Há 55 anos, AI-5 endurecia ainda mais a ditadura militar


13/12/2023


O Ato Institucional nº 5, AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general Costa e Silva, foi a expressão mais acabada da ditadura militar brasileira (1964-1985). Vigorou até dezembro de 1978 e produziu um elenco de ações arbitrárias de efeitos duradouros. Definiu o momento mais duro do regime, dando poder de exceção aos governantes para punir arbitrariamente os que fossem inimigos do regime ou como tal considerados.

O ano de 1968, “o ano que não acabou”, ficou marcado na história mundial e na do Brasil como um momento de grande contestação da política e dos costumes. O movimento estudantil celebrizou-se como protesto dos jovens contra a política tradicional, mas principalmente como demanda por novas liberdades. O radicalismo jovem pode ser bem expresso no lema “é proibido proibir”. Esse movimento, no Brasil, associou-se a um combate mais organizado contra o regime: intensificaram-se os protestos mais radicais, especialmente o dos universitários, contra a ditadura. Por outro lado, a “linha dura” providenciava instrumentos mais sofisticados e planejava ações mais rigorosas contra a oposição.

Também no decorrer de 1968 a Igreja começava a ter uma ação mais expressiva na defesa dos direitos humanos, e lideranças políticas cassadas continuavam a se associar visando a um retorno à política nacional e ao combate à ditadura. A marginalização política que o golpe impusera a antigos rivais – Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek, João Goulart – tivera o efeito de associá-los, ainda em 1967, na Frente Ampla, cujas atividades foram suspensas pelo ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, em abril de 1968. Pouco depois, o ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, reintroduziu o atestado de ideologia como requisito para a escolha dos dirigentes sindicais. Uma greve dos metalúrgicos em Osasco, em meados do ano, a primeira greve operária desde o início do regime militar, também sinalizava para a “linha dura” que medidas mais enérgicas deveriam ser tomadas para controlar as manifestações de descontentamento de qualquer ordem. Nas palavras do ministro do Exército, Aurélio de Lira Tavares, o governo precisava ser mais enérgico no combate a “idéias subversivas”. O diagnóstico militar era o de que havia “um processo bem adiantado de guerra revolucionária” liderado pelos comunistas.

A gota d’água para a promulgação do AI-5 foi o pronunciamento do deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, na Câmara, nos dias 2 e 3 de setembro, lançando um apelo para que o povo não participasse dos desfiles militares do 7 de Setembro e para que as moças, “ardentes de liberdade”, se recusassem a sair com oficiais. Na mesma ocasião outro deputado do MDB, Hermano Alves, escreveu uma série de artigos no Correio da Manhã considerados provocações. O governo, atendendo ao apelo de seus colegas militares e do Conselho de Segurança Nacional, declarou que esses pronunciamentos eram “ofensas e provocações irresponsáveis e intoleráveis”. O governo solicitou então ao Congresso a cassação dos dois deputados. Seguiram-se dias tensos no cenário político, entrecortados pela visita da rainha da Inglaterra ao Brasil, e no dia 12 de dezembro a Câmara recusou, por uma diferença de 75 votos (e com a colaboração da própria Arena), o pedido de licença para processar Márcio Moreira Alves. No dia seguinte foi baixado o AI-5, que autorizava o presidente da República, em caráter excepcional e, portanto, sem apreciação judicial, a: decretar o recesso do Congresso Nacional; intervir nos estados e municípios; cassar mandatos parlamentares; suspender, por dez anos, os direitos políticos de qualquer cidadão; decretar o confisco de bens considerados ilícitos; e suspender a garantia do habeas-corpus. No preâmbulo do ato, dizia-se ser essa uma necessidade para atingir os objetivos da revolução, “com vistas a encontrar os meios indispensáveis para a obra de reconstrução econômica, financeira e moral do país”. No mesmo dia foi decretado o recesso do Congresso Nacional por tempo indeterminado – só em outubro de 1969 o Congresso seria reaberto, para referendar a escolha do general Emílio Garrastazu Médici para a Presidência da República.

