Um debate sobre a remuneração ao conteúdo jornalístico


24/06/2022


Luiz Queiroz, jornalista (*)

Desde o início do ano passado, o deputado Orlando Silva (PCdoB) tem procurado manter em seu Projeto de Lei nº 2.360 um artigo (Artigo 38 e parágrafos) cujo objeto central é estabelecer um princípio sobre a remuneração ao conteúdo jornalístico pelas plataformas de Internet. O princípio foi inserido no texto deste projeto, conhecido como “PL das Fake News”, por ação de uma coalização de empresas do setor de Comunicações. Mas ele vem enfrentando resistências.

Dos jornalistas? Não, os jornalistas simplesmente ficaram alheios à discussão. Ao constatarem que as empresas do setor se movimentaram para colocar esse princípio, as entidades que representam nacionalmente os jornalistas, salvo algumas exceções, imediatamente se colocaram contra a proposta ou simplesmente deixaram de discutir a questão com o deputado e relator do projeto.

A motivação para tal “omissão” da categoria por meio de sua representação foi lastreada no argumento de que o “assunto mereceria uma discussão posterior pelo Congresso Nacional”, na forma de um “projeto de lei específico para regulamentar a questão”. O Artigo 38 do PL 2630 nada mais faz do que estabelecer um princípio, não tem efeito imediato sobre a remuneração dos jornalistas profissionais: “Os conteúdos jornalísticos utilizados pelos provedores produzidos em quaisquer formatos, que inclua texto, vídeo, áudio ou imagem, ensejarão remuneração às empresas jornalísticas de direitos de autor, na forma de regulamentação, que disporá sobre os critérios, forma para aferição dos valores, negociação, resolução de conflitos, transparência e a valorização do jornalismo profissional nacional, regional, local e independente”.

Ou seja, se aprovado o “caput” deste artigo, o efeito prático na questão da remuneração é nenhum. Apenas ele força a uma regulamentação pelo Poder Executivo, no qual estariam estabelecidas as regras para o pagamento do jornalista profissional que detenha um CNPJ e registro profissional. Nos três parágrafos subsequentes podem até conter algum esboço de regulamentação, mas os efeitos práticos deles dependeriam da participação dos jornalistas no debate, para estabelecer e orientar junto ao deputado, sobre a conveniência de mantê-los no corpo do texto do projeto. Coisa que não houve também.

São três os parágrafos, que resumidamente destacam o seguinte:

1 – O primeiro excetua da remuneração os casos em que o conteúdo apenas use e direcione hiperlinks para o conteúdo original. Significa que, se você compartilhar uma reportagem de um jornal em seu blog ou página em rede social, ele não irá te remunerar por isso. Afinal de contas, o conteúdo não é seu.

2 – Quem terá acesso à remuneração será a pessoa jurídica, mesmo que microempreendedor individual, que venha há mais de um ano veiculando o seu conteúdo jornalístico em rede de Internet. O prazo conta a partir da publicação da lei. E frisa que a remuneração alcançará aquele que “produza conteúdo jornalístico original de forma regular, organizada, profissionalmente e que mantenha endereço físico e editor responsável no Brasil”.

3 – Permite a negociação coletiva de pessoas jurídicas e estabelece um regramento para a remuneração, o que fortalece o interesse da categoria. Um simples blog ou página de conteúdo jornalístico teria como enfrentar sozinha uma negociação com uma multinacional?

A ausência das representações de classe acabou abrindo o caminho para que outras organizações, que não representam os jornalistas, ficassem livres para atuar junto ao deputado Orlando Silva. Curiosamente condenando a proposta, sob o argumento de que ela não é boa para os jornalistas, mas ideal para as empresas. Mas como? se a proposta justamente trata de pessoas jurídicas, mesmo que sejam pequenos microempreendedores e não apenas o jornalista na condição de Pessoa Física? Outra coisa que considero mérito na proposta do deputado Orlando Silva: ela beneficiaria apenas e tão somente os “jornalistas profissionais”, aqueles efetivamente são portadores de diploma e do registro profissional.

