ABI festeja os cem anos de João Saldanha


05/07/2017


na mesa-debatedora, José Resende, José Antônio Gerheim, Eraldo Leite e Ivan Proença

Em semana repleta de homenagens, foi realizada no dia 4 de junho, no auditório Belisário de Souza na ABI, a cerimônia “Um dia com João Saldanha”, para celebrar o centenário de nascimento do jornalista e cronista esportivo. O encontro faz parte da semana de homenagens a Saldanha, “Cem anos, Sem medo”.

O evento foi iniciativa do presidente da Associação de Cronistas Esportivos do Rio de Janeiro (Acerj) Eraldo Leite, do historiador Vitor Andrade de Melo e de Cesar Oliveira, editor do livro “As 100 melhores crônicas ―comentadas ―de João Saldanha” , com apoio da Associação Brasileira de Imprensa. Foi um dia em que amigos, contemporâneos e companheiros de profissão compartilharam histórias (fantasiosas e reais) de um dos maiores cronistas esportivos do Brasil, junto com Nelson Rodrigues.

Antes das apresentações e das exposições, integrantes da mesa debatedora lembraram a importância de João Saldanha para o futebol brasileiro, para o jornalismo esportivo e também para a política. Saldanha foi um ferrenho militante do Partido Comunista Brasileiro, opositor do regime militar no país. “É importante que se mantenha viva a memória do João. As pessoas o conhecem como técnico de futebol e jornalista. Mas ele é muito mais do que isso. Poucos sabem em que condições ele foi escolhido para ser técnico da seleção brasileira em plena ditadura militar. Ele era um personagem que conquistou um povo”, destacou o radialista Eraldo Leite.

Os acadêmicos André Couto, Victor Andrade, Filipe Mostaro, Álvaro do Cabo e Leda Costa

Comandada por Victor de Melo, o primeiro tempo da solenidade foi a mesa-redonda com o tema “O futebol, a crônica e os cronistas: o olhar acadêmico”, que contou com a presença de professores universitários, estudiosos do universo futebolístico. Estiveram na mesa de debates os historiadores Victor Andrade de Melo, Álvaro do Cabo, Leda Costa, André Couto e Filipe Mostaro. A ideia, segundo Cesar Oliveira, foi falar sobre a crônica como um gênero jornalístico e mostrar como João Saldanha estava presente nesse contexto.

Já na parte da tarde, com o tema “Esporte, a crônica e os cronistas: o olhar dos jornalistas”, estiveram presentes na mesa debatedora o Presidente do Conselho Deliberativo da ABI Ivan Proença, e os radialistas  José Rezende e José Antônio Gerheim. Foi um dia em que amigos, contemporâneos e companheiros de profissão compartilharam histórias (fantasiosas e reais) de um dos maiores cronistas esportivos do Brasil. 

Histórias

O ex-goleiro do Botafogo Adalberto prestigiou o encontro e falou sobre sua experiência com ‘o João’

O encontro reuniu uma plateia de aproximadamente 60 pessoas. Amigos e companheiros revelaram histórias de bastidores e a trajetória pessoal e profissional de João Saldanha. O professor Ivan Proença abriu a palestra destacando a importância do jornalista, não só para a imprensa, mas para a política do país. “Saldanha faz parte da história do Brasil. Minha trajetória com o João resultou em um trabalho acadêmico e um livro. A crônica é um flagrante do cotidiano. O João tinha um texto ‘oralizante’. Ele escrevia da mesma forma como se estivesse conversando num bar um num café. Como pessoa, é o que podemos chamar de anti-herói moderno. Penso como ele estaria reagindo à situação política atual no país. Apesar do sucesso e da popularidade como treinador da seleção brasileira, ele não deixou de atacar a ditadura. Por essas ele foi chamado de João Sem-Medo”, brincou o professor.

O radialista José Resende, que trabalhou com ‘johnny’ (como era carinhosamente chamado) na Rádio Nacional, destacou a simplicidade e a criatividade do companheiro: “Em suas crônicas ele criava vários termos como a famosa ‘zona do agrião’, (uma gíria do futebol, relacionada ao cultivo do agrião, que deve ser plantado num terreno que retém uma grande quantidade de água e no qual as pessoas precisam se mover com cuidado). Essas criações se identificavam sempre com o povo. Esse João  comentarista simples e genial, se diferenciava pelo seu reconhecimento com o público. Um homem autêntico e independente”, observou.

O jornalista Rui Jardim Martins, que se identificou como contemporâneo e ex-colega de trabalho na Rádio Nacional, e levou relatos da sua convivência com o jornalista, definiu o temperamento de Saldanha: “Eu o chamo de João corajoso porque defendia com veemência seus pontos de vista”.

O radialista José Antônio Gerheim também recordou com carinho o ex-companheiro de profissão e militância política. “João saiu pelo mundo com seu temperamento intempestivo e brigão, que lhe rendeu muitas histórias polêmicas. Algumas verdadeiras, como a interferência do Presidente da República na escalação da seleção brasileira e outras fantasiosas. Mas isso não importa. Ele revolucionou a maneira de comentar futebol. O João é único, nunca poderia ser copiado, mas abriu caminhos para outros na profissão”, finalizou.

Roda de samba em homenagem ao portelense

A semana de homenagem termina no sábado, dia 8, com uma roda de samba em homenagem ao portelense, a partir das 12 horas, na Livraria Folha Seca (Rua do Ouvidor, 37), comandada pelo sambista Rodrigo Carvalho e grupo Manga Rosa. Presença de ex-jogadores do Botafogo, jornalistas esportivos, e das pessoas envolvidas na produção do livro. Haverá vendas de livros e autógrafos.