Ao fim do mês de dezembro de 1968, 11 deputados federais foram cassados, entre eles Márcio Moreira Alves e Hermano Alves. A lista de cassações aumentou no mês de janeiro de 1969, atingindo não só parlamentares, mas até ministros do Supremo Tribunal Federal. O AI-5 não só se impunha como um instrumento de intolerância em um momento de intensa polarização ideológica, como referendava uma concepção de modelo econômico em que o crescimento seria feito com “sangue, suor e lágrimas”.

Trechos sobre o Ato Institucional nº5 (AI-5), decretado em 13 de dezembro de 1968, no livro Geisel em Londres, do jornalista Geraldo Cantarino, lançado em novembro pela editora Mauad X

AI-5: instrumento de poder

Um mês depois da visita da rainha ao país, o Brasil sofreria o chamado golpe dentro do golpe. Em 13 de dezembro de 1968, o marechal Arthur da Costa e Silva decretou o AI-5 (Ato Institucional n° 5), que concedia poderes extraordinários ao presidente da República. Eram medidas excepcionais que permitiam que o Executivo operasse fora da Constituição de 1967. “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos”, publicou o Jornal do Brasil no dia seguinte. Burlando a censura, o jornal mandou o recado dissimulado no pequeno espaço reservado à previsão do tempo, no canto superior esquerdo da primeira página.
Descrito pelo jornalista político Villas-Bôas Corrêa como “o mais brutal diploma da ditadura”, o AI-5 endureceu o regime com uma série de ações arbitrárias e de efeitos devastadores: cassação de mandatos eletivos; suspensão de direitos políticos por dez anos; fechamento do Congresso Nacional; proibição de manifestação de natureza política; e suspensão da garantia de habeas corpus. Ato mais radical do regime militar, o AI-5 vigorou por dez anos e fincou o Brasil de fato numa ditadura. “Na vigência do AI-5 só um poder existiu neste país: o presidente da República, com uma soma de poderes jamais atribuído a qualquer outro governante”, descreveu o jornalista e historiador Hélio Silva.
Quando o ato completou uma década, o Jornal do Brasil descreveu o “aniversariante comatoso” como um “manto de escuridão e prepotência” que cobriu o país. “Instrumento de poder ditatorial, esmagou a nação em benefício do Estado, tornando-o onipotente pela centralização administrativa, onisciente pela censura e onipresente pela dissuasão política através do medo”, afirmou em editorial. Para o jornal, as obras oficiais eram apresentadas como milagres de competência, a administração como exemplo de virtudes e aqueles que divergiam, ou suspeitavam, dessa “versão triunfal” eram amordaçados, “ora pela censura, ora pelos capuzes da tortura”. (página 43)

Abertura, mas nem tanto

A abertura política que viria pela frente seria um caminho tortuoso, traiçoeiro e inseguro. O próprio Geisel daria uma interpretação diferente ao termo “distensão” um ano depois de usá-lo pela primeira vez. Em agosto de 1975, alegou que muito do que tinha sido publicado e discutido sobre a “distensão” não correspondia à realidade, e que pretendia manter os poderes especiais do regime, como o AI-5. “O governo não abrirá mão dos poderes excepcionais de que dispõe, nem admite, sob quaisquer disfarces, pressões de facções ou grupos de interesses visando, artificialmente, a queimar etapas no processo de desenvolvimento político – que se requer, ao contrário, lento, meditado e progressivo”, afirmou o presidente em pronunciamento pela televisão. O retorno ao regime democrático parecia cada vez mais distante. (página 120)

Ano novo, regime velho

O ano de 1976 começou com a lembrança de que o país ainda vivia sob um regime de exceção. Em 5 de janeiro, Geisel lançou mão do AI-5, pela primeira vez desde que assumira a Presidência, para cassar o mandato e suspender por dez anos os direitos políticos de dois membros do MDB paulista: o deputado federal Marcelo Gato e o deputado estadual Fabiano Sobrinho. Ambos eram acusados de envolvimento em atividades comunistas. O jornalista Carlos Castello Branco classificou as duas cassações como “mais duas execuções”. Para o colunista do JB, o ato do presidente foi mais uma prova de que o Brasil não conseguia sair do “círculo vicioso do regime autoritário”, o que provocava “cansaço e indisposição”. A punição de Geisel repercutiu na Inglaterra. O jornal Financial Times interpretou a cassação como uma ação que certamente causaria sérios danos ao esforço do país em retornar à normalidade política. Além disso, representou um revés à linha de defesa dos diplomatas britânicos que tentavam justificar a visita de Estado, alegando que o presidente Geisel vinha introduzindo medidas liberais. (página 154)

