João Batista Damasceno: A orla não é lugar para violência


14/02/2022


Por João Batista Damasceno, conselheiro da ABI – Doutor em Ciência Política (UFF), professor adjunto da UERJ e desembargador do TJ/RJ membro do colegiado de coordenação regional da Associação Juízes para a Democracia/AJD-RIO. Publicado no jornal/portal O Dia.

O que indignou as consciências foi a prática da violência na orla, espaço reservado para o lazer e o bem estar de um setor privilegiado da cidade dividida. Nas favelas e bairros da periferia, mesmo as chacinas praticadas pelos agentes do Estado não geram comoção.

O lutador de jiu-jitsu que imobilizou o congolês Moïse alegou que apenas reagiu a uma tentativa de agressão. Outro partícipe do fato disse que bateu repetidas vezes com uma madeira para “extravasar a raiva”. Diversos são os instrumentos utilizados para a violência, mas as vítimas costumam ter as mesmas características: pretos e pobres odiados por existir.
O brutal assassinato de Mõïse nos chocou, resultando manifestações no Rio de Janeiro e em outras cidades. Perguntei a um morador do Jacarezinho se alguma criança chega à adolescência na favela sem presenciar uma cena daquelas. A resposta foi que se trata de violência cotidiana. Se todos sabemos que cotidianamente pessoas são brutalmente assassinadas nas favelas e periferia, o que indignou a classe média no brutal assassinato de Moïse? A resposta possível é que a violência está liberada contra pretos e pobres, desde que não seja feita na sala da Casa Grande.
O que indignou as consciências foi a prática da violência na orla, espaço reservado para o lazer e o bem estar de um setor privilegiado da cidade dividida. Nas favelas e bairros da periferia, mesmo as chacinas praticadas pelos agentes do Estado não geram comoção.
A morte de dezenas de pessoas num mesmo dia no ano passado pela Core, no Jacarezinho, não causou qualquer indignação nos setores que estão alvoroçados com o bárbaro crime na orla. O Jacarezinho, que o líder comunitário Rumba Gabriel diz ser o mais antigo quilombo do Rio de Janeiro, voltou a ser ocupado pelas forças policiais e a violação aos direitos dos moradores não causa comoção, nem manifestação. Na terça-feira passada, dia 8, Rumba narrou o que é o cotidiano de moradores de favelas em encontros com os agentes do Estado.
Este é o seu relato: “FAVELAS BOA TARDE! Muito triste o que está acontecendo no meu Quilombo Jacarezinho. Virou uma terra sem Lei. Os batalhões ditos especiais da PM, estão fazendo o que querem no nosso território. A cultura do ódio nascida em alguns gabinetes que prestaram homenagens a milicianos, agora se encontra por aqui: invasões em domicílios, roubos de televisões, notebooks, etc, como se o pobre não tivesse condições de ter. Neste último domingo, uma amiga me pediu ajuda para localizar um policial do Choque que havia levado a sua chave.
Neste mesmo domingo prenderam um amigo que foi à padaria apenas para comprar pão. Mas ele é negro, logo chamaram-no de traficante. Sábado passado uma multidão estava presente no Quiosque da Morte na Barra da Tijuca. Cheguei a sonhar que todo movimento negro viria para o grande Quilombo Jacaré. Todo mundo falando bonito. Parecia uma disputa de quem falaria com mais perfeição para que no final fosse aplaudido. Cheguei a dizer que falar ali era mole. Queria ver falar aqui onde o coro come e ninguém vê. Onde filho chora e mãe também não vê.
Hoje quando acordei, notei que a porta da cozinha estava aberta. Eles sabem que na minha casa tem câmera. Então, com certeza foram pelos fundos onde não tem! Esperaram eu sair e quando me dirigia para fazer compras, covardemente ao perceberem que eu não entrei nos becos onde poderiam me agredir sem que ninguém visse e coisas piores poderiam acontecer, esperaram eu passar pela rua principal. Com sangue nos olhos e ódio no coração. Me deram uma ESCARRADA! Graças a Deus consegui me manter frio e calmo. Aprendi isso com o meu Cristo guerreiro. Só perguntei o porquê de tanto ódio de mim. Ele respondeu: – FODA-SE!”.
Rumba tocou na questão. Quando de uma chacina em Irajá, um grupo de juízes foi ao Conjunto Habitacional Amarelinho, no mesmo bairro, para se encontrar com moradores e familiares das vítimas. Dentre eles estava o juiz Siro Darlan. Na verdade, desembargador. Outro grupo, igualmente preocupado com a violência policial, se reuniu para uma conversa sobre o assunto no Amarelinho da Cinelândia. Cada grupo se encontrou num Amarelinho, expressando as distintas concepções de interação: uns com a realidade concreta; outros com as considerações abstratas sobre o que vitimou aquelas pessoas.
A violência que vitimou Moïse foi praticada por quem a vivencia cotidianamente na periferia, que a naturaliza e desumaniza o outro. Os que falam em caminhões na orla, em situações ocasionais, igualmente precisam ouvir nas favelas e periferias, onde a violência é cotidiana. Quinta-feira passada, dia 10, o desembargador Siro Darlan compareceu ao Quilombo do Jacarezinho onde se encontrou com moradores vitimados pela violência cotidiana e do Estado. Outros Siros são necessários para que a pior das violências não perpetue: a indiferença.
João Batista Damasceno – Doutor em Ciência Política (UFF), professor adjunto da UERJ e desembargador do TJ/RJ membro do colegiado de coordenação regional da Associação Juízes para a Democracia/AJD-RIO.