A voz como meio de identidade e transformação


10/07/2020


“A voz é elemento poderoso no processo de transformação do ser humano”     

A voz como instrumento do canto sempre foi dominada por Mariana Baltar, quando ainda  muito jovem descobriu o dom que a tornaria cantora profissional consagrada. Cantar é parte dela, como bem observou, certa vez, o amigo compositor Aldir Blanc, num comentário sobre sua voz: “ Meu Deus, está cheia de música!”.

Mas, além do canto, outras várias áreas do vocal humano  foram descobertas  por Mariana, estudante do oitavo período de fonoaudiologia, faculdade  que lhe abriu amplo leque de novos aprendizados.   Em estágio no ambulatório da Universidade Veiga de Almeida, no Rio, entrou em contato com nova experiência, que, segundo ela, a fará exercer sua cidadania de forma mais plena. O ambulatório, dedicado especialmente à voz da pessoa trans, foi idealizado e  desenvolvido em 2016  pelo professor João Lopes , PhD no assunto. É uma referência no país.

“A voz é elemento poderoso no processo de transformação do ser humano”, afirma Mariana, fascinada por um tema ainda pouco conhecido do grande público. Para difundi-lo, a cantora, futura fono, inaugura na próxima segunda-feira, 13, o projeto Voz, Arte e Cidadania, com encontros semanais virtuais com especialistas e estudiosos da voz, sobretudo da voz transgênero.   A conversa de estreia – A voz do trans sob o olhar da fonoaudiologia- será justamente com  João Lopes,  “mostrando a importância de se debater o assunto,  especialmente no atual  momento político do país”, afirma Mariana.

Ela constata que, muitas vezes, a voz é fator de inibição no processo de transformação de  pessoas trans.  Isso porque nem sempre a voz ( tom, timbre etc) acompanha a opção de gênero,  passando a ser, assim,  uma barreira para a plena assunção do indivíduo.

“É o que o professor João Lopes denomina de ‘confiança vocal’, diz a aluna, ao reconhecer que a voz pode interferir na personalidade, comportamento e atitude, como no desembaraço da oratória, no gestual.  Aliás, a interface entre o corpo e a voz é uma das grandes áreas de interesse de Mariana, também graduada em dança .

Ela conta que nos atendimentos no ambulatório (suspensos durante a quarentena) foi testemunha de sofridas e íntimas histórias de vida relatadas por pessoas trans que, por causa da voz,  tinham pavor de falar ao telefone ou enfrentavam dificuldades no mercado de trabalho. Em outro caso, ela acompanhou o dilema de uma mulher trans em se apresentar à família do noivo com uma voz na qual ela não se reconhecia. “A voz é uma representação muito forte da gente”, garante.

No ambulatório – que presta atendimento gratuito e recebe por semana até 30 clientes de variadas faixas etárias -,  o importante é conhecer o impacto da voz na vida dos clientes. Pessoas trans, muitas vezes, passam por transformações difíceis – cirurgias, hormônios -, mas a voz, segundo elas, não as representa. ”É muito mais do que deixar a voz mais grave ou mais aguda, e há, também, limitações fonoaudiológicos, embora existam exercícios que envolvem adaptações, consciência corporal e que mexem em ressonâncias,  em  modificações do som na cabeça, nariz, boca, e que evitam cansaço nas cordas vocais”.

Mariana destaca que, além do aspecto de identificação, há ainda a questão da violência física e moral: “O Brasil é o país que mais mata trans. Neste caso, a voz passa a ser fator de vida ou morte”.

Em seu entender, o mais importante neste seu trabalho  é o acolhimento. Ouvir, compreender os desejos da pessoa trans e tentar ajudar. Até porque, nem sempre a aplicação de hormônio interfere na voz. Os casos são diversos . A hormonização feminina, por exemplo,  não promove  modificação nas cordas vocais, ensina Mariana, lembrando ainda que, por preconceito,  há médicos que evitam atender transgênero, que,  em muitos casos, acabam  fazendo o  processo de hormonização por conta própria.

A futura fonoaudióloga conta também que outra importante frente de trabalho é a forma do discurso. Num modelo padrão, mulheres geralmente terminam a frase indo para o agudo; os homens para o grave; mulheres usam vogais mais arredondadas; homens são mais objetivos.

Em meio a tantas variáveis, as pessoas vão se conhecendo melhor e descobrindo que voz de fato vai representá-las por inteiro.

Mariana, a cantora, reconhece que sua postura profissional e política foi profundamente influenciada pela experiência desse trabalho com trans, que “permitiu um olhar muito  mais abrangente, pensando nas minorias e abrindo espaços de discussão dentro da arte”.