Restauração da Anistia começa na sede da ABI


04/04/2008


Paulo Abrão Pires Júnior, Tarso Genro, Maurício Azêdo e Lúcia Stumpf

Em ato público tomado pela emoção, foi realizada nesta sexta-feira, dia 4, na sede da Associação Brasileira de Imprensa, pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, a primeira sessão especial de julgamento de pedidos de indenização de perseguidos políticos pelo critério de categorias específicas. A escolha da ABI para a realização dos julgamentos de 20 processos cujos requerentes são jornalistas foi uma iniciativa da Comissão para homenagear o centenário da Casa, que será comemorado na segunda-feira, dia 7.

O evento marcou também o lançamento da Caravana da Anistia, com a qual a Comissão pretende percorrer todos os Estados brasileiros até 2010, para chamar a atenção da sociedade brasileira para a política de direitos humanos que vem sendo desenvolvida pelo Ministério da Justiça.

A mesa que coordenou os trabalhos foi formada pelo Presidente da ABI, Maurício Azêdo; o Ministro da Justiça, Tarso Genro, que veio especialmente ao Rio de Janeiro para participar da cerimônia; o Presidente da Comissão da de Anistia, Paulo Abrão Pires Júnior; e a Presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Lúcia Stumpf.

Toda a programação aconteceu no Auditório Oscar Guanabarino, localizado no 9º andar da ABI, que recebeu enorme platéia, formada por jornalistas, parlamentares, parentes de vítimas da ditadura, militantes dos movimentos sociais, estudantes e representantes de entidades de defesa dos direitos humanos.

Pela manhã, na solenidade de abertura, além da Caravana da Anistia ocorreu o lançamento da bandeira-símbolo das Liberdades Democráticas, que será confeccionada ao longo do percurso da Caravana da Anistia. A peça, segundo o Presidente da Comissão de Anistia, será dedicada à sociedade como símbolo da luta pela democratização do País. Coube ao Presidente da ABI e à Presidente da UNE unir os primeiros retalhos para a confecção da bandeira.

Tarso Genro e Maria Augusta de Oliveira

Homenagens

Em seguida vieram as homenagens em memória dos jornalistas David Capistrano e Vladimir Herzog. O primeiro desapareceu em 1974, durante a ditadura militar, entre as cidades de Uruguaiana-RS e São Paulo-SP, após um período de três anos de clandestinidade. Herzog morreu vítima de tortura nas dependências do DOI-Codi, na capital paulista, em 1975.

Maria Augusta de Oliveira, viúva de David Capistrano, recebeu do Ministro Tarso Genro, o documento que anistiou o jornalista (Portaria 722, de 4 de abril de 2008, assinada pelo Ministro) e que lhe assegura o direito a uma pensão mensal de R$ 3.444,52, com efeitos retroativos a 4 de abril de 2001, o que equivale a R$ 283.484,00.

Após cumprimentar a platéia, Dona Maria Augusta falou sobre a solenidade, que considerou uma vitória de todo o povo brasileiro:
— Fico feliz por estar participando deste ato de solidariedade que, para mim, representa o pensamento do povo brasileiro e que contamina os verdadeiros patriotas. Estou com 90 anos e comecei a agir politicamente desde a época em que cursava a Escola Normal, em 1945, momento de trauma e lutas pela anistia dos anos terríveis por que passava o Brasil.

Concluído o processo de anistia daquela época, movimento do qual participou como estudante, Dona Maria Augusta achava que o País jamais voltaria a sofrer danos políticos, até que foi deflagrado o golpe militar de 1964:
— E nós voltamos a sofrer repressões terríveis por mais de 20 anos de ditadura, mas o povo novamente levantou-se e dessa segunda vez participei andando pelo Brasil, debatendo a necessidade da redemocratização. Acho que fomos vitoriosos em parte. Todos continuamos a lutar, organizando um novo movimento pela anistia, em função do trabalho exercido pelas forças democráticas do País.

Segundo ela, o ato desta sexta-feira na ABI representa a capacidade de luta do povo brasileiro, para conseguir uma nação mais digna, onde não se tenha mais que lidar com as condições terríveis da repressão política:
— Por isso a Comissão de Anistia faz mais um ato de justiça em um momento desses, trazendo a vida dos que foram torturados e mortos, mantendo viva a chama do ideal de todos os que morreram pelo Brasil —declarou Dona Maria Augusta, que foi ovacionada pela platéia.

                      Ivo Herzog e Maurício Azêdo

Em seguida, Maurício Azêdo entregou a Ivo Herzog a placa em homenagem a seu pai Vladimir. Ivo exaltou o fato de a homenagem a seu pai estar acontecendo nas dependências da ABI e lembrou a atuação do jornalista pela democracia:
— A história de Vladimir Herzog é parte da História do Brasil, é de todos nós, e como tal deve ser ensinada às novas gerações, para que elas possam entender o que aconteceu e acontece no nosso País. Acho que, se meu pai estivesse vivo hoje, estaria muito ocupado, lutando contra a impunidade, trabalhando mais do que nunca, fazendo o que cabe a toda classe jornalística fazer. E, se fosse necessário, ele morreria mais uma vez por aquilo em que acreditava.

