Brasil será julgado pelo assassinato de Herzog


08/07/2011


 
O Governo brasileiro será notificado neste mês de julho pela Corte Interamericana de Direitos Humanos como réu nos casos dos assassinatos dos jornalistas Vladimir Herzog e Luiz José da Cunha, o Crioulo, militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN). As denúncias das mortes foram enviadas à Corte internacional em 2009. Como o trâmite normal é de dois anos, a notificação somente agora vai ser entregue ao Estado brasileiro, para que este apresente sua defesa e o julgamento seja iniciado de fato.
 
 
Vladimir Herzog e Luiz José da Cunha foram mortos por agentes da ditadura militar (1964-1985), nos anos 70. Ou seja, mais de trinta anos após o ocorrido é que os casos serão analisados pela Corte Interamericana, com a devida atenção para o fato de que à época sequer foram investigados pelo Ministério Público Federal (MPF).
 
 
Segundo as normas da Corte Interamericana de Direitos Humanos, os casos só devem ser apresentados e julgados após esgotarem-se os recursos internos em cada país. No Brasil, o único recurso interno possível aos familiares das vítimas teria que ser encaminhado por meio do MPF, que se recusa a abrir as investigações com base na Lei de Anistia.
 
 
Para conseguir que os assassinatos fossem julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, as famílias das vítimas contaram com a parceria entre o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) e dos escritórios do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo, no caso de Herzog, e de Pernambuco, que cuida do interesse da família de Luiz Cunha.
 
 
Por e-mail, a assessoria de imprensa da Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal comunicou ao ABI Online que o Governo só se pronunciará após ser notificado oficialmente pela Corte.  
 
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Julgamentos
 
 
A diretora do Cejil, Beatriz Estela de Azevedo Affonso, explicou que nestes dois novos casos, de Herzog e Luiz Cunha, os julgamentos devem ser menos demorados que o caso da Guerrilha do Araguaia, que durou 10 anos e terminou somente agora em 2010.
 
 
Beatriz disse que a comissão que avalia os casos já compreendeu como funciona a Lei de Anistia no Brasil, que também beneficia os torturadores, e a forma como o Governo da ditadura militar utilizava-se dos órgãos públicos para dar aparência de legitimidade às torturas e outras práticas criminosas cometidas por alguns de seus agentes.
 
 
A representante do Cejil observa ainda que, em casos como estes de dívida histórica, a Corte costuma ser mais ágil. Para ela, os dois novos casos alcançam alguns pontos além do que o caso do Araguaia, pois tratam de torturas e execuções sumárias, com provas, e não apenas de corpos desaparecidos. Beatriz reprova o comportamento das autoridades brasileiras em relação aos arquivos da ditadura militar:
— Em qualquer Estado de bom senso e de boa fé, depois de um caso como o do Araguaia não seria mais necessário recorrer à Corte Interamericana para se abrir os arquivos da ditadura.
 
 
Hoje, segundo Beatriz, a Corte Interamericana não reconhece a Lei de Anistia brasileira, o que abre caminho para que o Brasil seja levado ao banco dos réus por outros crimes do Governo da ditadura, caso não comece a investigar, julgar e responsabilizar os responsáveis, conforme cobra a sentença da Corte no caso do Araguaia.
 
 
Constrangimento
 
 
Representantes de entidades de defesa dos direitos humanos e parentes das vítimas criticaram a posição do Governo que, mesmo no período democrático, tem sido omisso em relação aos crimes cometidos no período do Governo militar.  
 
 
Cecília Coimbra, Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro relembra a condenação do Brasil pelos assassinatos na Guerrilha do Araguaia (julgamento do qual o grupo participou) em dezembro do ano passado. Ele critica o comportamento do Governo:
— É uma vergonha ter que solicitar a Cortes Internacionais para que o Governo brasileiro cumpra decisões judiciais, como no caso da Guerrilha do Araguaia. Esse caso (de Vladimir Herzog e Luiz José da Cunha) é muito próximo à questão do Araguaia.
 
 
Cecília destacou também a importância dos julgamentos e cobrou da Presidente Dilma, por ser uma ex-militante, o cumprimento integral da sentença da Corte Interamericana sobre o Caso Araguaia, e a abertura dos arquivos da Ditadura:
— É fundamental (a abertura dos arquivos) para que a nossa história seja conhecida, e conhecer os responsáveis, para que todos possam saber do terrorismo de Estado que aconteceu no Brasil, e acontece até hoje com a criminalização dos Movimentos Sociais, é a mesma lógica. E o Governo brasileiro é omisso nessa questão, pois não vem cumprindo as decisões internacionais, e os arquivos da ditadura ainda estão guardados a sete chaves.
 
 
A Secretária de Direitos Humanos de Recife e viúva de Luiz José da Cunha, Amparo Araújo, reforçou o sentimento de vergonha mencionado por Cecília:
— É constrangedor para qualquer brasileiro ter que recorrer a uma Corte internacional para se fazer justiça, mas é o caminho que se tem que seguir. Aqui se esgotaram todas as instâncias, então tivemos que recorrer à Corte Interamericana. 
 
