Memórias de um sobrevivente da “Manchete”


20/09/2012


Os bastidores de mais de três décadas de história da revista Manchete (1952-2000) estão relatados no novo livro do acadêmico, jornalista e professor Arnaldo Niskier, “Memórias de um sobrevivente — a verdadeira história da ascensão e queda da Manchete” (Editora Nova Fronteira), lançado nesta quinta-feira, 20 de setembro, na Academia Brasileira de Letras (ABL).
 
 
Arnaldo Niskier trabalhou 37 anos nas empresas Bloch, onde foi chefe de reportagem, diretor de jornalismo e o responsável pela criação de um estilo próprio da fotonovela brasileira, quando dirigiu a redação da revista Sétimo Céu. No livro, o autor conta experiências que vivenciou na redação da Manchete e os fatos marcantes que presenciou no convívio com grandes nomes do jornalismo, dentre os quais Murilo Mello Filho, Carlos Heitor Cony e Gervásio Batista, entre outros.
 
 
As lembranças mais curiosas registradas no livro vêm da sua proximidade com os diretores da revista, entre os quais o “controvertido Adolpho Bloch”:
— Adolpho Bloch era uma figura controvertida, capaz de grandes gestos de nobreza e em seguida se deixar trair por sentimentos menores, afirma o autor, que ocupa a cadeira nº 18 da ABL, eleito em 22 de março de 1984, na vaga deixada pelo jornalista, médico e escritor Peregrino Júnior.
 
 
Lançada em abril de 1952, a Manchete surgiu como um dos maiores sucessos editoriais da imprensa do Brasil e o livro de Arnaldo Niskier tem como objetivo fazer perdurar esse rico legado, narrando desde sua ascensão até a queda, “a partir de reminiscências de um grande amigo”:
— Eu devia esse livro a mim mesmo. Durante muitos anos eu resisti à ideia de escrevê-lo. Mas eu achava que tendo convivido 37 anos com a revista, a sua glória e depois o seu fracasso era importante um depoimento do jornalista parceiro de todas essas aventuras, diz o autor sobre os motivos que o levaram a escrever o livro.
 
 
O livro levou três anos e meio para ser escrito, período em que o Niskier diz que foi relembrando os fatos, pesquisando números antigos da revista, revendo matérias que escreveu em diferentes épocas:
— E daí saiu o livro que em boa hora a Editora Nova Fronteira está trazendo a lume. Achei que o livro ficaria muito enriquecido se tivesse um caderno de fotografias, e por isso inluímos um encarte de 16 páginas com 40 fotografias históricas a respeito da Manchete, sua história, seus problemas, edições especiais e os vários produtos jornalísticos que a revista publicou em cinco décadas. Assim nasceu o livro que aí está, graças a Deus, com boa receptividade junto ao público, afirmou o jornalista, escritor e acadêmico.
 
 
 
Histórias e memórias
 
 
 
“Memórias de um sobrevivente”, segundo o autor, é uma obra que mistura história e memórias. Não é uma biografia, porque Niskier não é a figura central do livro, em cujas páginas quem aparece em evidência é Adolpho Bloch, que na opinião do autor foi o “gênio criador” do império, que mais tarde, quando ele envelheceu e morreu, seus sucessores não tiveram competência para mantê-lo vivo.
 
 
Ao pedido para definir o gênero do seu livro, Niskier diz que “Memórias de um sobrevivente” é uma obra que reúne memórias misturadas com um ensaio histórico a respeito de uma empresa gráfica que durante quase 50 anos teve momentos de excepcional brilho:
— A Manchete foi considerada a melhor impressão do Brasil, tinha um parque gráfico esplêndido, equipado com máquinas italianas e alemãs que o Adolpho ia buscar a cada ano nas feiras internacionais da Europa, para manter o parque gráfico sempre atualizado. E com isso ele granjeou a fama, que ele queria e adorava, de grande tipógrafo. Quando alguém o chamava de doutor ele soltava um palavrão, contou Niskier (risos).
 
 
Adolpho Bloch também reagia com palavrões quando era chamado de jornalista:
— O Adolpho falava muito palavrão, era engraçado ver aquele russo falando palavrões. Ele veio para o Brasil aos 12 anos e foi criado na Aldeia Campista, próximo de onde viveu também o Nelson Rodrigues, que ao contrário dele não falava palavrão. Convivi por um longo período com o Nelson e conhecia bem as suas particularidades. Ele não pronunciava um palavrão, contava aquelas histórias cabeludas, mas palavrão não dizia. Já o Adolpho era fã do nome feio. Porra ele usava como vírgula, disse Niskier.
 
