04/05/2020
Por Claudia Sanches
No dia 22 de março, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro confirmava o primeiro caso de contaminação por coronavírus na Cidade de Deus, zona oeste da cidade. Hoje as favelas já registram 330 casos confirmados, com 68 óbitos. Coletivos e veículos independentes se reinventam para enfrentar a crise e levar informação de qualidade à população, contra as notícias falsas que circulam nas redes sociais. A diversidade do noticiário também é estratégia para atrair o maior interesse do público.
Com cerca de dois milhões de moradores – a maioria vivendo em casas pequenas, pouco arejadas e com muitos moradores -, o desafio do poder público é a prevenção da propagação do novo coronavírus nessas áreas. Mário Roberto Dal Poz, professor de Medicina Social da Uerj, alerta para a vulnerabilidade dessas populações:
“As populações que moram nessas comunidades já têm uma prevalência grande de doenças de base, como tuberculose, hipertensão, diabetes, entre outras enfermidades. O impacto do coronavírus pode ser muito mais grave, a tragédia pode ser muito grande”.
No Complexo da Maré, composto por 16 favelas, na zona norte do Rio, comunicadores populares criaram o coletivo Frente de Mobilização da Maré. A jornalista Gizele Martins, moradora e integrante do projeto, que trabalha há 20 anos com comunicação comunitária, conta que o trabalho reúne diversos comunicadores populares da linha de frente, em uma ação voltada para a linguagem da favela, com diferentes ferramentas de comunicação para atingir o maior número de moradores.
Entre as estratégias utilizadas estão os carros de som, que passam todas as semanas nas ruas falando sobre a importância do isolamento social e dos sintomas da doença; arte de rua; apresentação de vídeos com profissionais de saúde abordando a doença e a virose; entrevistas; divulgação de matérias; faixas estendidas pelas favelas e cartazes em associações de moradores, igrejas e postes. “Pensamos nas diversas formas de comunicação porque não são todos na favela que sabem ler ou têm acesso à internet”, diz Gizele.
O trabalho é focado na solidariedade entre as pessoas, já que boa parte dos moradores não possui condições mínimas de sobrevivência. “Além das informações sobre a importância do isolamento social, estamos frisando as nossas mensagens: Para quem não tem água, solicitar a quem tenha, e quem tem,que divida com quem não tem, para garantir o mínimo de direitos entre os moradores”, enfatiza a comunicadora.
O projeto também conta com uma campanha de arrecadação financeira para ajudar a custear a produção da comunicação – como o carro de som alugado, a confecção de faixas, cerca de 30 por semana – e a compra de alimentos para doação de cestas básicas e materiais de higiene. O coletivo está cadastrando as famílias em maior situação de vulnerabilidade.
“Maré diz não ao coronavírus”
A organização Redes da Maré, com o apoio de associação de moradores e outras instituições, se mobiliza na campanha “Maré diz não ao coronavírus”. Já foram arrecadadas, desde o dia 23 de março, mais de 7 mil cestas de básicas e kits de higiene, totalizando 323 toneladas de alimentos. A ação também incluiu ajuda de custo para 12 mulheres que perderam suas rendas, e distribui refeições a moradores de rua. Na Páscoa, foram distribuídos 4.800 coelhos de chocolate às crianças da comunidade.
Estão sendo desenvolvidas também iniciativas na área de comunicação, como a “Se liga no corona”, em parceria com a FioCruz, com materiais gráficos, impressos e online, voltados para a prevenção da doença, matérias no jornal Maré de Notícias, radionovelas, spots para carros de som e rádios comunitárias, podcast, entre outros.
A assistente social Fernanda Viana, que também trabalha na Frente Associação Redes Desenvolvimento da Maré, conta como é fazer quarentena dentro de uma comunidade. Fernanda é voluntária na distribuição das cestas básicas, recebe e ajuda a retirar os alimentos do caminhão, no Centro de Artes da Maré. Ela já sai com uma lista de famílias mapeadas pela associação. Segundo Fernanda, a abordagem “fique em casa” está funcionando e as aglomerações diminuíram, apesar de o afastamento social não chegar a oitenta por cento.