 
Farsa
 
 
A versão oficial para a morte de Vladimir Herzog, ocorrida na sede do DOI-CODI do II Exército em São Paulo, na noite de 25 de outubro de 1975, dizia: “Vladimir Herzog foi encontrado morto enforcado dentro da cela e tendo para isso se utilizado de uma tira de pano, na sala onde fora deixado”. A farsa montada pelo Governo foi desmontada, com base inclusive nos testemunhos de pessoas que estiveram presas juntamente com Herzog, como o jornalista e conselheiro da ABI, Rodolfo Konder.
 
 
Em entrevista à edição especial do Jornal da ABI  (Novembro/Dezembro, 2005) ele conta que estava preso no DOI-Codi em uma sala ao lado da que se encontrava Herzog sendo torturado e ouviu os gritos de dor do jornalista.
 
Konder lembra que Herzog negava ser integrante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o que irritava os agentes que faziam o interrogatório. Uma hora depois, foi obrigado a ajudá-lo a redigir uma confissão em que Vlado dizia ter sido aliciado por ele próprio (Konder) a participar do PCB, e indicando outras pessoas ligadas ao partido.
 
Em seguida, Konder foi retirado da sala e a tortura de Herzog recomeçou. Após o comunicado da morte, o laudo do IML atestou como causa da morte “asfixia mecânica por enforcamento, na sede do DOI-Codi, em hora ignorada”. 
 
Na ocasião da morte de Vladimir Herzog, a ABI foi uma das instituições que apoiaram a denúncia do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. Para o Presidente da ABI, Maurício Azêdo, as versões oficiais nunca tiveram credibilidade: 
— A ABI nunca se deu por satisfeita com as explicações do regime militar sobre o que ocorreu nos porões do DOI-Codi de São Paulo, na noite de 25 de outubro de 1975. A ABI considera que foi uma farsa montada com a participação do médico legista Harry Shibata, que assinou o laudo necroscópico que simulou o que pretendeu se apresentar como suicídio, quando na verdade inclusive outros presos e o jornalista Rodolfo Konder ouviram a tortura e o assassinato do Herzog.
 
 
Sobre os julgamentos a que o Governo será submetido, o Maurício Azêdo completou:
— Esta será mais uma reprovação que o Brasil pode encontrar, e é auspicioso que o crime corra na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que poderá estabelecer a verdade sobre os crimes da ditadura militar.
 
 
Precedente
 
 
Ivo Herzog, jornalista e filho de Vladimir, espera que o julgamento destes crimes contra os direitos humanos abra o caminho para que outros casos sejam investigados e julgados: DIV>

— É uma decisão muito importante porque reflete um entendimento da lei sobre os crimes contra a humanidade que vai contra a posição do Governo brasileiro. Isso gera uma jurisprudência importante que abre um precedente para que outros crimes sejam julgados, afirmou Ivo Herzog.
 
Ele citou a sentença do Supremo Tribunal Federal (STF), que no ano passado decidiu que o Governo não estaria obrigado a cumprir as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, porque tais fatos julgados na Corte já seriam cobertos pela Lei de Anistia:
— Quando o STF deu um veredicto contrário no ano passado, aquilo na verdade foi um sinal para que se olhasse mais profundamente a nossa legislação de direitos humanos. As nossas leis não podem ir contra as leis internacionais. Fez-se uma interpretação obscura da Lei de Anistia, que foi de encontro aos interesses da sociedade, declarou. 
 
 
Injustiça
 
 
Luiz José da Cunha, conhecido como Crioulo, nascido em Pernambuco, era militante da Aliança Libertadora Nacional, e foi assassinado por agentes do DOI-Codi de São Paulo,  em 13 de julho de 1973. Ele foi vítima de uma emboscada na Avenida Santo Amaro, em São Paulo. Foi fuzilado enquanto tentava fugir, mas foi atingido nas costas, dizem testemunhas.  
 
 
Assim como no caso de Herzog, a versão oficial é diferente e dizia que Luiz Cunha teria sido abordado por sua atitude suspeita, e em seguida reagido a tiros, procurando fugir ao tentar tomar à força um carro onde havia duas moças. A equipe responsável pela execução era chefiada pelo agente conhecido como “Capitão Nei” e pelo tenente “Lott”.
 
O laudo do IML foi assinado pelo mesmo médico legista responsável pelo de Herzog: Harry Shibata, junto com Orlando Brandão. Os laudos do IML são incompatíveis com as fotos do corpo de Luiz Cunha, que mostram evidências de tortura, um indicativo de que ele teria sido preso e torturado antes de ser morto.
 
 
Amparo Araújo, viúva de Luiz Cunha, ressalta a sensação de injustiça, comum a muitos parentes de vítimas do regime militar no Brasil:
— Nossa pátria falha com os cidadãos. Ele (Luiz Cunha) foi morto há mais de 30 anos na chamada Operação Bandeirantes e ainda não foi feita justiça, criticou Amparo Araújo.