 
O todo poderoso dono da Manchete explodia de raiva quando era chamado pelo que ele não gostava. Ele queria que o chamassem de tipógrafo, a exemplo do pai Joseph, que na Rússia foi dono de uma tipografia, onde eram impressos programas de teatro. Adolpho foi acostumado com essa realidade desde garoto e jurou a si mesmo que quando tivesse recursos investiria em teatro.
 
 
 
Segundo Niskier, talvez a noite mais gloriosa e feliz da vida de Adolpho Bloch tenha sido a da inauguração do teatro batizado com o seu nome, que infelizmente foi paralisado totalmente pelos novos donos do prédio, que prometeram devolvê-lo ao público e não o fizeram contrariando a lei que determina que teatros não podem ser destruídos sem que haja uma compensação de criação de outro espaço teatral, mesmo que seja em outro local.
 
 
“A cultura do Rio de Janeiro e do País pede que isso seja cumprido o mais rápido possível”, afirma Niskier.
 
 
 
Fotonovelas
 
 
 
Arnaldo Niskier foi convidado para trabalhar nas empresas Bloch como repórter da revista Manchete Esportiva, em cuja redação trabalhavam os irmãos Augusto (diretor), Paulo e Nelson Rodrigues. Junto com ele chegou o jornalista Ney Bianchi de Almeida, vindo da Última Hora, onde os dois trabalharam como colaboradores.
 
 
Da reportagem Niskier foi promovido a assistente do diretor. Como ele vinha fazendo um bom trabalho, Pedro Jack Kapeller, conhecido como Jaquito, sobrinho de Adolpho, que o acompanhava de perto, achou que ele deveria dirigir a revista Sétimo Céu. “Publicação para jovens sonhadoras, que publicava fotonovelas”, diz Niskier.
 
 
A revista era deficitária, vendia somente seis mil exemplares, não era um bom produto editorial. Usava fotonovelas argentinas que Niskier classificou como “abomináveis”. Foi aí que Niskier percebeu que havia espaço para a criação de fotonovelas essencialmente brasileiras. Sétimo Céu concorria com a revista Carinho, da editora Abril, que usava tramas italianas esplêndidas, com Gina Lollobrigida e Sofia Loren:
— Nós não tínhamos dinheiro para comprar esse material, então precisávamos criar uma coisa nova que tivesse a cara do Brasil. Eu fiz contato com o Mário Lago, pedi a ele que me cedesse originais da série que ele produzia na Rádio Nacional intitulada “Presídio de mulheres”. Ele me cedeu a primeira história “Adelaide Simon não quis matar”, com a belíssima Nilza Leone. Então nós fizemos a primeira fotonovela brasileira e foi uma explosão. A revista saltou de 6 mil para 200 mil exemplares vendidos.
 
 
Seis anos depois, o sucesso das fotonovelas de Sétimo Céu levou Niskier a ser convidado para ser o chefe de reportagem da Manchete, substituindo Darwin Brandão que deixou o comando das equipes de reportagem a revista, em janeiro de 1960.
 
 
Niskier foi chefe de reportagem e diretor de jornalismo da Bloch Editora durante 18 anos. Nos últimos anos passou a dirigir a Bloch Educação, empresa do grupo que cuidava de cursos, seminários e livros didáticos, que em dez anos faturou US$ 20 milhões:
— Alguns desses livros, como os de matemática eram de minha autoria que tenho licenciatura nessa disciplina. E os livros de matemática para as séries do antigo primeiro grau tiveram 10 milhões de exemplares vendidos. Tudo o que eu consegui na vida em termos de conforto é proveniente dos direitos autorais dessa coleção “A Nova Matemática”.
 
 
Adolpho Bloch
 
 
O autor de “Memórias de um sobrevivente” disse que ficou impressionado com Adolpho Bloch logo no primeiro contato.
— Eu fui apresentado ao Adolpho Bloch pelo Augusto Rodrigues e fiquei impressionado diante daquele homem forte, narigudo, com um sapato de camurça azul. Na hora o que me ocorreu foi a ideia de que estava na presença de uma pessoa muito rica. Eu achava que só um milionário poderia usar um sapato daquele. Essa foi então a primeira impressão que eu tive do Adolpho.
 
 
Dois anos depois desse encontro, Niskier viveu uma situação delicada e resolveu pedir ajuda a Adolpho Bloch. Tinha sido despejado do apartamento em que vivia com a mãe e uma irmã mais nova e não conseguia um fiador para alugar outro imóvel. Niskier disse que a situação era dramática. “Tocou o desespero e eu resolvi procurar o Adolpho Bloch”, contou.
— Todo mundo tinha medo do Adolpho, a turma tinha receio das explosões dele. Eu fui falar com ele. Ele me olhou, me perguntou quem eu era e em que setor trabalhava. Eu contei a situação, que estava precisando de um fiador. Ele me disse que o fotógrafo Hélio Santos tinha lhe pedido a mesma coisa, mas que não estava fazendo o pagamento em dia. Ele me fez jurar que não ia lha trazer aporrinhação pegou a minha mão e disse: “Vamos fazer uma combinação. Eu vou ser o seu fiador, mas se você não pagar o aluguel em dia eu corto os seus culhões” (risos).
 
