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O repórter que não se achava jornalista


30/04/2007


Ele se autodefinia empresário ou comerciante, mas era um tremendo repórter 

Por Clóvis Rossi, colunista da Folha e sócio da ABI*

Octavio Frias de Oliveira foi o empresário mais jornalista que jamais conheci, mais jornalista de verdade que muito jornalista diplomado. Era como empresário ou, às vezes, como comerciante que se autodefinia, sempre que as personalidades que visitavam a Folha — e não foram poucas, de todas as cores e de todos os calibres — o chamavam de “doutor” ou o tratavam de jornalista. “Não sou doutor, não sou jornalista”, reagia, no jeito direto e franco de ser.

Mas era, sim, jornalista, um tremendo repórter, como fui descobrindo rapidamente nos exatos 20 anos de convivência praticamente diária e próxima, a partir do instante em que ele e seu filho, Otavio, diretor de Redação, me convidaram para escrever a chamada “coluna São Paulo”, da página 2 da Folha, pouco depois da morte de Cláudio Abramo, em 1987. 

Antes, conheci uma outra faceta que me conquistou de imediato. Comecei na Folha em 1980, no exato momento em que a extrema-direita cometia atentados a bomba contra bancas de jornal, escritórios de oposicionistas e até a Ordem dos Advogados do Brasil, no Rio de Janeiro.

Escrevi, apenas semanas depois de contratado, um texto em que dizia que, se se quisesse chegar aos autores, bastava bater às portas do DOI-Codi, o coração do sistema repressivo montado no regime militar (no ano seguinte, o atentado frustrado ao Riocentro provou que a informação era corretíssima).

Na noite em que o texto foi publicado, “seu” Frias telefonou para minha casa, me oferecendo refúgio em sua granja de São José dos Campos. Contou que a reportagem provocara muito ruído e que talvez fosse prudente asilar-me por uns dias. Preferi ficar em casa, mas me surpreendeu um patrão, tido como duro e inflexível, dar-se ao trabalho de tentar proteger um funcionário que ele nem sequer conhecia pessoalmente e que havia acabado de começar na empresa que ele comandava. 

Proteção que continuou ao longo do tempo. Sei, por terceiras pessoas, jamais por ele, que houve várias queixas a meu respeito por parte de autoridades (algumas até amigos pessoais dele). Jamais me transmitiu uma só que fosse.

Durante a ditadura Pinochet, por exemplo, sei que funcionários diplomáticos chilenos mais de uma vez estiveram na Folha para reclamar. A única vez em que ele se manifestou sobre os constantes textos que fazia sobre o Chile foi para dizer que estivera no País e não vira exatamente o que eu estava relatando. Mas, acrescentou, “você é livre para escrever o que viu”.

E continuei escrevendo o que estava vendo.

Muitos anos depois, Fernando Henrique Cardoso, já ex-Presidente, contou que desistira de reclamar do jornal para o seu “publisher”, embora fosse muito amigo dele: “Com o Frias, não adianta reclamar”.

Já o repórter Frias revelou-se, inicialmente, num “furo” célebre, o de descobrir que o mal que levara o Presidente Tancredo Neves ao hospital, na véspera da posse, era um leiomioma (um tumor, portanto) e não uma diverculite, como foi anunciado oficialmente.

Alguns dos repórteres da própria Folha que acompanhavam o caso em Brasília acharam que era imprudência o jornal sair com a manchete anunciando o leiomioma. Era “furo”, não era imprudência.

Em outro momento, o repórter Frias passou pela minha salinha no nono andar do prédio da Folha e comentou: “Fulano me disse que um diretor do Banco Central está caindo. Vamos apurar”.

Não vou contar quem era o “fulano” porque é, ainda hoje, figurão importante na República. Como era raro que “seu” Frias me contasse a fonte de uma informação sigilosa ou de bastidor que recebia — e recebia-as por quilo —, imediatamente comentei com ele: “Não é um diretor, é o Presidente do BC que vai cair” (o Presidente era Gustavo Franco, aquele que torrou bilhões de dólares das reservas brasileiras para defender um valor irreal para o real ante o dólar).

Passei a tarde e parte da noite telefonando para todas as pessoas que pudessem ter alguma informação. O horário de fechamento da edição nacional já havia passado, todos os demais ocupantes do nono andar já haviam ido embora, e eu não tinha nada. Até que “seu” Frias saiu de sua sala, com aquela sanha de repórter de filme de antigamente, com a confirmação: “O Gustavo já está até limpando as gavetas. Você pode fazer o texto?”.

Fiz. Mas confesso que, como o pessoal que cobria a internação de Tancredo Neves, tinha um certo medo de que a informação fosse exagerada, prematura. Tanto que a principal decorrência da queda de Gustavo Franco — o fim do câmbio fixo — foi tratada em apenas uma linha da notícia, sem o aprofundamento.

Outro episódio envolvendo o Banco Central ocorreu no governo Sarney. Eu tinha a informação de que o Brasil transferira suas reservas para um lugar seguro. Era a evidência óbvia de que o País entraria em moratória, e por isso precisava pôr as reservas longe do alcance de eventuais tentativas de confisco.

Estava escrevendo o texto quando “seu” Frias me chamou a um almoço no nono andar (que ainda não era meu habitat) para expor o que eu sabia aos economistas da casa, muitos deles então membros do Conselho Editorial. Expus. Houve uma chuva de dúvidas e resistências, menos aos fatos expostos e mais à lógica da moratória. Eu não estava interessado na lógica da moratória, mas nos fatos.

Logo descobri que “seu” Frias também queria fatos. Desci para continuar escrevendo, já meio desanimado, imaginando que o texto não sairia. Nem meia hora depois, ele me ligou: “Conferi com fulano a tua informação. Pode ir em frente”. (Desta vez, não me disse quem era o “fulano”.)

Depois, de tanto em tanto, ligava de novo, para passar novas informações. Tantas informações que o texto ficou enorme, contrariando aliás o gosto dele por textos mais curtos.

O gosto pela informação combinava com o zelo pelo texto dos editoriais, que corrigia, com os editorialistas, linha por linha, vírgula por vírgula. Sempre que embatucava com alguma frase que achava pouco clara, usava um bordão: “Será que sua excelência vai entender?”. (“Sua excelência” era a maneira de referir-se ao leitor.)

Já as outras “excelências” — os Presidentes da República —, conheceu-as todas, de Getúlio Vargas em diante. Sem, no entanto, achar-se ele próprio “doutor” ou “personalidade”. Seu jeito de ser era tão despojado que permitiu uma cena muito engraçada quando Luiz Inácio Lula da Silva, candidato à Presidência em 1989, almoçou na Folha.

Terminado o almoço, longo, com direito à incomum repetição do cafezinho, estávamos todos começando a levantar das cadeiras quando Lula passou o braço em torno dos ombros de “seu” Frias e disse: “Frias, você ainda vai se orgulhar desse petezinho”, como se estivesse abraçando um entusiasmado militante-fundador do PT.

Não sei quem fará mais falta agora, se o repórter Frias ou se o “publisher” capaz de deixar à vontade os Presidentes e também ficar à vontade com eles, sem, no entanto, transmitir suas queixas aos jornalistas.

*Este texto foi publicado na Folha de S.Paulo nesta segunda-feira, dia 30