24/07/2019
Ao comentar a recente (e falsa) polêmica criada em torno do jornalismo exercido pelo site The Intercept com a divulgação de diálogos de membros da Força Tarefa da Lava Jato de Curitiba pelo aplicativo Telegram, o jornalista Luiz Claudio Cunha traçou um paralelo entre as publicações de agora com as revelações mundialmente famosas do ‘Caso Watergate’ – divulgadas pelo Washington Post, em 1972, e os ‘Papéis do Pentágono’, do The New York Times, em 1971. Dá uma verdadeira lição a respeito do papel real dos jornalistas e da imprensa em geral, o que leva a ABI a considerar fundamental a divulgação de seu texto.
Cunha, para quem não o conhece, gaúcho de Caxias do Sul, aos 68 anos, completou 50 de jornalismo. Passou pelas principais redações brasileiras, atuando desde Londrina, no norte do Paraná, onde iniciou como locutor da Rádio Londrina, até Brasília, onde hoje reside. Mas sua fama maior na categoria veio de sua passagem pela direção do escritório da Editora Abril, em Porto Alegre, nos anos 70. Ali, em abril de 1974, fez a primeira entrevista com Leonel Brizola, então vivendo no exílio, no Uruguai.
Foi, porém, em novembro de 1978 que, a partir de um telefonema anônimo, ele e o fotógrafo J.B.Scalco conseguiram registrar em Porto Alegre o sequestro de um casal de militantes de esquerda uruguaios, pela conhecida Operação Condor (que reunia, ilegalmente, a repressão política do Brasil, Uruguai, Argentina e Chile). Graças à reportagem da dupla, Universindo Díaz, Lilian Celiberti e seus dois filhos, Camilo e Francesca, se tornaram os únicos sobreviventes daquele grupo de militares.
As denúncias publicadas na Veja – por dois anos a dupla de repórteres continuou buscando e divulgando informações sobre o caso – garantiu não apenas a sobrevivência dos quatro uruguaios. Rendeu a Cunha e Scalco o Prêmio Esso de Jornalismo daquele ano. O primeiro de uma série que Cunha acumula hoje na sua vida profissional e que estão relacionados na Wikipédia.
Na análise que faz a partir das divulgações do The Intercept, Cunha mostra que o atual ministro da Justiça, Sérgio Moro, traçou uma dupla linha de defesa objetivando atingir a dois públicos distintos: os que o apoiam e os que o criticam.
Derrapou, porém, na falta de conhecimento histórico dos casos aos quais recorreu para tentar criticar o trabalho jornalístico do site comandado por Grenn Greenwald, justamente o Caso Watergate’ e os ‘Papéis do Pentágono’.
“Agreste, o ministro se embrenhou em um terreno inóspito e desconhecido, tentando contrapor o que acha “mau” jornalismo do Intercept ao “bom” jornalismo do The New York Times e do The Washington Post em duas coberturas emblemáticas da imprensa lembradas por Moro — o ‘Caso Watergate’ e os ‘Papéis do Pentágono’”, adverte Cunha, antes de iniciar sua verdadeira aula sobre tais casos.
As críticas de Cunha, porém, não se limitam ao ex-juiz e atual ministro da Justiça. Atingem também aos “coleguinhas” que, na visão dele, “sucumbiram como rústicos antagonistas dos princípios essenciais do bom jornalismo”.