 
Arnaldo Niskier disse que o sucesso editorial da revista Manchete se deve à figura de Adolpho Bloch. Sem ele, a revista não teria acontecido:
— Ele era um gênio. Ele intuía as coisas, tinha um olhar diferenciado para os detalhes gráficos, a beleza da impressão. A sua atuação era realmente uma coisa extraordinária. Agora, ele era generoso em certos momentos, e mesquinho em outros. Os salários são um exemplo da sua falta de generosidade. Ele argumentava que o funcionário deveria se sentir orgulhoso de trabalhar na Manchete. E que isso tinha um preço, um valor que na cabeça dele deveria ser descontado no pagamento de cada um de nós, disse Niskier.
 
 
Ele lembrou um episódio que ele presenciou de uma conversa de Adolpho Bloch com o jornalista Augusto Nunes. Adolpho pediu que este viesse de Porto Alegre para encontrá-lo, porque queria contratá-lo para dirigir a Manchete no lugar do Justino Martins. Depois do almoço ofereceu 25 mil cruzeiros para o Nunes, que disse que esse era o salário que ele ganhava no Zero Hora, e que não sairia de lá para ganhar a mesma coisa:
— O Adolpho pôs a mão no ombro dele e disse: “Meu filho, olha essa vista do Aterro, da praia. Quanto vale isto?” O Augusto então respondeu: “Seu Adolpho no fim do mês quando eu tiver que pagar as minhas contas essa vista não irá me ajudar em nada. Eu preciso de grana”. Como o Adolpho disse que não poderia aumentar a oferta Augusto Nunes não aceitou a proposta.
 
 
Segundo Niskier, Adolpho Bloch tinha um comportamento intempestivo, que muitas vezes alternava explosões de raiva que duravam não mais do que três minutos, com manifestações de carinho. “Engraçado isso, porque e quem tivesse a burrice de enfrentá-lo no momento em que a onda subia levava ferro, porque ele era violento”, afirmou Niskier acrescentando que com os anos de convívio aprendeu a lidar com as alterações de humor de Adolpho Bloch.
 
 
Quando Adolpho Bloch explodia o segredo era dar razão a ele até que ele fosse se acalmando e se mostrasse disposto a mudar de ideia. Essa tática foi usada por Niskier na sua relação com Adolpho Bloch, e ele a considerava “infalível”. No livro, o autor fala sobre um pensamento que Adolpho Bloch tinha sobre isso:
— Eu conto no livro que ele costumava dizer que toda raiva que durasse mais de três minutos era uma doença patológica. Depois que ele explodia, ele se desculpava com o ofendido como uma criança. Se agressão verbal tivesse sido muito forte, o Adolpho cuidava de presentear a pessoa, com um corte de fazenda francês ou uma garrafa de champanhe. Era assim que ele se desculpava com as suas vítimas, declarou Niskier. 
 
 
Era esse comportamento que na opinião de Niskier fazia de Adolpho Bloch uma figura muito controvertida, que muitas vezes tomava decisões injustas com relação às pessoas:
— O Adolpho muitas vezes foi injusto nas suas reclamações. Isso acontecia porque ele se deixava influenciar pela opinião da turma de puxa sacos que vivia em torno dele. Aliás, ele adorava esse tipo de pessoa. Como ele não apurava a verdade dos fatos, saía atacando o funcionário. Mas quando percebia que não tinha razão, se desculpava e voltava a ser generoso, como era também do seu comportamento, explicou.
 
 
Sobrevivente
 
“Memórias de um sobrevivente” é um título sugestivo que foi escolhido porque muita gente sucumbiu ao fechamento da Manchete, em 2000. Alguns morreram de desgosto, segundo Niskier. A exemplo do Ney Bianchi e do Tarlis Batista, lamenta o autor:
— Quando o título me veio à cabeça, eu tive a certeza de era um sobrevivente da fase gloriosa da Manchete com a felicidade de ter tido a ideia de sair da revista no tempo certo, sem nenhuma dívida.
 
 
O leitor vai encontrar muitas histórias curiosas sobre a Manchete no livro de Arnaldo Niskier. A obra traz uma seleção de reportagens, cuja pesquisa contou com a colaboração do saudoso jornalista e ex-redator da revista Renato Sérgio, a quem o autor presta uma homenagem. Dentre as reportagens selecionadas, estão a série de campanhas promovidas pela revista como a que apoiou a construção de Brasília:

DIV>— Naquela época a Manchete defendia a construção da cidade, enquanto O Cruzeiro baixava o pau. Eu participei ativamente, como chefe de reportagem, da campanha de defesa da mudança da capital para o planalto central, disse Niskier.

