A difamação digital como estratégia eleitoral


12/09/2022


por João Batista de Abreu e Arnaldo César Ricci Jacob (in memoriam), em *desinformante

“Consciência é aquela voz grave e baixinha que ninguém quer ouvir. Esse é o problema do mundo de hoje.” (Pinocchio)

Em tempo de intensa transformação tecnológica cresce a possibilidade de produzir, impulsionar e viralizar mensagens de texto e imagens que, independentemente da veracidade, se tornam instrumentos de manipulação da opinião pública. Mais do que isso. Instrumentos de alto poder de convencimento de pessoas das mais variadas camadas sociais que, na ânsia de acreditar no inusitado, transformam e reproduzem o inverossímil em escala geométrica. Os recursos de impulsionamento pelas redes sociais confundem o verdadeiro e o falso. Vale a velocidade de divulgação do fato, com a sempre disponível ajuda das plataformas digitais.

Afinal, quanto maior o número de mensagens curtidas e reproduzidas, maior o número de anunciantes e, em consequência, o lucro do empreendimento. Nos últimos anos o mundo virou refém deste expediente, com o apoio disfarçado de autoridades governamentais ou candidatos a governantes. O Brasil não é exceção.

O momento político e tecnológico não mais permite distinguir os produtores profissionais de conteúdo informativo que integram plataformas digitais regulamentadas e os grupos de pressão que agem sob a égide da divulgação de fatos e episódios – verdadeiros ou falsos – que podem precipitar conclusões e despertar reações compulsivas.

Os profissionais das plataformas digitais executam o papel de mediadores do processo, o que nada tem a ver com mecanismos de censura, mas sim a checagem do grau de veracidade e objetividade dos fatos narrados por terceiros. Mesmo que de forma fluida e pouco consolidada, jornalistas profissionais obedecem (ou deveriam obedecer) ao padrão de comportamento baseado nos princípios definidos pela ética profissional e, principalmente, pela ética do cidadão.

Maquiavel e as operações simbólicas

Em tempo de desregulamentação, as operações simbólicas ganham contornos indefinidos. No melhor estilo de Maquiavel, cada vez cresce mais o úmero daqueles que defendem que os fins justificam os meios. Não importa se é fato ou fake; o que vale é multiplicar os acessos e alcançar o objetivo desejado.  Como muitas destas mensagens têm origem falsa, a instituição ou pessoa difamada vive o dilema entre desmenti-las e assim contribuir para impulsioná-las ainda mais, ou ignorá-las e, no entender de muitos consumidores, assumir como verdade por omissão.

Muniz Sodré, no livro Antropologia do Espelho, observa que na virada do século as chamadas empresas pontocom conquistaram valor de mercado nas bolsas (o índice Nasdaq) acima do retorno financeiro por conta da expectativa de lucro a médio prazo. Com o tempo muitas destas companhias terminaram abrindo falência por falta de fôlego comercial, mas algumas mudanças vieram para ficar, inclusive nos campos da política e dos meios de comunicação.

 “É largo o espectro das transformações epocais. Muda, por exemplo, a natureza do espaço público, tradicionalmente animado pela política e pela imprensa escrita. Agora, formas tradicionais de representação da realidade e novíssimas (o virtual, o espaço simulativo ou telerreal da hipermídia) interagem, expandindo a dimensão tecnocultural, onde se constituem e movimentam novos sujeitos sociais. (MUNIZ SODRE, 2002, pág. 19).

Sodré recorre ao professor francês de Teoria da Comunicação Bernard Miège e aos quatro modelos com que o autor de Espaço público classifica a imprensa: a de opinião; a imprensa comercial; a mídia de massa e a de comunicação generalizada, esta representada por um mosaico formado pelas instituições do Estado, as grandes organizações comerciais e industriais e os partidos políticos. Vale acrescentar: este mosaico hoje também sofre a influência das religiões e sua articulação com os três poderes.

“A astúcia das ideologias tecnicistas consiste geralmente na tentativa de deixar visível apenas o aspecto técnico do dispositivo midiático, da “prótese”, ocultando a sua dimensão socioetal comprometida com uma forma específica de hegemonia, onde a articulação entre democracia e mercadoria é parte vital de estratégias corporativas. Estas ideologias costumam permear discursos e ações de conglomerados transnacionais e de ideologias dos novos formatos de Estado”. (Idem, ibidem, 2002, Pág. 22)

As plataformas digitais introduziram nova forma de relacionamento interpessoal que oferecem diversas vantagens. São geralmente gratuitas para os usuários, aproveitam-se das informações destes nas redes sociais para formatar e vender conceitos e comportamentos de cidadãos aos clientes interessados e se beneficiam de um vácuo na legislação sobre processos de comunicação virtual, tolerando diversas formas de abuso e veiculação de preconceitos e intolerâncias.