Cassações de deputados federais

No dia 29 de março [de 1976], segunda-feira, o presidente Geisel utilizou novamente os poderes excepcionais do AI-5 para cassar os mandatos de dois deputados federais do MDB do Rio Grande do Sul, Nadyr Rossetti e Amaury Muller, e suspender seus direitos políticos por dez anos. Os parlamentares foram acusados de cometer “graves ofensas” ao governo, às Forças Armadas e à Revolução em seus “violentos discursos” durante comício na cidade de Palmeira das Missões (RS). Nadyr Rossetti foi punido por ter dito que “o regime é duro para o povo, mas aberto para o poder econômico” e que “sem consulta ao Poder Legislativo, foram abertas as portas para o trust internacional na exploração do petróleo”. Além disso, afirmou que “a queda do regime é coisa certa, senão por podre, pela corrupção”. Por sua vez, o deputado Amaury Muller perdeu o mandato por afirmar que “não somos governados pela vontade do povo, e sim pela força das armas”; “estamos em um regime de golpe, não de Revolução, dominados pela aristocracia fardada” e que “chegou a hora de pôr um fim à ditadura”. (…)
O deputado federal Lysâneas Maciel, do MDB do antigo estado da Guanabara, foi o primeiro a se manifestar contra as cassações de seus correligionários. O parlamentar afirmou que, após 12 anos de um “mecanismo repressor mais bárbaro da história do país”, a única maneira de o sistema se manter no poder era pela força. Lysâneas Maciel chamou a atenção para o recrudescimento das medidas arbitrárias e para a rotina desmoralizante do regime militar, que fazia com que as pessoas se acostumassem à falta de liberdade. “Estamos nos acostumando com o desaparecimento de brasileiros, sua tortura, sua morte presumida; homens que não se conformaram com a injustiça e colocaram seu talento e suas vidas a serviço de seus compatriotas”. Na quinta-feira, 1º de abril, o presidente Geisel decidiu cassar também Lysâneas Maciel e suspender seus direitos políticos por dez anos por causa do discurso em defesa dos companheiros de partido. (página 179)

Ditador da abertura

Geisel morreu de câncer em 12 de setembro de 1996, quarenta dias depois de completar 89 anos. Ao anunciar a morte do general na primeira página, o Jornal do Brasil resumiu o ex-presidente como o “ditador da abertura”. A descrição traz em si a dicotomia de um chefe de Estado que entrou para a história ao dar uma no cravo e outra na ferradura. Anunciou uma distensão lenta, gradual e segura rumo a um sistema democrático no país, mas fez recuos autoritários quando lhe pareceu conveniente. “Governou o país com estilo imperial – foi o último a dispor de poderes absolutos, de 1974 a 1979”, avaliou o Jornal do Brasil. Segundo o jornalista e historiador Hélio Silva, o presidente Geisel deteve o recorde de aplicação do AI-5, fechou o Congresso Nacional e alterou as regras eleitorais para garantir a vitória do governo, mas ligou o seu nome à abertura, “por onde entrou a claridade de uma esperança”. Geisel eliminou gradualmente a censura prévia à imprensa, revogou o AI-5 em 1978 – que só deixou de valer em 1º de janeiro de 1979, dois meses e meio antes de deixar o governo – e afrouxou as amarras essenciais da ditadura. Para o jornalista Villas-Bôas Corrêa, sem Geisel a “passagem do arbítrio para a liberdade seria mais estreita, demorada e traumática”, apesar de ter cometido “os mais sérios agravos à democracia”. (página 289)