 
 
A Manchete já tinha se envolvido em outras campanhas importantes como a que apoiou o movimento da bossa nova, liderado por Ronaldo Bôscoli. Lutou também pelo cinema novo, com o Justino Martins quando este dirigiu a revista:
— Como ele adorava cinema foi sensível ao movimento. Protegeu o cinema novo nas páginas da Manchete, contribuindo para que o movimento ganhasse força. Outro que esteve engajado nesse projeto foi o Nelson Pereira dos Santos que trabalhava conosco, como redator da Manchete, recorda Niskier.
 
 
Para dar uma ideia da força editorial da Manchete, Niskier lembrou quando a revista publicou a série “A morte do presidente”. Disse que essa iniciativa foi tomada depois que a revista encomendou uma pesquisa ao Ibope, que constatou que os leitores queriam que a publicação aumentasse o volume de texto, no lugar da fotografia:
— De posse dessa informação, o Jaquito foi a Nova York e comprou o direitos de “A morte de um presidente”. A série foi publicada entre os anos de 1964 e 1965, após a morte do Kennedy, em 1963, e a revista deu um salto de venda de 200 para 350 mil exemplares, mas não interessa aos Bloch vender mais do que isso.
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Niskier narra também todo o episódio da amizade de Adolpho Bloch com Juscelino Kubitschek e revela que a relação entre os dois era baseada numa significativa solidariedade. Segundo Niskier, Adolpho e Juscelino se gostavam como irmãos ele foi testemunha de que Adolpho, após a cassação de JK, em 1964, precisou socorrer o amigo com remessas de dinheiro, que fez para Nova York e depois Paris:
— Depois que o Juscelino foi cassado o Adolpho me chamou, perguntou se eu estava com o passaporte em dia, me entregou US$ 7 mil em espécie e pediu para eu comprar uma passagem de avião e fosse a Nova York entregar pessoalmente o dinheiro ao Juscelino, que segundo ele estava passando dificuldades financeiras no exterior, contou Niskier que cinco meses depois viajou a Paris com a mesma missão.  
 
 
Para Niskier, Adolpho e Juscelino “não fizeram negócios, não foram sócios, mas se aproximaram fraternalmente para dar um exemplo de amor ao Brasil e de confiança em seu futuro, com a construção da nova capital”.
 
 
Declínio
 
 
Durante mais de 20 anos, entre as décadas de 1950 e 1970 a Manchete foi a principal revista do País, à frente de O Cruzeiro e Veja, que hoje é outro fenômeno editorial, com circulação de mais de 1 milhão de exemplares. Mas na época em que disputava mercado com a Manchete, a revista Veja esteve longe de ameaçar a hegemonia editorial da publicação dirigida por Adolpho Bloch. Nas décadas de 60 e 70 a Manchete foi o principal veículo de comunicação do País. A partir dos anos 80, com a história da televisão é que veio o seu declínio.
 
 
A causa da queda, segundo Niskier, foi porque “misturaram as estações”:
— O Adolpho nasceu tipógrafo, e nesse campo ele se destacou. Conseguiu fazer, graças à equipe que juntou, uma belíssima revista como a Manchete e outras mais que a acompanharam, como Fatos e Fotos, Ele e Ela, Pais e Filhos, entre outras. Agora quando surgiu a televisão na vida dele começou o fim. Não faltou quem o alertasse de que uma grande empresa precisa ter televisão também. O Roberto Marinho me disse que muitas vezes alertou Adolpho Bloch para não entrar na aventura da TV. Ele me contou que se não tivesse sido ajudado, a TV Globo jamais teria alcançado o sucesso que alcançou.
 
 
De acordo com Niskier, inicialmente, antes de se arrepender de ter investido nesse projeto, Adolpho Bloch ficou encantado pela ideia de ser dono de um canal de televisão. Participava pessoalmente das reuniões do canal, a ponto de se envolver com palpites nas produções das novelas.
 
 
A extinta Rede Manchete chegou a ter sete mil funcionários no auge da televisão brasileira (1980-1990). Mas, segundo Niskier, os Bloch não entendiam nada do mercado de televisão, e com isso perderam muito dinheiro. A TV dilapidou as reservas do grupo Bloch:

— Eles queriam competir com a TV Globo, quando poderiam ter ficado num confortável segundo lugar, e jamais teriam quebrado. Quando iniciou a tevê, em 1983, Adolpho tinha em caixa nada menos que 25 milhões de dólares — e isso tudo virou pó, afirmou Niskier.

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