Fake News e deep fake

É preciso distinguir o que é notícia errada ou “barriga” e o que é fake news. Enquanto a primeira resulta de falhas involuntárias de apuração do repórter causadas por informações viciadas de fontes, dificuldade de compreensão do relato transmitido ou problemas com o  cumprimento de deadlines, as fake news são mensagens com intenção deliberada de propagar falsas informações, seja por meio de recorte de trechos que alteram o sentido original da mensagem, seja pela capacidade de atribuir características pejorativas a terceiros. Algumas características destas mensagens permitem identificar o grau de veracidade. Uma delas diz respeito à atemporalidade, ou seja, não fica claro nem quando, nem onde foi feita tal declaração ou acusação. Muitas não trazem a identificação do falante. Vale apenas o que se fala, mas não quem fala.

Outro expediente consiste nas fraudes conhecidas como deep fakes. Com o auxílio de algoritmos complexos e dos avanços da Inteligência Artificial – IA – é possível adulterar o conteúdo, inclusive imagem e áudio), de vídeos. As articulações faciais e labiais são sincronizadas   às inflexões da voz de maneira quase imperceptível, a depender da qualidade da edição.

Os primeiros softwares que permitem esse tipo de fraude foram desenvolvidos para instituições policiais, que necessitam de reconhecimento facial nas investigações, e para a produção de efeitos especiais no cinema, especialmente Hollywood, nos Estados Unidos e Bollywood, na Índia. Dependendo do grau de perfeição, esses programas de computadores podem custar entre US$ 80 mil a US$ 300 mil.

deep fake foi utilizada pela primeira vez no Brasil com fins políticos nas eleições majoritárias de 2018. A imagem do que se imaginava ser o então candidato ao governo de São Paulo João Doria (PSDB) apareceu em vídeo de sexo grupal. A adulteração utilizou softwares primários e ficou tosca, mas os especialistas levaram duas semanas para conseguirem desvendar a fraude. O estrago estava feito.

O canadense Michael K. Spencer, editor-chefe do The Last Futurist”  já alertou diversas vezes, em sua revista eletrônica, para os riscos de uma distopia da vida futura, em que prevalecerá uma sociedade opressora. “A desinformação vai aumentar de tal maneira que o Facebook e as deep fakes vão gerar um mundo de eventos míticos de imersão, entretenimento e um capitalismo de vigilância  profundamente perturbador para nossa saúde mental e estabilidade política

Senso comum

Softwares sofisticados adulteram imagens para gerar novos sentidos. Como a grande maioria das sociedades modernas tende a compreender a imagem como expressão do real, os efeitos de sentido tornam-se ainda mais perversos. Tanto no caso das fake news quanto das deep fakes, os difusores partem do senso comum, ou seja, de determinados conceitos e preconceitos sem comprovação factual ou histórica, mas que têm enorme impacto e absorção no público em geral. Roland Barthes desenvolveu o conceito de fait-divers na imprensa que ajuda a explicar essa assimilação.[1]

O assassinato político é para sempre, por definição, uma informação parcial; o fait-divers, pelo contrário, é uma informação total, ou mais exatamente, imanente, ele contém em si todo seu saber não é preciso conhecer nada do mundo para consumir um fait-divers; não remete formalmente a nada além dele próprio; seu conteúdo não é estranho ao mundo: desastres, assassínios, raptos, agressões, acidentes, roubos, esquisitices, tudo isso remete ao homem, a sua história,  a sua alienação, a seus fantasmas, seus sonhos, a seus modos. (BARTHES, 1999, pág. 59)

Em 2017, figuras como o marqueteiro norte-americano Steve Bannon, o empresário do ramo hoteleiro Donald Trump, a empresa de tecnologia Cambridge Analytica e seus periféricos espalhados pelo mundo engatilhavam no terreno das fake News. De lá para cá, conseguiram influenciar o plebiscito do Brexit no Reino Unido, elegeram Trump presidente da maior república do mundo e ajudaram a entronizar o capitão Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto.

A estratégia de influenciar eleitores adotada por Steve Bannon e seguidores contraria os princípios da chamada ética da informação intercultural, ao lançar mão de ideias pré-concebidas e preconceitos contra a cultura do outro, O quadro de incertezas sociais, o crescimento da xenofobia e a disposição de questionar o sistema da democracia burguesia, que prevê a independência entre os três poderes, como preconizava Montesquieu, nos remete à Alemanha dos anos 30 do século passado. Crise social, insegurança das instituições e um projeto social que faz a apologia do nacionalismo e dos direitos do povo alemão, contra os imigrantes, judeus e opositores, ou seja, contra os diferentes. Na visão do Terceiro Reich, o mundo precisava de uma sociedade moderna para atender aos novos tempos e a tecnologia fazia parte deste processo de mudança. O ministro da Propaganda, Josef Goebbels, ensinava: “repita várias vezes uma mentira e ela se tornará verdade”.

Hoje, podemos aperfeiçoar o conselho de Goebbels: repita e impulsione mensagem falsa nas redes sociais e ela, mesmo que não se torne verdade, causará efeito devastador. Até quando?