Eleição 2022: meu voto de protesto


04/10/2022


Por Geraldo Cantarino, conselheiro da ABI,  de Londres

Hoje fui votar cedo. Acordei de madrugada, horas antes do despertador. Quem disse que eu conseguia dormir? E dormir para quê, se o dia era de eleição, a mais importante das últimas décadas. Talvez, a mais necessária de toda a nossa história. Pela primeira vez, não votei, simplesmente, a favor de um candidato. Votei contra um outro candidato. Votei contra a aberração democrática, que colocou no poder o político mais controverso e despreparado para o cargo na história do país. Votei contra a reeleição do atual mandatário, que de tão maléfico ganhou a alcunha de “inominável” ou “aquele que não deve ser nomeado”.

Arqui-inimigo da democracia, ele ludibriou a população brasileira, antes e durante o mandato. Manipulou corações e mentes. Contou mentiras deslavadas. Repetiu tais mentiras inúmeras vezes. Seguiu ao pé da letra o lema “uma mentira dita mil vezes torna-se verdade”, atribuído a Joseph Goebbels, ministro da propaganda na Alemanha Nazista.

O inominável plantou discórdia. Disseminou ódio. Instalou o caos. Deixou um rastro e um ranço de destruição, negligência, charlatanismo, conspiração, preconceito, misoginia, falta de decoro, desprezo, desumanidade, arrogância, prepotência, deboche, escárnio, intolerância, perseguição, intimidação, ameaça, vingança, angústia, ansiedade, medo, dor, sofrimento, violência e morte. A lista é longa. Assim como foram longos os seus quase quatro anos de desgoverno, que, infelizmente, ainda não acabou.

Seu nome, que recuso a enunciar, estará para sempre associado aos milhares de brasileiros mortos durante a pandemia de Covid-19, para os quais não demonstrou compaixão alguma. Está, cientificamente, comprovado: milhares de vidas poderiam ter sido salvas no Brasil. O inominável, Sr. Morte, colocou em prática uma estratégia macabra. Foi omisso. Negou a ciência. Expôs, deliberadamente, a população ao risco de infecção em massa. Priorizou um tratamento precoce sem amparo científico de eficácia. Insistiu na baboseira mesmo depois que estudos científicos, a OMS e outras autoridades sanitárias em todo o mundo demonstraram a ineficácia desse tratamento. Incentivou a população a não seguir a política de distanciamento social. Desestimulou o uso de máscaras. Convocou, promoveu e participou de aglomerações. Atrasou a aquisição de imunizantes. Desqualificou as vacinas. Permitiu que irregularidades, corrupção e crimes ocorressem no processo de compra dos imunizantes. Estimulou a população a seguir com sua rotina, sem alertar para as cautelas necessárias. Confundiu a população. Veiculou informações falsas. Disseminou fake news. Cooperou, incessantemente, para a transmissão do vírus. Colaborou para aumentar a ocupação de leitos hospitalares, sobrecarregando os serviços de saúde. Contribuiu para a contaminação de milhões de pessoas, muitas com sequelas até hoje. Foi diretamente responsável pela morte de brasileiras e brasileiros – pais, mães, filhos e filhas de nosso país. Essas conclusões não são só minhas. São também do relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia, do Senado Federal. Os depoimentos e documentos reunidos pela investigação são tão graves que as ações e omissões do inominável caracterizam crimes contra a humanidade e, por isso, foram remetidos ao Tribunal Penal Internacional, em Haia (Holanda).

Como se não bastasse, o inominável cometeu muitas outras barbaridades. Atacou, sistematicamente, jornalistas, numa permanente campanha de descredibilização da imprensa brasileira. Foi apontado como o principal agressor no Relatório da Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil – 2021, produzido pela Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas). Houve ainda casos de censura e cerceamento à liberdade de expressão. Os ataques não foram resultado apenas de sua incontinência verbal. Fizeram parte de uma estratégia de poder. Era preciso desacreditar a imprensa para controlar o fluxo de informações e a formação de opinião. Assim, o inominável e seus assessores criaram um ecossistema paralelo de informação. Sites, blogs, perfis nas redes sociais e canais de vídeo no YouTube ajudaram a construir uma versão distorcida da realidade, com base em mentiras, conspirações e desinformação. É a tal da bolha, que mantém os seguidores dentro desse ecossistema, sem estimular o acesso a outras fontes de informação, como revistas científicas e relatórios de organismos nacionais e internacionais. Nada além da bolha é preciso ou confiável. Isso talvez explique, em parte, como cerca de 35% dos votos válidos desta eleição ainda sejam direcionados ao inominável.

