Pasquim: 50 anos da prisão de uma redação de craques


17/11/2020


Por Rogério Marques*

Você, jovem jornalista, que está neste momento numa dessas redações silenciosas, bem comportadas, crachá pendurado no peito, olhos pregados na tela do computador ou do celular, pare um pouco, um pouquinho só. Vamos voltar 50 anos no tempo. Seja bem-vindo a uma redação esporrenta, de muitas risadas, falatório, altas doses de descontração.

Repare que alguns colegas, até mesmo o chefe, trabalham com um copo de uísque ou uma cachacinha ao lado da máquina de escrever, contando histórias da noite anterior nos bares famosos do Rio. Ali estão alguns dos maiores e mais criativos jornalistas do Brasil trabalhando num jornal que fez história da imprensa brasileira, o Pasquim. Um semanário que usava a irreverência, o humor, o deboche, o escracho para cutucar todos  aqueles que se levavam muito a sério — granfinos de nariz em pé, políticos conservadores e o governo, embora na época isso fosse extremamente arriscado.

E foi exatamente há 50 anos que tudo aconteceu. De repente, o medo tomou conta daquela redação quando os principais (i)responsáveis pelo jornal começaram a ser presos. Estávamos em 1970, final de outubro, início de novembro, pior fase da ditadura militar brasileira, com a imprensa censurada, opositores presos, torturados ou que simplesmente desapareciam para nunca mais voltar.

Lançado em junho de 1969, apenas seis meses depois da decretação do AI-5 – uma ousadia inacreditável –, O Pasquim logo se tornou um fenômeno editorial. Em pouco tempo chegou a vender 220 mil exemplares.

Capa com o nome dos craques que faziam O Pasquim

O jornal foi criado por Tarso de Castro, Jaguar e Sérgio Cabral – o pai, é claro. Depois foram chegando outros craques do texto, do desenho e da fotografia, como Claudius Ceccon, Fortuna, Millôr Fernandes, Carlos Prósperi, Luiz Carlos Maciel, Ivan Lessa, Paulo Garcez, Ziraldo, Paulo Francis, Henfil, Miguel Paiva, Flavio Rangel, Redi, Caulos, Sérgio Augusto e um monte de colaboradores da pesada.

Um dos pontos altos eram as entrevistas com os famosos da época, feitas pela “patota” do Pasquim, sempre regadas a cerveja, uísque, cachaça, que ajudavam a descontrair o clima. Tudo muito diferente do que acontecia nos jornalões engravatados.

Ficou famosa, entre tantas, a entrevista com a atriz Leila Diniz, na edição número 22, um verdadeiro arraso. Há 50 anos, a bela fez revelações chocantes, e pontuava os casos com um monte de palavrões, prudentemente substituídos por asteriscos. Resultado, uma tiragem de 117 mil exemplares.

O PASQUIM  NA MÚSICA DE ROBERTO E ERASMO

Capa da histórica entrevista com Leila Diniz

Em pouco tempo o Pasquim era sucesso até nas paradas musicais. Em 1970 a dupla Roberto e Erasmo Carlos lançou “Coqueiro Verde”, em que o “Tremendão” faz referência à Narinha, com quem era casado, e ao “meu Pasquim”:

Em frente ao coqueiro verde

Esperei uma eternidade

Já fumei um cigarro e meio e Narinha não veio

Como diz Leila Diniz

Homem tem que ser durão

Se ela não chegar agora não precisa chegar

Pois eu vou me embora

Vou ler meu Pasquim

Se ela chega e não me vê

Sai correndo atrás de mim.

A música, tocada diariamente nas rádios, acabou sendo o fundo musical do momento mais difícil da história do jornal, justamente numa fase financeiramente boa. As tiragens cada vez maiores atraíram anunciantes de peso, muito dinheiro e também muitos problemas com o governo militar, comandado pelo ditador Emilio Garrastazu Médici.

O Pasquim era submetido à censura prévia, teve algumas edições apreendidas e a pressão só aumentava. No mesmo ano de 1970, um grupo da extrema-direita botou, de madrugada, uma bomba com alto poder de destruição na sede do jornal, um sobrado na Rua Clarice Índio do Brasil, em Botafogo, no Rio. Cinco quilos de dinamite! Por sorte, devido a um defeito no dispositivo detonador, a bomba não explodiu e foi desativada por peritos da polícia. Um deles disse que em caso de explosão a casa inteira teria ido pelos ares, matando o caseiro e sua mulher, que moravam lá.

DA REDAÇÃO PARA A VILA MILITAR

Foi no fim deste turbulento ano de 1970 que aconteceram as prisões de quase toda a redação. O primeiro a cair nas mãos da repressão foi Paulo Francis. Quem conta é Haroldo Zager, em um texto disponível no site BN Digital, da Biblioteca Nacional. Na época Haroldo, chamado pela equipe de Haroldinho, tinha 17 anos e era arte-finalista do semanário:

“A rotina na noite de fechamento de cada edição do jornal, quando fazíamos a montagem das páginas que iriam ser impressas, era sempre a mesma. Ficávamos até meia-noite nesse preparo, com um intervalo para comer alguma coisa no boteco da Rua Marquês de Abrantes, esquina com a Rua Clarice Índio do Brasil, sempre por volta de 22h. Naquela terça-feira, final de outubro de 1970, no fechamento da edição nº 72, não foi diferente. Na redação só tinha o pessoal da chamada cozinha do jornal. Fomos eu, arte-finalista; Alcino, secretário gráfico; Waltinho, arte-finalista de anúncios; Calazans, motorista, para o lanche habitual antes de finalizar as páginas e levá-las para a gráfica.