Ao se referir a David Capistrano e Vladimir Herzog, o Presidente da ABI afirmou que o ato pela anistia se caracterizava por forte emoção por causa da evocação de heróis da luta da liberdade do Brasil. Ele lembrou que no auditório da ABI, após a morte de Herzog, Prudente de Moraes, neto, então Presidente da Casa, e Barbosa Lima Sobrinho presidiram uma cerimônia em memória do jornalista.

Maurício, Paulo Abrão e Lúcia Stumpf

Emoção

Visivelmente emocionado, Maurício Azêdo afirmou que a iniciativa da Diretoria da ABI transformou um evento religioso em um ato cívico de luta pela restauração das liberdades públicas do País:
— Devo inicialmente dizer que estamos tomados de emoção pela a evocação de heróis da luta pela liberdade do Brasil, como Davi Capistrano e Vladimir Herzog. E essa emoção não decorre apenas da magnitude ética e política deste ato, mas por lembranças que se agigantam na nossa memória de momentos traumáticos das nossas existências individuais e da nossa existência nacional.

Ele contou que, por determinação do Cardeal D. Eugênio Sales, não pôde ser celebrada a missa de 7º dia que havia sido encomendada pela ABI na Igreja de Santa Luzia (Centro), onde normalmente são realizados os atos religiosos da entidade:
— Então foi aqui neste auditório que, dias após o sacrifício, a tortura e a morte de Vladimir Herzog, Prudente de Mores, neto e Barbosa Lima Sobrinho presidiram um ato em sua memória. Nós então orientamos os companheiros para se dirigirem à ABI, onde transformaríamos o culto em ação de denúncia da violência que golpeou o nosso companheiro e de reivindicação da restauração das liberdades públicas do País. Com o auditório superlotado, permanecemos de pé e em silêncio, manifestando o nosso empenho, o nosso propósito e a nossa determinação de lutar para que aquela fase hedionda da nossa História fosse finalmente riscada do mapa.

Maurício concluiu seu discurso dizendo que a ABI se sentia confortada em ser o cenário deste ato de deflagração da Caravana da Anistia, “que haverá de percorrer o Brasil difundindo as idéias libertárias que desembocam na Comissão de Anistia do Ministério da Justiça”. E acrescentou:
— Nosso conforto em realizar este ato é ainda maior porque ele representa mais um galardão que a Casa de Gustavo de Lacerda, Herbert Moses, Prudente de Moraes, neto, Barbosa Lima Sobrinho e Fernando Segismundo acrescenta à sua densa e fecunda atuação, em defesa dos direitos do povo brasileiro e do progresso material e espiritual do País.

Referindo-se às comemorações do centenário da ABI, o Presidente destacou que a Casa do Jornalista completa cem anos reafirmando o seu compromisso com a luta pela liberdade.

Transparência

Ao se dirigir à platéia, o Ministro da Justiça, Tarso Genro, disse que qualquer referência sua à Associação Brasileira de Imprensa poderia soar como redundância, porque a história da Casa do Jornalista se integra à da República e à da democracia do País. E falou sobre o significado da anistia:
— Ela não é um perdão nem reparação, é um elemento material importante, pois tortura, morte, humilhação e perda de emprego são danos irreparáveis. Por isso, julgo a anistia um processo de reconhecimento e pedagogia democrática para livrar o Estado dos que cometem crimes, ilegalidades e barbaridades.

Segundo o Ministro, ninguém no Estado estava autorizado a torturar. Por isso a anistia é a consolidação de um projeto democrático de uma República que ainda está se constituindo. Segundo ele, como a relação do Estado com a sociedade é opaca, o ato na ABI tem como maior significado a transparência, a valorização da fiscalização da cidadania, o respeito aos direitos humanos e a valores da República democrática que combate a desigualdade:
— Com iniciativas como esta, queremos fazer com que os jornais tenham vergonha de dizer que a anistia é bolsa-ditadura. Mas todas essas questões se resolvem com mais de liberdade de imprensa e capacidade de dialogar e convencer. Por isso este é um ato de convencimento público, um projeto que faz com que ditadura, censura, tortura e morte sejam irretornáveis.

O Presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão Pires Júnior, falou da existência de várias razões para que a Comissão de Anistia programasse o lançamento da Caravana na sede da ABI. E destacou que pela primeira vez o público teria a oportunidade de apreciar a realização de uma sessão da anistia fora de Brasília, com o crivo da fiscalização e crítica da sociedade brasileira e reforçando cada vez mais a transparência dos trabalhos do órgão:
— Não é sempre que um tribunal administrativo brasileiro se dispõe a realizar suas sessões de forma pública e transparente. Outro ponto importante é o fato de estarmos hoje retomando os julgamentos dos processos de jornalistas dentro da Comissão de Anistia, que estiveram parados por três anos pelas razões que nós já conhecemos. Estaremos apreciando 20 requerimentos e fazendo justiça a esses cidadãos que foram perseguidos pelo regime militar. E isso tudo acontece na ABI, palco de tantas lutas pela resistência à ditadura, onde agora realizamos mais um capítulo dessa história que se iniciou em 1964, quando o regime militar ceifou as liberdades públicas no Brasil.