No artigo – “Sérgio Moro e os antagonistas do jornalismo sério e relevante“, originalmente publicado no Observatório de Imprensa -, ele expõe:
“Mas o que mais espanta, de fato, é o número no Brasil de sites, blogs e articulistas amestrados que, esquecidos dos fundamentos que o ministro não conhece nem respeita, sucumbiram como rústicos antagonistas dos princípios essenciais do bom jornalismo. Gastam o espaço de suas colunas e a lábia de seus vídeos repetindo com ar beatífico a cantilena de que o vasto material vazado do Telegram é a “invasão de um hacker sobre conversas privadas, produto de um roubo, material de autenticidade duvidosa, um crime cibernético, sujeito a manipulações, etc.” Os antagonistas do bom e relevante jornalismo acusam — sem provas — o mensageiro de crime, ignorando a gravidade incontestável das mensagens, que apontam para o criminoso desequilíbrio da justiça e a parcialidade bandoleira de quem tinha o compromisso de preservar o direito e a lei.“
Em seguida, ele entra no cerne do papel dos jornalistas em sociedades democráticas, ao mostrar o compromisso da categoria com os seus verdadeiros clientes, isto é, a população à qual é destinada a informação:
“O Intercept agora, e no passado o Times, o Post e o Guardian, ao publicar suas denúncias de impacto levaram em conta o interesse maior do cidadão e das sociedades constitucionalmente livres — o direito absoluto que, nas democracias, tem o povo de saber a verdade, toda a verdade, nada mais do que a verdade transparente sobre o que fazem seus governantes. A lei não existe para proteger o segredo de malfeitos, nem para proteger a privacidade de malfeitores investidos de autoridade.”
Buscando levar aos nossos associados e os leitores do site de uma forma em geral o debate em torno do verdadeiro papel da imprensa, a direção da ABI entendeu ser sua obrigação trazer ao conhecimento de todos o texto que, como afirmamos, originalmente está no Observatório de Imprensa. Trata-se de uma visão pessoal de Cunha da qual muitos podem discordar, outros assinarão embaixo endossando. Mas nenhum jornalista deve desconhecer, tal a importância deste debate no momento atual. Abaixo reproduzimos o início do longo artigo dele para depois endereçarmos os leitores interessados à página da publicação original.
Luiz Cláudio Cunha *
No espaço de 13 dias, entre meados de junho e início de julho, o ministro da Justiça, Sérgio Moro, rebateu acusações e degustou elogios durante mais de 16 horas em duas sessões sucessivas e tumultuadas perante senadores e deputados do Congresso Nacional. Esperto, adotou uma dupla linha de defesa que visava os dois lados opostos de inquisidores.
Aos que o endeusam, Moro blindou-se diante dos parlamentares, em palestras e em entrevistas posteriores como o defensor da histórica Lava-Jato, a ação que investiga desde 2014 a maior denúncia de corrupção da história do país, o indesmentível assalto multipartidário aos cofres da Petrobrás, a maior empresa brasileira.
Aos que o criticam, Moro tentou defender-se de maneira frágil contra as consistentes denúncias do site de notícias on-line The Intercept Brasil revelando conversas nada éticas mantidas entre o então juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba e os procuradores da força-tarefa da Lava-Jato. Desde 9 de junho, dez dias antes do depoimento de Moro ao Senado, o Intercept vem divulgando diálogos a cada dia mais constrangedores do juiz e de procuradores vazados do aplicativo russo Telegram — hoje baseado em Dubai, nos Emirados Árabes, e com 200 milhões de usuários (um deles, o Papa Francisco).
Confrontado com o teor embaraçoso – para dizer o mínimo – de suas combinações privadas com os procuradores, Moro esquivou-se com uma tática dupla e contraditória: disse que não lembrava de nada, e ainda assim garantia que nada daquilo aconteceu e, se aconteceu, foi roubado por um hacker e criminosamente adulterado por jornalistas “sensacionalistas”. Agreste, o ministro se embrenhou em um terreno inóspito e desconhecido, tentando contrapor o que acha “mau” jornalismo do Intercept ao “bom” jornalismo do The New York Times e do The Washington Post em duas coberturas emblemáticas da imprensa lembradas por Moro — o ‘Caso Watergate’ e os ‘Papéis do Pentágono’.