“Temos situações agravantes. Nem todo mundo tem janela nas suas casas, a nossa realidade são moradias que chamamos de meio barraco. Muitas pessoas dormem na sala, as casas aqui são cheias de mofo, por causa da localização geográfica, na maré. É difícil pedir pra que uma família de sete ou oito pessoas fique em casa quando você não tem o mínimo de conforto e privacidade. Estamos acostumados a compartilhar muito o espaço público, já que não existe quintal e varanda aqui nas casas da Nova Holanda. Mas os moradores têm feito o que podem”, relata Fernanda.
Outra questão, segundo ela, são os “subempregos”, como camelôs, faxineiras, cuidadores de idosos, entre outras funções. “Essas pessoas estão sem renda porque os patrões estão dispensando. Quando se perde essa forma de subsistência, é muito cruel. A gente consegue ver de fato o desespero se materializando. Essas pessoas estão sem renda. Antes, se conseguia ainda levar o pão para casa, agora não. Houve casos em que entregamos as cestas básicas e as famílias estavam sem gás. Os moradores de favelas já estão acostumados a partilhar. A dificuldade de um acaba se tornando a do outro. A solidariedade é muito pulsante. Eu, como moradora daqui, não poderia ser diferente”, afirma Fernanda.
“Na favela é outra coisa”
No Complexo do Alemão, também na zona norte do Rio de Janeiro, os moradores e comunicadores criaram o “Gabinete de Crise” para colocar em prática ações de prevenção da Covid-19, que levem em conta a realidade da comunidade. Também o jornal Voz das Comunidades vem trabalhando na linha de frente desde o início da quarentena para alertar e informar os moradores sobre a Covid-19.
“No início da pandemia, faixas foram espalhadas pela comunidade, carro de som circulavam com informações sobre as medidas de prevenção e sobre grupos de riscos. Eram divulgados noticiários diários, esclarecimentos sobre a doença, com especialistas da área da saúde e suporte jurídico sobre os benefícios concedido pelo governo. Existe também uma equipe que trabalha com doações, mantendo todos os cuidados necessários de prevenção ao coronavírus, seguindo a orientação da Organização Mundial de Saúde (OMS). Eles se reúnem em escala e levam diretamente as doações para a comunidade”, informa a jornalista comunitária e moradora da comunidade, Neila Marinho.
Segundo ela, os kits para doação são preparados no gabinete de crise, local que serve como depósito do material arrecadado.As doações são distribuídas em várias partes da comunidade e atendendo, principalmente, famílias mais vulneráveis. Ainda não há um balanço geral de famílias beneficiadas, pois as doações chegam e são distribuídas rapidamente.
“Vivenciamos os resultados dos nossos planos com êxito. Há alguns fatores que desafiam o isolamento social dentro de uma favela, como moradias pequenas e aglutinadas, com poucos cômodos e famílias grandes, falta de saneamento básico e escassez de água. As dificuldades se tornam ainda maiores quando falamos da circulação do ar e da fome, que já existe antes mesmo da pandemia. A pandemia só vem para reforçar ainda mais a carência que a periferia sofre. Na favela é outra coisa”, ressalta Neila.
A campanha “Pandemia com empatia” surgiu da necessidade de ajudar a comunidade que já enfrenta tantos problemas, e, com a pandemia, as condições de atender às medidas básicas de prevenção ao Covid-19 só pioraram. A campanha teve a adesão de outros coletivos da comunidade, como o Coletivo Papo Reto e Mulheres em Ação, que uniram forças para ajudara favela no combate do coronavírus.
“Nosso trabalho é divulgado em todas as redes sociais, no nosso site, e em breve teremos o nosso aplicativo, que está em fase de planejamento”, diz Neila, ao explicar que doações estão sendo distribuídas em várias partes da comunidade. Mas a quantidade não é suficiente para atender a demanda.
Dona Andréia, costureira, moradora da comunidade do Coqueiro, que agora trabalha na produção de salgados para sustentar a família de cinco pessoas, relata como tem sido seu cotidiano no isolamento social. Além das dificuldades financeiras, ela conta com tristeza como é não poder dar um abraço em seus filhos, além de ter que se manter distante do marido.
