Vladimir Herzog: memória em defesa da democracia


27/07/2020


A repórter Débora Rocha Pontes

 

Vladimir Herzog: vida e memória em defesa da democracia

por Débora Rocha Pontes

Conheci o Acervo Vladimir Herzog aos 19 anos, na ocasião de seu lançamento, na última semana de junho deste ano, na qual também entrei para a equipe do Instituto Vladimir Herzog, como estagiária. Eu, mulher, nordestina, desde nova preocupada e envolvida com as causas sociais e políticas do país, pouco sabia de Vlado – de conhecimento restrito à foto tão difundida de seu suicídio forjado, quando morto pela Ditadura Militar brasileira, em 1975, retrato dos horrores de um período tão obscuro da nossa história.

Para além disso, contudo, o que acessei a partir do Acervo e do Instituto, surpreendentemente, foi um mundo. Superar a limitação da narrativa que se restringe à morte e conhecer a Vida inspiradora de Vladimir Herzog traz tantas e quão preciosas podem ser as dimensões da pessoa humana, em suas relações sociais ou em suas manifestações políticas – pois quase tudo que fazemos é político -, seja por meio do trabalho, dos pensamentos, das falas ou da maneira de se relacionar. O Acervo Vladimir Herzog, que reúne mais de 1.700 itens digitalizados sobre a trajetória de Vlado, revela com franqueza o jornalista, cineasta, professor, pai, marido, amigo e tantas outras funções que desempenhou; transversal a todas elas, a postura de cidadão engajado.

Em Londres, Vlado e Clarice com um casal de amigos

As correspondências pessoais e as fotografias me transportaram àquela esfera tão íntima, da linguagem e do campo da afeição dessa figura. Me comovi com sua amizade com Fernando Pacheco Jordão – que hoje nomeia o Prêmio Jovem Jornalista do Instituto -, inúmeras vezes retratada, inclusive na estadia compartilhada entre as famílias em Londres, à época que Herzog trabalhava na BBC. Também as trocas com a família Szmrecsányi, narrando sobre o crescimento de seus filhos, André e Ivo, as angústias e os anseios de retornar ao Brasil, diante das tenebrosas perspectivas da Ditadura.

Profissionalmente, de vastíssima produção, seja no campo do Cinema, do Jornalismo, ou ainda na docência, as matérias jornalísticas me conquistaram por demonstrar o posicionamento firme e tão atual de Vlado. Na Revista Visão, já na posição de editor, com passagens de forte tom crítico e político, falou em dezembro de 1973 sobre o Movimento Estudantil universitário cerceado pela Ditadura Militar, que ainda resistia realizando encontros nacionais – o que me toca intimamente, como membro do movimento estudantil secundarista no Rio Grande do Norte que fui, estado de muita luta e relevância histórica no cenário.

Vlado em sua mesa de trabalho na TV Cultura

No eixo da educação, também escreveu sobre ensino telepresencial, em 1974, na Visão, indicando a dificuldade de acesso aos meios necessários para tal fim em uma sociedade majoritariamente pobre – tema tão atual para nós, em 2020, com o alargamento da educação à distância e impossibilidade de aglomerações presenciais, neste contexto de pandemia. Nesse campo, também falou sobre a crise na educação básica brasileira e sobre a inclusão dos cursos de Educação Moral e Cívica em todos os níveis de ensino, durante a Ditadura, e todas as suas implicações negativas.

Especial afeição tenho pelo seu posicionamento em matérias no jornal O Estado de S. Paulo, onde trabalhou de 1959 a 1963, retratando as más condições de vida e de trabalho dos pescadores, sobre os quais viria a dirigir e roteirizar seu único filme, Marimbás, que também consta no Acervo. Percebo evidente a noção crítica, os pescadores que dormiam em suas próprias canoas, a fome, a perda da identidade e o gritante recorte de classe e raça, em uma maioria esmagadora de negros que subsistiam da pesca precária, e que, ainda assim, resistiram em sua própria existência coletiva, exprimindo uma subjetividade marcada pela música, pelo trabalho e pela praia.

Vladimir Herzog e Fernando Jordão, na redação da BBC, em Londres

A relevância disso tudo é latente aos dias atuais! A história não é linear, e a Memória ocupa uma posição crucial para compreendermos o nosso passado e construirmos um novo presente. Vemos, hoje, uma incessante tentativa de apagamento da nossa História, intensas disputas de narrativas e a negação da realidade. Para além disso, as desigualdades sociais retratadas nas produções de Vladimir Herzog e as inúmeras opressões que se alinham historicamente às estruturas marginalizantes de raça, classe e gênero na sociedade brasileira ainda seguem.

Falar de Vlado é falar de uma luta pelas Liberdades Democráticas, pelo Estado de Direito e pela dignidade da pessoa humana que não morreu com ele; que, pelo contrário, foi traçada e defendida por toda sua vida. É nessa figura, do Vlado vivo, que a juventude, como eu, pode encontrar inspiração e fôlego para continuar no engajamento por uma sociedade mais justa, igualitária, e que, acima de tudo, atue em defesa da vida.