Carta aberta a Carlos Velloso


09/07/2007


Ilmo. Sr.Carlos Velloso,
 
Ao iniciar a elaboração destas mal traçadas linhas me assaltou uma dúvida. Confesso que estou encontrando uma certa dificuldade em relação ao tratamento que devo dispensar-lhe. Pensei inicialmente em tratá-lo de excelência, logo me dei conta que não seria o caso. Lembrei-me, que tanto eu como você, já não correspondemos às qualificações exigidas para merecer tal distinção, em outras palavras, não somos mais excelências. É verdade também que perdemos a primazia do tratamento por razões muito diferentes. 

No seu caso, foi o epílogo de uma carreira bem-sucedida, imagino sem maiores obstáculos, que incluiu a presidência da mais alta corte de justiça de nosso país. Você concluiu uma carreira de grande sucesso, cercado de direitos e garantias que raros brasileiros conseguem atingir, fecha seu ciclo produtivo gozando de privilégios reservados a poucos. Sai de cena perdendo apenas a primazia de ser distinguido com o tratamento de Vossa Excelência, porém passa a dispor de todo o seu tempo e claro, de uma generosa aposentadoria paga por todos os brasileiros. 

Já no meu caso, as turbulências são freqüentes em razão de minhas utopias, com momentos de alta tensão. Não seria nenhuma novidade falar-lhe que perdi o tratamento de excelência de forma abrupta, até mesmo inusitada, mais adiante entraremos no mérito. Perdi, além da primazia no tratamento, o mandato concedido pelo povo do Amapá. Devo dizer-lhe, que na minha obsessão no combate aos privilégios, eliminei uma vantagem pessoal, por considerá-la injusta, a aposentadoria de ex-governador. 

Acrescentarei umas poucas palavras sobre nossa trajetória. Mesmo sendo uma carta pessoal, permita-me abordar esse assunto no plural, faço parte de uma geração que exagerou em sua generosidade, colocando a própria vida em risco na defesa de ideais de liberdade e justiça. A nossa maneira, certos ou equivocados, a verdade é que ousamos lutar por uma pátria mais justa e democrática. Em conseqüência, muita gente, dessa honrosa geração, amargou a dolorosa experiência da prisão, da tortura e do exílio. Com Janete, minha companheira de vida e de luta, enfrentamos aqueles tempos sombrios. Também juntos, na volta do exílio retornamos a militância e conquistamos vários mandatos eletivos, finalmente juntos tivemos também nossos mandatos abruptamente interrompidos. 

É hora de esclarecer as razões que me levam a escrever-lhe, afinal trilhamos caminhos tão diferentes que seria inimaginável um ponto de encontro, um cruzamento nessa trajetória, capaz de criar afinidades geradoras de diálogo e comunicação entre nós. Ocorre que optamos pela vida pública, você na função de magistrado e eu de militante político, eventualmente exercendo cargos eletivos. Foi por isso que, em momentos diferentes de nossa história individual, nossas vidas terminaram se cruzando. 

Antes de esclarecer o que me leva a escrever-lhe, tomo a liberdade de incluí-lo entre os brasileiros chocados e indignados com os escândalos que finalmente, graças à ação competente de nossas forças policiais, estão sendo revelados a toda a sociedade. Quando tomei conhecimento do escândalo da semana passada, envolvendo o senador Joaquim Roriz em partilha de dinheiro, bateu-me a necessidade de me comunicar com você, para relembrar alguns fatos que remontam aos tempos de sua vida ativa como magistrado.

Na última semana do mês de abril de 2004, você atuou como juiz do TSE, relatando dois processos. 

Em um, você conseguiu enxergar o que o Ministério Público Eleitoral e o TRE do Amapá, agindo com extremo rigor, não conseguiram enxergar: a compra de dois votos por R$ 26 cada. Acusação em nosso desfavor, sustentada por declaração em cartório de duas testemunhas analfabetas, que também declararam não nos conhecerem. Foi aí então, que você, atuando menos como juiz e mais como eloqüente advogado de acusação conseguiu convencer seus pares pela cassação do meu mandato de senador e o de deputada federal de minha companheira Janete. 

Ainda naquela semana de triste memória, no processo em que figurava como réu o então governador Joaquim Roriz, você atuando menos como juiz e mais como advogado de defesa, não conseguiu enxergar as provas documentais e testemunhais que o Ministério Público havia demonstrado nos autos, conseguindo dessa forma convencer seus pares da inocência do acusado. 

É sobre esses fatos, que já passaram à história, que gostaria de comentar com você. Veja bem, agentes políticos detentores de mandatos eletivos têm suas vidas permanentemente fiscalizadas pela opinião pública. Fatos de suas vidas são revelados, seja através da imprensa, seja por seus adversários políticos ou até mesmo, como tem ocorrido nos últimos tempos, por investigações policiais e judiciais. Assim sendo, considerando que você, como julgador de políticos, conhecia tanto eu como minha companheira e, com maior razão o então governador Roriz, que governava a cidade de seu domicílio, pergunto-lhe: 

1 – Você sabia que o então governador e hoje Senador Joaquim Roriz, respondia e continua respondendo dezenas de processos criminais por improbidade administrativa? 

2 – Você sabia que em relação a mim e a minha companheira Janete não existe um só processo criminal em nosso desfavor por improbidade administrativa?
Finalmente concluo com mais duas questões: 

1 – Você considera que sua decisão em cassar meu mandato e o de minha companheira Janete melhorou a vida política brasileira? 

2 – Você considera que a sua decisão de inocentar Joaquim Roriz melhorou a vida política brasileira? 

Na esperança de uma pronta resposta subscrevo-me, 

atenciosamente, 

João Alberto Capiberibe (ex-preso e ex-exilado político, foi prefeito de Macapá, governador do Amapá por dois mandatos, senador com mandato interrompido por decisão de Carlos Velloso, quando ministro do TSE)