“É complicado, muita gente, muita casa perto uma da outra, um beco bem estreito, sem ventilação. Ficamos com um pouco de medo, fora as pessoas que não se protegem. Eu, meu marido e filhos nos mantemos distantes uns dos outros. Até podemos abrir a janela, mas não temos ventilação. Abro a janela e dou de cara com a parede dos vizinhos. Então, ligo o ventilador. Essa pandemia está afetando muito a gente, e não poder dar um abraço nos meus filhos e ouvir eles pedindo: “mãe, eu quero um abraço”, dói muito. Meu filho de oito anos quer me dar um abraço e eu digo que não pode”, relata a moradora.
Dona Andréia conta ainda que aprendeu a fazer salgados com o marido, que ficou desempregado por conta da crise.“Muitas encomendas foram canceladas mas a sorte foi o Bolsa-Família. Essa foi minha renda que me permitiu comprar os alimentos para a casa. As crianças estão morrendo de saudade de brincar e isso já está afetando a cabeça delas. Quando vou e volto da rua, tomo banho, passo álcool, mas, mesmo assim, tenho medo pelos meus filhos”.
Clinica da Família em parceria
A equipe do Voz das Comunidades está em contato com muitos médicos das Clínicas da Família que atendem a região do Complexo do Alemão. Para divulgar os atendimentos diante da pandemia, foi criado um painel com informações dos pacientes .Os dados são atualizados diariamente.
Os pacientes considerados casos suspeitos de contaminação,passam por atendimento específico para verificar todos os sintomas. Não basta estar com dor de cabeça, nem ter febre somente. Os números de casos confirmados e de óbitos registrados no painel da prefeitura e no painel da Clínica da Família Zilda Arns acabam não coincidindo, devido à falta de testes.
O Complexo do Alemão é reconhecido como bairro desde 1993, mas a maioria dos CEPs que compõem a região ainda sinalizam os diferentes bairros em que o Complexo está inserido, como Inhaúma, Ramos, Bonsucesso e Olaria.
Sendo assim, no painel da prefeitura, os casos acabam sendo divididos entre esses bairros, ao invés de aparecerem unificados como Complexo do Alemão.
Em ação, a primeira agência de notícias de favela
A Agência de Notícias da Favela (ANF), fundada pelo comunicador e diretor da agência, André Fernandes, possui cerca de 500 colaboradores espalhados em centenas de comunidades em todo o Brasil. Na ação de combate ao coronavírus, a organização está fazendo atualmente duas campanhas. Uma, de arrecadação de recursos financeiros para doar às famílias mais carentes. Já foram distribuídos R$100,00 para cada uma.
A outra iniciativa é uma campanha de informação sobre a contaminação do vírus por meio do papel-moeda, já que milhares de pessoas estão recebendo o auxílio emergencial do governo. “O pagamento sem contato pode ser feito através de vários aplicativos, evitando contágio através de dinheiro”, esclarece André.
O principal desafio dos comunicadores, de acordo com André, é transmitir informações sobre o perigo de contrair ocoronavírus, total de pessoas morrendo, e desmentir as chamadas fake news.
“As pessoas morrem porque acreditam nas informações falsas. Infelizmente, no Rio de Janeiro, onde existem em média 800 favelas, as pessoas não estão conscientizadas, não estão respeitando a quarentena, até porque precisam sobreviver e os patrões não estão nem aí”.
O trabalho de comunicação comunitária começou há 30 anos e, há 20, a agência colocava no ar o site da ANF – a primeira agência de notícias de uma favela no mundo, “que foi noticiada pela Reuters”, lembra o diretor.
A ANF possui hoje “A Voz da Favela”, um jornal impresso com cem mil exemplares, com circulação no Rio e na Bahia; o portal “ANF Online”; e as redes sociais.
“A principal orientação é fique em casa, o que é difícil para a população das favelas, e depois a higienização. Use máscara e álcool em gel. Ao entrar em casa, tire a roupa e coloque para lavar, lave as mãos. Outras ações são os cards de informação, publicados nas redes sociais e no portal. Criamos ainda um grupo para desmentir fake news”, ressalta André.