Biografia

João Alves Jobim Saldanha nasceu em Alegrete, no dia 3 de julho de 1917. O gaúcho que chegava ao Rio de Janeiro na adolescência era um apaixonado por futebol. Entretanto, ao contrário da maioria dos boleiros de sua geração, não se enclausurava na bolha das quatro linhas. Culto, politizado e combativo, se tornaria não somente um esforçado jogador que passou pelas categorias de base do Botafogo e, mais tarde, se tornaria técnico da seleção brasileira, mas também um militante do Partido Comunista Brasileiro, opositor do regime militar no país.

A curta carreira nos gramados fez com que Saldanha logo partisse para outro ramo em que pudesse se dedicar a sua paixão. Virou jornalista. Rapidamente se consolidou como um dos principais analistas de futebol do Brasil. Enxergava tão bem o jogo que muita gente começou a questionar se ele não seria mais competente que boa parte dos técnicos que criticava com propriedade. Tanto que o Botafogo levou a história a sério e o contratou como treinador em 1957. Mesmo inexperiente na função, estreou com a conquista do Campeonato Carioca e ficou no cargo por dois anos.

Voltou ao jornalismo ostentando a mesma acidez nos comentários. Tinha posições firmes e, por vezes, intransigentes, como o preconceito com jogadores cabeludos e black powers. Entendia que a cabeleira atrapalhava a visão do atleta e amortecia a bola na hora do cabeceio. De qualquer forma, se consolidava a cada dia como a maior autoridade no esporte nacional. Nenhuma voz era tão respeitada quanto a sua no que dizia respeito à seleção brasileira, sobretudo depois do estrondoso fiasco na Copa do Mundo de 1966.

Em fevereiro de 1969, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD), atual CBF, surpreendeu ao anunciar Saldanha como o novo técnico da seleção. Alinhada ao regime militar por meio da Comissão de Desportos do Exército, a CBD, e ciente da forte militância de esquerda do jornalista, resolveu apostar em seu nome na tentativa de sufocar a forte crítica da imprensa que recaia sobre o escrete nacional. Com o discurso de montar um “time de feras”, ele aceitou o convite e convocou os melhores jogadores do país em atividade. Sob seu comando, craques como Pelé, Tostão, Gerson e Dirceu Lopes empilharam uma sequência de seis vitórias em seis jogos nas Eliminatórias e carimbaram o passaporte do Brasil para a Copa, resgatando o orgulho dos torcedores pela seleção.

Apesar do sucesso e da popularidade como treinador, Saldanha não deixou de atacar a ditadura, principalmente após a ascensão do general Emílio Garrastazu Médici ao poder. O regime militar endureceu a repressão a integrantes do Partido Comunista. No fim de 1969, o assassinato de Carlos Marighella, um amigo de longa data, despertou de vez a ira do treinador da seleção. Ele montou um dossiê, em que citava mais de 3.000 presos políticos e centenas de mortos e torturados pela ditadura brasileira, e o distribuiu a autoridades internacionais em sua passagem pelo México na ocasião do sorteio dos grupos da Copa, em janeiro de 1970.

Desde então, o governo de Médici iniciaria um esforço velado nos bastidores para derrubar João Saldanha do cargo. Em março, o treinador foi questionado por um repórter sobre o pedido do general, que, assim como ele, era gaúcho e gremista, para convocar o atacante Dario, o Dadá Maravilha, do Atlético Mineiro. Saldanha não pestanejou: “Ele [Médici] escala o ministério, eu convoco a seleção”. Duas semanas depois de sua resposta atrevida, foi demitido da seleção e deu lugar a Zagallo, que, em poucos meses, conduziria “as feras do Saldanha” ao tricampeonato mundial. Contou com o auxílio de Cláudio Coutinho, um capitão do Exército que, ainda na década de 70, também se tornaria técnico da seleção.

Dadá Maravilha foi convocado por Zagallo, mas não disputou nenhuma partida na Copa. Mais tarde, confidenciou que João Havelange, então presidente da CBD, teria admitido que despediu Saldanha por imposição de Médici. “O regime não admitia a possibilidade de um líder oposicionista tão expressivo como o Saldanha voltar do México consagrado e venerado pelo povo”, conta o jornalista Carlos Ferreira Vilarinho, autor do livro “Quem derrubou João Saldanha”. Em uma entrevista ao programa Roda Vida, em 1985, o próprio Saldanha resumiu o desenrolar de sua queda diante das pressões do governo. “Considero Médici o maior assassino da história do Brasil. Ele nunca tinha visto o Dario jogar. Aquilo foi uma imposição só para forçar a barra. Recusei um convite para jantar com ele em Porto Alegre. Pô, o cara matou amigos meus. Tenho um nome a zelar. Não poderia compactuar com um ser desses”.

Passada a euforia pelo tri, Saldanha manteve seu tom crítico e a intensa atividade política, que ajudaria a derrubar o regime militar 15 anos depois. Também manteve o vício no cigarro. Morreu durante a cobertura da Copa de 1990, na Itália, aos 73 anos. Em 1988, uma das últimas vezes em que voltou a tocar na ferida que o incomodava, escreveu sobre sua demissão com a altivez de sempre: “A pressão foi ficando insuportável. Por gente da própria CBD e da ditadura. Era difícil tolerar um cara com longa trajetória no Partido Comunista Brasileiro ganhando força, debaixo da bochecha deles”. Sem filtros, sem freio. Assim vivia o João Sem-Medo.