essa lei seria inconstitucional. Já se a lei for deficiente, ela pode ser, neste aspecto, nulificada.
Mas veja-se o caso sob discussão: a Lei da Anistia sequer necessita ser declarada nula, porque, afinal, ela jamais englobou os torturadores. O que é nulo, defeituoso em termos jurídicos, é a sua interpretação e o alargamento de seus efeitos, é dizer que a eficácia da Lei foi para além de seu conteúdo semântico aceito pela tradição (no sentido gadameriano da palavra). Fizeram com a Lei da Anistia e as leis subseqüentes o que estas não previam.
Mesmo que a Constituição atual seja posterior à Lei de Anistia, isso não significa que o Parlamento brasileiro poderia ter aprovado qualquer tipo de lei que protegesse deficientemente ou insuficientemente os direitos humanos das vítimas do regime militar. Os limites já estavam lá, conforme se pode ver nos tratados internacionais dos quais o Brasil era firmatário, naquela época. Logo, se o Brasil se comprometeu a punir com rigor a tortura, seria incoerente que aprovasse uma lei “inocentando” aqueles que praticaram esse tipo de crime (que, insista-se, não é crime político). Tão importante é essa questão relativa à força dos tratados internacionais na ordem interna, que o Supremo Tribunal Federal há poucos dias utilizou-se das regras da Organização das Nações Unidas de tratamento de prisioneiros para a regulamentação do uso de algemas, inclusive com a edição de Súmula Vinculante. Assim, a interpretação – que acabou vencedora durante todos esses anos – de que a Anistia abrangeu também a tortura fere o princípio da proibição de proteção deficiente (Untermassverbot), na sua combinação com o dever de proteção (Schutzpflicht).
Para se entender melhor, é fácil dar um exemplo: pensemos em uma lei que descriminalize o homicídio ou o estupro. Essa lei pode ser aprovada por ampla maioria, sancionada pelo presidente, enfim, estar totalmente de acordo com as formalidades constitucionais. Mas, fatalmente, será inconstitucional, por proteger insuficientemente bens jurídicos fundamentais, como a vida, no caso do homicídio, ou a dignidade da mulher, no caso do estupro. Assim, a lei, por si só, já seria inconstitucional; mas uma eventual aplicação dessa lei (por exemplo, se ela fosse considerada “legítima” por alguns tribunais) seria inconstitucional do mesmo modo. A lei pode ser inconstitucional, e a sua interpretação também o pode.
No caso da Lei da Anistia, será ilegal, nula, qualquer interpretação que estenda os seus efeitos para além daquilo do que nela está previsto: a anistia aos crimes políticos. Portanto – insisto –, nem é necessário “bulir” com a lei; o problema está na sua “generosa” interpretação, que deu azo a que se considerassem, indevidamente, anistiadas todas as pessoas que participaram das ações contra e a favor do regime.
IHU – O que significa e qual a importância de reabrir a discussão em torno da Lei da Anistia, 30 anos depois?
STRECK – Não se trata de reabrir a discussão. Ela sempre esteve aí. Não devemos temer esse debate, porque ele, a todo tempo, deve significar uma espécie de “blindagem” contra regimes autoritários. Ao falar do velho, conservamos vivas as possibilidades do novo.
IHU – A interpretação da Lei da Anistia é competência do Judiciário ou do Executivo?
STRECK – Dos dois e também do Legislativo. Mas, fundamentalmente, a questão – se é que será reavaliada – passará pelo Poder Judiciário, como ocorreu na Argentina, onde foi declarada a nulidade da Lei da Obediência Devida, exatamente porque esta havia anistiado aqueles que praticaram a tortura. A Suprema Corte contrapôs à Lei da Obediência Devida os tratados internacionais firmados pela República argentina. E veja-se que um dos componentes do Tribunal é um dos mais importantes penalistas do mundo, Eugênio Raúl Zaffaroni. Portanto, para aqueles que acham que uma eventual punição aos que praticaram tortura no Brasil fere o princípio da anterioridade da lei penal ou outro princípio constitucional, basta examinar os argumentos desse prócer do penalismo mundial. Ninguém melhor do que Zaffaroni, pelas suas posições históricas a favor de um Direito Penal de garantias, para medir a intensidade da necessidade de o Estado intervir, mesmo que anos depois, para anular leis aprovadas indevidamente (no fundo, é a tese adotada pela Suprema Corte argentina: a de que a Lei da Obediência Devida protegeu de forma deficiente os direitos humanos, beneficiando quem não podia ser beneficiado).
IHU – O senhor disse que a Lei da Anistia comprometeu os direitos humanos quando permitiu a aplicação da tábula rasa, não separando o joio do trigo. Se a lei fosse revista, como seria possível essa separação? Torturadores e guerrilheiros seriam julgados de maneiras diferentes?
STRECK – A Lei da Anistia e as subseqüentes não falaram em anistiar qualquer ato de tortura; apenas abrangiam crimes políticos. O que falei, em outra entrevista, é que o problema se deu na aplicação “tábula rasa”, aí sim misturando o joio e o trigo. Conseqüentemente, em muitos casos, beneficiamos o joio. Veja-se que a questão das reparações veio apenas anos depois da Lei de 1979 (ressalvo aqui minhas críticas a alguns exageros ocorridos nos valores de algumas indenizações).
Com relação à segunda parte da pergunta (punição aos guerrilheiros), a Lei nº 9.140 deixa claro que o regime militar não era um Estado de Direito. Este é o ponto fulcral da discussão.
Conseqüentemente, era lícito lutar contra o establishment. E a própria Lei estabelece que serão indenizadas todas as pessoas que, de um modo ou de outro, lutaram contra o regime e por ele foram perseguidos, presos ou mortos. Se não havia Estado de Direito, todos os que lutaram contra esse “Estado de coisas” estavam em legítima defesa, para usar uma figura do Direito Penal.
IHU – O esquecimento da barbárie pode promover sua reprodução no futuro? Vivemos hoje, no Brasil, os reflexos da impunidade desse período?
STRECK – Talvez inconscientemente estejamos sendo reféns desse “olhar generoso” que fizemos com a Lei da Anistia, permitindo isso que chamo de interpretação tábula rasa. Por que reféns? Porque não estamos conseguindo punir os crimes que colocam em xeque os objetivos da República. É visível que não estamos “querendo” usar o Direito Penal para “jogar duro” com a delinqüência “asséptica” (colarinho branco etc.). Vejam as leis aprovadas nos últimos anos: “alçamos” o crime de fraude à licitação a crime de “menor potencial ofensivo” (paga-se cesta básica); na mesma linha, consideramos mais grave o ato de subtrair galinhas (quando praticado por duas pessoas) do que as condutas consubstanciadoras de crimes como a lavagem de dinheiro e de delitos contra as relações de consumo e o sistema financeiro; também construímos uma benesse para os sonegadores de tributos – que, de certa forma, transforma a sonegação fiscal em uma rentável “aposta sem riscos penais” -, bastando o pagamento do valor desviado para que o crime se esfumace (lembremos como Marcos Valério se safou recentemente). No Brasil – e repito isso há 20 anos –, “la ley es como la serpiente; solo pica a los descalzos” (frase de um camponês salvadorenho). Pudera: predominantemente, o ensino jurídico continua manualesco. A indústria que mais cresce é a dos “manuais jurídicos”. Já se vende Constituição em quadros sinópticos. E nos aeroportos.