Na audiência com os senadores, Moro teve a pretensão de citar, erradamente, os dois casos mais notáveis do jornalismo americano, tentando ensinar ao repórter do Intercept como deveria agir. “Por que esse sensacionalismo, essa repercussão indevida? Que o Glenn Greenwald apresente o material às autoridades e ao Supremo Tribunal Federal para averiguar qualquer irregularidade. Vamos ver o que tem ali. Não esse sensacionalismo de divulgar ao longo de um ano, todo dia um novo capítulo… Isso desmoraliza o veículo jornalístico”, reclamou Moro, propondo a entrega das conversas do Telegram à Polícia Federal (que ele, ministro da Justiça, comanda) ou ao STF (onde, em mensagem de abril de 2016, confessava privadamente sua confiança bilíngue no ministro Luiz Fux: “Excelente, In Fux we trust!”).
O pouco lembrado por Moro sobre Watergate, investigado pelo The Washington Post: “Se eles tinham a informação total desde o início, imagino que eles divulgavam desde o início. E não levavam um ano divulgando aquilo lá. O que eles fizeram: foram elaborando as matérias, segundo as informações que eles colhiam, e aí imediatamente divulgavam tudo”.
O pouco lembrado por Moro sobre os ‘Papéis do Pentágono”, publicados pelo The New York Times: “[Os papéis] foram sendo divulgados, à medida que eles tinham, eventualmente alguma coisa paulatina. Ninguém chegou lá e falou: ‘Ah, vamos levar um ano [para divulgar tudo], a conta-gotas, e sem apresentar a mais ninguém aquele material’. Inclusive, naquele caso, o material foi compartilhado com outros veículos de imprensa. Me parece um comportamento completamente diferente”.
A desastrada rota de fuga tentada sem sucesso pelo ministro mostra que, além da memória fraca e da falta de equilíbrio e isenção que cabe a um magistrado, Sérgio Moro desconhece todos os fundamentos do bom jornalismo que ganha relevância histórica sempre que atende à liberdade de expressão e ao direito do cidadão de saber a verdade sobre o poder e as autoridades que o pervertem. Por ignorância mais do que por má-fé, talvez, Moro imagina que Glenn Greenwald é um mau jornalista, em comparação com seus conterrâneos Neil Sheehan, Carl Bernstein e Bob Woodward.
Para combater a desinformação do ministro, vamos lembrar alguns detalhes importantes que sucessivamente levaram o Times de Sheehan (em 1971) e o Post de Bernstein e Woodward (em 1972-74) a escavar os bastidores secretos da Guerra do Vietnã e a denunciar o envolvimento da Casa Branca de Nixon na invasão do edifício de Watergate. Para aumentar a irritação do ministro, vale recordar também o vazamento que revelou ao mundo (em 2013) o secreto sistema de vigilância eletrônica planetária da americana Agência de Segurança Nacional (NSA), denúncia publicada pelo jornal inglês The Guardian. Os arquivos da NSA foram, segundo o governo americano, roubados pelo ex-analista de sistemas da CIA Edward Snowden e repassados a um repórter americano que ele conhecia apenas pela internet e que morava no Rio de Janeiro: Glenn Greenwald — ele mesmo, o ”mau” repórter que hoje atazana a vida de Moro com suas inconfidências ao celular.
Em momentos distintos da história americana, esse poderoso quarteto de repórteres — Sheehan, Bernstein, Woodward e Greenwald —, por méritos justificados e relevância jornalística, foram agraciados com o mais importante troféu da imprensa dos Estados Unidos: o Prêmio Pulitzer, conferido desde 1917 pela prestigiosa Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque. No Brasil, também sobrevoado pela espionagem da NSA, Greenwald ainda conquistou com o jornal O Globo, em 2014, a versão local do Pulitzer, o Prêmio Esso de Reportagem. No mesmo ano, o documentário de seus encontros secretos com Snowden em Hong Kong, Citizenfour, dirigido por Laura Poitras, o levou ao palco principal de Hollywood, para receber o Oscar de Melhor Documentário.
*Luiz Cláudio Cunha, jornalista, é o autor de Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios — uma reportagem dos tempos da ditadura (L&PM, 2008)
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