A organização que mais tem combatido a proposta é a Coalizão Direitos na Rede, uma junção de várias organizações sociais que não representam os jornalistas, embora contem com alguns elaborando complicados discursos sobre o tema, mas que não tem em seu “DNA” a experiência da profissão ou mera passagem pelas redações destes veículos. Entretanto essa Coalizão alega estar falando pelos jornalistas, como se estivesse atuando numa espécie de “intermediária” da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), que passou ao largo do debate do PL em várias audiências realizadas por Orlando Silva. Para conhecer os grupos integrantes da Coalizão Direitos na Rede basta clicar em sua página na Internet.

Com um discurso propondo uma “discussão mais aprofundada” da questão, essa organização acabou favorecendo as plataformas que não querem que o Brasil, a exemplo do que vem ocorrendo na Europa e Oceania, estabeleça uma regulamentação para o pagamento pelo conteúdo jornalístico profissional. Quem mais vem atuando no lobby contrário a essa legislação tem sido o Google que, de forma agressiva, vem negociando diretamente com as empresas, em troca delas abandonarem a causa no Legislativo. Os argumentos, confusos, da Coalizão Direitos na Rede, vocês podem conferir no Youtube. A primeira impressão que certamente terão é que a entidade, ao mesmo tempo em que defende o adiamento dessas discussões, coloca sobre a mesa como argumentos para um debate, justamente a regulamentação de algo que rejeita como proposta legislativa e só quer ver discutida no futuro. Ou seja: colocou o carro na frente dos bois.

Por que motivo essa entidade entrou no circuito? Aparentemente a Coalizão e, em paralelo, a Fenaj, defendem a criação de um Fundo público para o financiamento da atividade jornalística em rede. A experiência de Fundos no Brasil não é boa para os setores econômicos que pagam pela exploração de alguma atividade econômica. Por exemplo cito o FUST – Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações. Há pelo menos 20 anos, desde a privatização do setor, as empresas recolhem um porcentual pela exploração do serviço. O resultado prático é que se estima que o FUST já arrecadou mais de R$ 20 bilhões, mas permaneceu represado nos cofres do governo para efeito de superávit fiscal. Há outros casos rumorosos como o FNDCT (financia a pesquisa na área de Ciências) que vem sistematicamente encolhendo, pois o governo sempre recorre à ele para fazer caixa para outros projetos, como o do Auxilio Emergencial. Estima-se perdas de mais de R$ 7 bilhões nos últimos anos.

Outras questões ainda não estão claras: 1 – quem iria gerir esse Fundo, 2 – como seriam escolhidos os integrantes do comitê gestor dele? 3 – Em cima de que valores seriam cobrados já que as plataformas de Internet não são claras sobre quanto faturam no Brasil? A Coalizão Direitos na Rede, que efetivamente não representa os jornalistas, teria assento nesse conselho? Que projetos seriam apresentados por ela e qual seria a efetiva participação de jornalistas? Seriam apenas os responsáveis para dar um ar de legalidade à eles?

O Brasil está atrasado nessa discussão da remuneração do conteúdo jornalístico profissional. Já existem iniciativas dando certo na Austrália, no Canadá e em países da Europa (Espanha e França). Há uma farta difusão de notícias no exterior informando sobre como andam esses processos em outras países. (Abaixo indico alguns de referência para leitura).

Ainda há tempo para os jornalistas profissionais brasileiros por meio de suas representações lutarem pelo estabelecimento de um princípio mínimo na nova lei, que abrirá um canal futuro para a discussão da forma como serão remunerados pelo seu conteúdo veiculado de graça nas redes sociais, mas que geram bilhões de reais para essas plataformas através da publicidade. Esqueçam o bom e velho ranço do “se é bom para as empresas, não é bom para os trabalhadores”. Estamos tratando aqui de uma discussão que envolve indistintamente todas as empresas; seja um portal de notícias ou um jornalista que detenha há mais de um ano na Internet um pequeno blog.

Algumas referências para leitura:

a) Saving journalism: Worldwide interventions

b) Deliberate ploy: whistleblowers reveal why Facebook’s Australia news ban included non-news sites

c) Como o Google e a busca por cliques destroem o jornalismo

d) Pedido para que plataformas paguen a medios por contenidos surge con fuerza en reunión de la UNESCO en Uruguay

 

  1. (*) Este texto é de responsabilidade exclusiva do seu autor, não refletindo, necessariamente, a opinião da direção da ABI.