Na volta do boteco, o segurança, contratado após o atentado da bomba, abriu o portão e, ao entrarmos, fomos rendidos. Eram seis homens armados com revólveres e fuzis, à paisana. Estavam ali para levar todos os redatores. O Alcino, responsável naquela hora, explicou que não tinha mais nenhum redator, coisa e tal.

— Cadê o Paulo Francis? Queremos ele primeiro — vociferou o que parecia chefe do grupo, brandindo um revólver enorme.

— O Francis quase não vem aqui — respondeu o titubeante Alcino.

— Não interessa. Liga para ele vir — apontando o telefone —, inventa qualquer coisa.

Pobre Alcino, ligar logo para quem? Ele liga e inventa, sob a mira do revólver:

— Perdemos sua matéria, você pode trazer pra gente?

Francis soltou vários impropérios. Se quisessem, que fossem pegar.

Sobrou para quem? Haroldo.

Dois deles pegaram o carro do jornal e foram comigo para a Rua Barão da Torre, em Ipanema, no apartamento de dois quartos do Francis. Subimos os três. Cada um deles se postou de cada lado da porta para não serem vistos pelo olho mágico. Toquei a campainha. Abre a porta um Paulo Francis transtornado, de pijama, já com o pau na mão para me dar uma mijada.

— Porra, Haroldinho, que merda é essa?

E os dois passam na minha frente:

— O senhor precisa vir conosco!

— Vocês podem esperar eu trocar de roupa e fazer uma malinha, por favor? — disse, tranquilo, escolado por várias detenções anteriores.”

DESTINO, VILA MILITAR

Nos dias seguintes, as prisões continuaram: Ziraldo, o fotógrafo Paulo Garcez, o cartunista Fortuna, José Grossi (diretor de publicidade), Flávio Rangel, Luiz Carlos Maciel, Jaguar, Sérgio Cabral, Tarso de Castro. Todos levados para um quartel do Exército na Vila Militar, Zona Oeste do Rio.

Haroldo e seus companheiros presos no fechamento do jornal foram libertados depois de dois ou três dias. Os milicos queriam mesmo os cabeças do jornal. E que cabeças incríveis eram aquelas! Grandes articulistas, cartunistas geniais.

Só não foram presos Millôr Fernandes e o cartunista Henfil, porque não foram encontrados pela polícia. A secretária de redação Martha Alencar chegou a ser detida, mas foi liberada no dia seguinte. Estava grávida. E foi graças ao esforço de Martha, Millôr, Fortuna e de uma grande equipe de colaboradores solidários que o jornal continuou circulando, durante os dois meses em que a equipe esteve presa.

Os militares, se quisessem, poderiam impedir que o Pasquim continuasse circulando. Mas a popularidade do jornal era tamanha que eles decidiram não passar recibo. Preferiram sufocar o jornal aos poucos, com censura rigorosa para diminuir a tiragem do jornal e afastar anunciantes.

“A GRIPE” PEGOU TODO MUNDO

Como a imprensa estava sob rigorosa censura, as prisões não puderam ser noticiadas. Por isso, o sumiço repentino da turma ficou conhecido, entre os amigos, como “a gripe”. Haroldo conta que foi Chico Buarque que criou essa expressão, em carta que foi publicada no jornal:

— Os principais articulistas e humoristas no xilindró. Redação desbaratada. E aconteceu a maior mobilização de solidariedade de intelectuais já vista. Antonio Callado, Rubem Braga, Rubem Fonseca, Glauber Rocha, Paulo Mendes Campos, Hugo Carvana, Carlos Heitor Cony, Noel Nutels e muitos outros, cortesmente, muniram o jornal com suas colaborações durante os dois meses de prisão. Chico Buarque batizou o sumiço dos redatores das páginas de a gripe, em carta publicada no jornal — “Eu queria abraçar vocês, mas não tinha ninguém aqui. Deve ser por causa da gripe. Ninguém segura essa gripe. Assim mesmo, estimo melhoras”. A pièce de résistance nesse momento foi Martha Alencar, chefe de Redação, que mobilizou toda a turma.

MOCOTÓ INDIGESTO

Parece que tudo estava escrito para dar errado naquele ano de 1970. Jaguar, que não tinha sido preso nos primeiros dias, por estar fora do Rio, fez uma montagem com o quadro “Independência ou morte”, de Pedro Américo, no Pasquim número 71. Ele substituiu o famoso brado da versão oficial por “Eu quero mocotó”, em um balãozinho que saía da boca de D. Pedro I. A frase foi extraída de uma música de Jorge Ben, que ainda não era Benjor. Na época, mocotó era uma gíria para pernas femininas bonitas.