Paulo Abrão fez questão de assinalar que a medida que a Comissão vem adotando é um ponto de partida para um diálogo mais profundo sobre o resgate de uma dívida política que o Estado brasileiro tem com diversos cidadãos do País. Sobre o valor das indenizações (R$ 3.758), disse que não é ponto central da anistia, “porque dinheiro algum paga o sofrimento de brasileiros que foram vítimas do Estado que tinha o dever de protegê-los”.

Até o momento, a Comissão de Anistia, segundo seu Presidente, já realizou 110 sessões de julgamento, analisando 10.228 requerimentos, de um total de 35 mil. Outras duas caravanas estão previstas para abril, a primeira no dia 15, na Associação dos Anistiados de São Paulo. Nos dias 25 e 26 é a vez de São Domingos do Araguaia, no Sul do Pará, onde serão julgados os requerimentos de camponeses e outros indivíduos acusados de participação na chamada Guerrilha do Araguaia.

Apoio dos estudantes

Lúcia Stumpf disse que, além da consolidação do processo de anistia, uma das principais atitudes da UNE no momento é engrossar o coro das exigências para a abertura imediata dos arquivos da ditadura:
— Nós temos direito a resgatar a memória deste País e fazer uma reverência a todos os lutadores e lutadoras que tombaram na defesa da construção de um Brasil melhor e mais justo para todos nós. E para isso é também indispensável que tenhamos uma imprensa livre. Por isso é muito simbólico que o início da nossa Caravana da Anistia aconteça na ABI.

A coordenadora do projeto das caravanas, Flávia Carlet, informou que elas deverão permanecer pelo menos dois dias em cada local: no primeiro dia haverá um seminário cultural e no segundo, a sessão de julgamento. Ela lembrou que a proposta surgiu após sessão realizada num congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), no ano passado, durante o julgamento dos requerimentos de Aldo Arantes e Jean Marc van der Weld, ex-presidentes da entidade. Na ocasião, Flávia disse que ouviu dos representantes da UNE que a ação “tinha sido muito importante para a formação política e conhecimento da História”.

Criada em 2003, a Comissão de Anistia é responsável por julgar os pedidos de indenização e, com base na lei 10.559, de 2002, conceder reparação econômica a todos que comprovarem ter sido perseguidos pelo Estado por razões políticas. Para tanto, os requerentes têm de comprovar não só a perseguição política, mas também os prejuízos financeiros ou físicos que sofreram.

Segundo informações do Ministério da Justiça, repassadas à Agência Brasil, além das Caravanas da Anistia, a Comissão continuará realizando, em Brasília, as sessões temáticas em que não há julgamento dos processos, e sim coleta de documentos e informações dos grupos requerentes de indenização. Em 2007, a comissão realizou dez sessões temáticas. Foram ouvidos, entre outros, ex-trabalhadores do Banco do Brasil, das companhias siderúrgicas Nacional e Belgo Mineira, da Petrobras, da General Motors, da Cosipa, do Pólo Petroquímico de Camaçari e dos Correios.    


Comissão defere os 20 processos de jornalistas

A Comissão de Anistia julgou e deferiu todos os 20 processos de jornalistas que estavam na pauta do dia, requerendo reparação e indenização pelos traumas que sofreram como vítimas da ditadura militar. As maiores indenizações foram concedidas aos cartunistas Jaguar (R$ 1.027. 383, 29) e Ziraldo (R$ 1.253.000,24).

Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe, o cartunista Jaguar, trabalhou como desenhista no jornal Última Hora. Juntamente com Ziraldo, foi um dos fundadores do Pasquim, e figurou nos arquivos da ditadura militar como “comunista, suspeito de exercer atividades esquerdistas”.

Ziraldo Alves Pinto trabalhou em diversos veículos de imprensa que foram empastelados e fechados pelo governo militar, entre eles O Sol. Atuou também nas revistas O Cruzeiro e Visão, até que em julho de 1969 fundou o Pasquim, censurado a partir da sua 25ª edição. O jornal sofreu dura perseguição da ditadura, a ponto de as bancas em que era distribuído terem sido incendiadas.

A jornalista Maria Inês Duque Estrada, membro do Conselho da ABI, foi militante do Partido Comunista Brasileiro, em que ingressou em 1964, ano em que os militares tomaram o poder. Em 1973, foi presa pelo DOI-Codi, tendo sido torturada. Na época, era repórter do Jornal do Brasil e trabalhava também na Enciclopédia Britânica. Em 1975, teve seu visto de saída do País negado, por causa da sua “orientação ideológica”. Sobre a Caravana da Anistia na ABI e o deferimento do seu requerimento, a jornalista comentou:
— Fiquei emocionadíssima, foi um ato muito bonito. Gostei de ver a participação dos estudantes, de ver o jovem nessa luta que eu considero que não é individual, mas uma conquista coletiva que marca uma etapa de luta por uma vida mais justa. No caso da indenização, ela é apenas parcial, porque a vida que dos que se foram não pode ser resgatada.