À lista dos horrores, podemos acrescentar muito mais. O inominável promoveu o desmonte de órgãos ambientais. Contribuiu para o considerável aumento do desmatamento na Amazônia e da violência contra povos indígenas e comunidades tradicionais. Estimulou a destruição recorde da floresta e o garimpo ilegal. Atacou inúmeras vezes instituições como o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal. Promoveu e participou de atos antidemocráticos. Dedicou-se à desconstrução da nossa democracia, tão duramente conquistada. Ameaçou dar golpe para se perpetuar no poder de forma autoritária, causando instabilidade e incerteza. Questionou a integridade do nosso sistema eleitoral sem apresentar prova alguma. Convocou embaixadores de outros países e, em reunião sem precedentes na história da diplomacia brasileira, atacou o sistema de votação no Brasil. Dessa vez, não ficou impune, foi multado por isso.

Evitou o diálogo. Ignorou o contraditório. Desrespeitou a diversidade. Fez pouco caso dos direitos humanos. Defendeu a ditadura militar, um regime tenebroso marcado pela repressão, tortura, censura e corrupção. Instigou a violência. Facilitou o acesso a armas e munições, incluindo armamentos que antes eram de uso restrito das forças de segurança. Compradas legalmente, muitas dessas armas foram parar nas mãos de criminosos.

Sua gestão ficou marcada por vários casos de corrupção: orçamento secreto; compra de votos; superfaturamento; propinas; uso e abuso de cartão corporativo; escândalos, como o das barras de ouro para liberação de verbas públicas que levou o ministro da Educação à prisão; e compra de imóveis pela família em dinheiro vivo.

Do seu passado, ele carrega muitas assombrações: funcionários fantasmas; acusações de ‘rachadinhas’ e ligações com milícias. Fez planos de explodir bombas em quartéis, que lhe deu o apelido de “capitão das bombas”. Declarou que o seu maior sonho era governar o Brasil num regime ditatorial e fechar o Congresso Nacional. Disse, ainda, que acabaria com a crise brasileira com apenas três batalhões de infantaria. Fez ameaças terroristas: “Espero que não tenha de meter uma espoleta elétrica no tanque do carro de uma autoridade corrupta”. Defendeu regimes ditatoriais como o de Pinochet, no Chile – “ele matou pouco, tinha de ter matado mais”. Em entrevista na televisão, afirmou que durante a ditadura brasileira os militares deveriam ter fuzilado 30 mil pessoas, inclusive o presidente Fernando Henrique Cardoso. Após o massacre de Carandiru, considerado um dos piores casos de violação de direitos humanos no país, com a morte de 111 presos, disse que a Polícia Militar perdeu a oportunidade de matar mil pessoas. Candidatou-se à presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados propondo a instituição da pena de morte, da prisão perpétua e dos trabalhos forçados. Prometeu presidir a comissão com o fuzil e o cassetete em cima da mesa. Teve apenas um voto, o dele próprio. Como deputado federal, foi chamado de “lunático”, “louco”, “explosivo” e “Boçalnário”. Como presidente, foi acusado de implementar como política oficial a necropolítica, aprofundando ainda mais a barbárie social.

Para o presente, trouxe de volta a fome e o desemprego para muitas famílias. Trocou de partido dez vezes e governou o país por dois anos sem partido político. Sequestrou o nosso verde e amarelo. A nossa bandeira jamais será a mesma. Nosso pavilhão nacional estará, por muito tempo, associado a um projeto de poder de extrema-direita e inclinação fascista. O inominável tornou-se um pesadelo. Afetou a imagem internacional do país, isolando o Brasil do resto do mundo.

O voto de hoje não poderia ser diferente. Foi contra a insanidade, a crueldade, a injustiça. Foi puro protesto. Foi para lavar a alma. Agora, só nos resta acreditar que estamos, de fato, “por um triz pro dia nascer feliz”.