A música já tinha dado um problema enorme poucos dias antes das prisões, no V Festival Internacional da Canção, no Maracanãzinho. Ela foi cantada pelo maestro Erlon Chaves, com uma coreografia em que ele, negro, beijava algumas jovens louras com roupas colantes, cor da pele. Isso há 50 anos, tempo de muito mais racismo e conservadorismo do que atualmente. A mídia conservadora caiu de pau. O maestro teve que depor na Polícia Federal e ficou 30 dias proibido de trabalhar.

Nesse clima, a charge-montagem do Jaguar enfureceu ainda mais os militares, que já estavam com o Pasquim na alça de mira desde sua criação, no ano anterior.

Em entrevista ao Jornal da ABI de maio de 2009 Jaguar conta que ao saber que estava sendo procurado pela polícia em princípio pensou em não se entregar:

— Eu tava viajando, na minha casa de pescador lá em Arraial do Cabo. Quando voltei, me aconselharam. “Se esconda Jaguar, tá todo mundo preso!”. Pra você ver como o Brasil é surrealista, eu fiquei na casa do sujeito que era um dos mais reacionários: Flávio Cavalcânti. Ele me escondeu! Ninguém iria procurar um “subversivo” na casa do Flávio Cavalcânti! (risos) E tinha uma outra subversiva comigo, que era uma maravilha de companhia, a Leila Diniz. Eu ficava o dia todo tomando uísque. Até que um dia, não sei como, eu recebo uma ligação do Paulo Francis, lá da cadeia. Ele dizia que eu tinha que me entregar pois, caso contrário, ninguém seria solto. Eu me entregando, todo mundo sairia… Aí, eu falei: “Ô Francis, porra! Tá maluco, rapaz? Eu vou ficar preso e vocês também vão continuar aí!”. E ele falou assim: “A sua consciência é que responde isso”. Fudeu, né? Pensei. “E agora?”. O Sérgio Cabral também tava escondido. E eu perguntei: “Sérgio, o que você acha?”. “Vamos lá”, respondeu. E o Flávio Rangel, que não estava sendo procurado por nada, gritou: “Eu também vou!”. (risos) O lugar era lá na Vila Militar, na Zona Oeste, longe pra cacete! E eu ainda tive que pagar o táxi! Chegando na porta da Vila Militar eu mandei o táxi parar. E o Sérgio Cabral pra mim: “O que foi, mudou de idéia?”. “Não, mas vamos pro boteco mais próximo!”. Tomei meia garrafa de cachaça, depois voltei e me entreguei. Cheguei e pedi para falar com um oficial. “Eu sou o Jaguar, estou sendo procurado…”. “Ah, é? Prendam esse cara aí!”. E lá fiquei por dois meses.

TENENTE IMPEDE SEQUESTRO DA EQUIPE

Jaguar lembra que durante a temporada da equipe na prisão aconteceu um episódio que poderia ter graves consequências. Um comando de militares de extrema-direita, do quartel da Polícia do Exército, na Rua Barão de Mesquita, onde muitos opositores da ditadura foram torturados, tentou sequestrar os jornalistas do Pasquim. O grupo foi impedido por um tenente.

— A Polícia do Exército, ali do batalhão da Tijuca, resolveu sequestrar a gente. Aí, sim! A gente ia se fuder, né? Os caras entraram na Vila Militar pra levar a gente na mão grande. Eles, sei lá, achavam que a gente tava levando uma vida muito mansa, e quiseram dar uma ’dura’ na gente. E o Tenente Macieira pegou a metralhadora e disse: “Se derem um passo, eu atiro!”. Só aí é que os caras foram embora. Nossa sorte era que o Tenente Macieira era um soldado mesmo, ou seja, ele atiraria pra valer. E aí os caras desistiram.

No fim de dezembro de 1970 quase toda a equipe do Pasquim foi libertada. Apenas Tarso de Castro continuou preso, até janeiro de 71, mais um ano dificílimo para o jornal, lembra Haroldo Zager.

— Foi o ano do revés […]. Tiragens caindo assustadoramente — os jornaleiros se recusavam a vender o jornal, com medo de terem suas bancas incendiadas. Os leitores não tinham coragem de levar O Pasquim na mão — quando muito, compravam e escondiam dentro de outra publicação qualquer. Grandes anunciantes cancelando contratos, com receio de retaliação do regime militar. Ninguém queria se arriscar.

A situação financeira do jornal foi ficando cada vez mais difícil. Salários atrasados, a gráfica cobrando faturas. O clima azedou. Haroldo, que mais tarde se tornou  editor do Pasquim, conta que os colegas, até ontem “amigos de infância”, começaram a se estranhar. Tentavam, inutilmente, encontrar culpados para os problemas financeiros do semanário que fez história na imprensa brasileira.

–A patota do Pasquim nunca mais foi a mesma. A porra-louquice perdeu. Ficamos muito sérios. Viramos oposição.

*Rogério Marques, jornalista, conselheiro e membro da Comissão de Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos

Publicado em: 17 de nov de 2020 às 14:13