“Negócio melhorou quando começamos a matar”: Áudios inéditos revelam bastidores da ditadura nos 60 anos do golpe


29/03/2024


Por BERNARDO MELLO FRANCO em O Globo

A um mês de subir a rampa do Planalto, Ernesto Geisel recebeu seu futuro ministro do Exército, Dale Coutinho, para uma conversa no Rio. Os dois generais começaram tratando de amenidades. Depois chegaram ao que interessava: a repressão à esquerda armada, que havia chegado ao ápice no governo Emílio Médici.

— O negócio melhorou muito. Agora, melhorou, aqui entre nós, foi quando nós começamos a matar. Começamos a matar — sublinhou Coutinho.

— Porque antigamente você prendia o sujeito e ia lá para fora — emendou Geisel. — Ô Coutinho, esse troço de matar é uma barbaridade, mas acho que tem que ser — prosseguiu.

O diálogo, gravado em 16 de fevereiro de 1974, mostra como a ditadura militar transformou o extermínio de presos políticos em política de Estado. A conversa foi revelada pelo jornalista Elio Gaspari no livro “A ditadura derrotada”, de 2003. Vinte e um anos depois, o público poderá ouvi-la pela primeira vez em “A ditadura recontada: As vozes do golpe”, série original do Globoplay produzida pela CBN.

O podcast é baseado nos cinco volumes em que Gaspari narra a ascensão e o ocaso do regime dos generais. Para que a história pudesse ser contada em áudio, o colunista do GLOBO abriu seu valioso acervo, com mais de 300 horas de gravações inéditas.

Nas fitas, Geisel revela segredos da caserna, admite a tortura nos porões e fala sem reservas sobre os outros presidentes da ditadura.

Castello Branco, seu aliado, é descrito como “corcunda”, “metido a literato” e “aluno mediano”. Costa e Silva, seu desafeto, desponta como “preguiçoso” e “doente”. O general Médici, que chefiou o período mais brutal da repressão, é quem aparece melhor na fita.

— Ele foi o único sujeito capaz de levar a revolução para o povo — elogia Geisel.

Referia-se à popularidade do antecessor, que estimulou o ufanismo, colheu os louros do “milagre brasileiro” e se beneficiou da censura à imprensa.

O primeiro capítulo da série estreia nesta quinta-feira nas principais plataformas de áudio. Trata da conspiração que culminou no golpe de 1964 e inaugurou um longo período de 21 anos de ditadura. A história é narrada nas vozes dos vencedores, como o governador Carlos Lacerda, e dos vencidos, como o presidente deposto João Goulart.

O episódio mostra que os militares se uniram para derrubar o governo, mas não combinaram sequer a data em que dariam o golpe. A ação foi precipitada pelo general Olympio Mourão Filho, que comandava uma guarnição modesta em Juiz de Fora. Ele deu as ordens pelo telefone, vestiu um roupão de seda vermelho e se recolheu para tirar uma sesta.

— Creio ter sido o único homem do mundo que desencadeou uma revolução de pijama — gabou-se, tempos depois.

A quartelada deu as primeiras pistas de que os generais não estavam tão organizados quanto gostariam de parecer.

— Eles participaram da deposição do Jango em nome do combate à esquerda e da disciplina militar. No dia da queda do Jango, essa disciplina começou a ser violentada — constata Gaspari.

O Grande Irmão

O jornalista também analisa a participação dos EUA no complô. Áudios liberados pela Casa Branca mostram que a hipótese de apoiar um golpe no Brasil já era cogitada desde julho de 1962. O presidente John Kennedy, que seria assassinado no ano seguinte, discutiu o tema duas vezes com o embaixador Lincoln Gordon.

— A participação dos americanos no golpe está envolvida numa névoa. Uma coisa é certa: o golpe prevaleceu sem a participação de um único militar americano. Agora, os americanos tinham interesse no golpe? Sem a menor dúvida — diz Gaspari, que classifica o 31 de março como um “acontecimento brasileiro”.

— O Lincoln Gordon é um dos personagens mais trágicos desses dias. Ele carregou pela vida toda a marca da participação no golpe. Morreu em 2009, aos 96 anos. E, no memorial fúnebre, a filha criticou sua participação no golpe no Brasil — acrescenta.

Instalados no governo, os militares rasgaram a promessa de devolver o poder aos civis. Cassaram mandatos, extinguiram os partidos políticos e sufocaram as liberdades civis com a edição do AI-5, que fechou o Congresso e impôs a censura prévia. Sem eleições diretas, os presidentes passaram a ser escolhidos em reuniões fechadas nos quartéis.

— Não existe um único documento que mostre de onde saiu a maioria para eleger o Médici. Ou seja: o povo não sabe votar, mas os generais também não — ironiza Gaspari.

Empossado dez anos depois do golpe, Geisel deu a partida no lento processo de abertura, que só terminaria com a eleição indireta de Tancredo Neves, em 1985. Em “A ditadura recontada”, Gaspari resume sua visão do que teria levado um dos arquitetos da ditadura a iniciar seu desmonte:

— O que o Geisel queria era acabar com a bagunça. Ele não cansava de repetir que não foi movido por vocação democrática. Era contra eleição direta para presidente e achava que o Congresso não deveria se meter no Orçamento. Agora, bagunça no quartel, de jeito nenhum.