Pós-ditadura extingue comissões e deixa militares impunes


30/03/2024


Do Poder 360

Passados 60 anos do golpe que iniciou a ditadura militar no Brasil, completos neste domingo (31.mar.2024), o país segue mal resolvido com o seu passado. A impunidade de militares envolvidos, a extinção de comissões de investigação de crimes do regime e a recente proibição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para que ministros não mencionem o período histórico mostram a transição truncada para o governo democrático.

É o que avalia a historiadora Angélica Muller, professora de História do Brasil da UFF (Universidade Federal Fluminense) e presidente do Observatório do Tempo Presente. Para Muller, que também fez parte da Comissão Nacional da Verdade, o país tem um histórico de “fracassos” na forma como lidou com os crimes cometidos no governo de exceção.

“Até este momento, o processo de transição de justiça do Brasil é fracassado. E é fracassado porque não se pode levar adiante as políticas públicas, seja por governos de extrema-direita que o país teve, seja por um atual governo que não faz a ligação entre o que ocorreu em 8 de Janeiro de 2023 e o próprio golpe e a ditadura do passado. Uma coisa não deixa de estar relacionada a outra”, afirmou a pesquisadora ao Poder360.

O período ditatorial brasileiro teve início em 1964, por meio de um golpe civil-militar. Entre 31 de março e 1º de abril, os golpistas se mobilizaram no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, para destituir o então presidente João Goulart, o Jango. A medida contou com o apoio dos Estados Unidos, em um contexto de polarização crescente da Guerra Fria e um discurso anti-comunista.

Em 2 de abril, depois de Jango fugir para o Uruguai, o Congresso Nacional anunciou o cargo em vacância. O 1º ditador, o general Castello Branco, tomou posse em 15 de abril, dando início a uma fase de 21 anos que só se encerraria em março de 1985, depois de contar com 5 governos militares.

CAMINHO BAGUNÇADO

Como lembra Muller, o 1º movimento de transição foi feito em agosto de 1979, com a assinatura da Lei de Anistia pelo general João Baptista Figueiredo. A medida foi responsável por iniciar o processo de libertação dos presos políticos, bem como o retorno de exilados e perseguidos para o país. O texto, no entanto, foi aprovado com trechos controversos que permitiram a impunidade de militares e civis envolvidos.

“Ela vai absolver aqueles que cometeram crimes políticos, mas também aqueles que cometeram os chamados ‘crimes conexos’. O que são esses crimes conexos? São o perdão, o esquecimento, de todos os militares que torturaram, mataram, prenderam, cometeram grandes violações aos direitos humanos. Essa lei vai perpassar nossa justiça de transição e até agora ninguém conseguiu mexer nela”, explica a professora.

Segundo a pesquisadora, a chamada justiça de transição segue 4 passos básicos: o direito à memória e à verdade, a justiça, a reparação e a reforma institucional. No Brasil, porém, o processo teve início com o 3º passo, quando criou a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos em 1995.

“A gente já pode ver a partir disso que o processo brasileiro é todo bagunçado e incompleto”, declarou.

Desde a comissão de 1995, o país ainda observou a criação da Comissão de Anistia em 2002. A iniciativa tinha a função de contemplar casos de perseguidos políticos no período militar para garantir o título de “anistiado político” e conceder indenizações financeiras àqueles que perderam seus empregos em decorrência da perseguição.

Para Muller, porém, a principal medida tomada veio em 2011, com a criação da Comissão Nacional da Verdade. O grupo ficou responsável por investigar a fundo os crimes cometidos durante os 21 anos de estado de exceção e apontar os responsáveis. Em 2014, o órgão apresentou um relatório com 29 recomendações, além de apontar o nome de 377 agentes políticos envolvidos em atos descritos como “crimes contra a humanidade”.

Passados quase dez anos da entrega do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que reuniu crimes e violações cometidos durante o Período Militar, o governo brasileiro cumpriu apenas duas das 29 recomendações propostas pelo documento. O intuito era fortalecer a democracia e prevenir abusos.

O levantamento de dados foi feito pelo Instituto Vladmir Herzog. Outras seis recomendações foram cumpridas parcialmente, 14 não foram realizadas e sete retrocederam.

Soma-se a isso a decisão tomada de última hora por Jair Bolsonaro (PL) de encerrar os trabalhos da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, 15 dias antes da posse do sucessor.

“Pela 1ª vez, você tem um relatório que condensa todas as informações e diz o seguinte: o Estado brasileiro teve como política o extermínio de opositores, feitos em tais e tais lugares com tais e tais pessoas. Foi apresentada uma cadeia de comando. No entanto, a lei que cria a comissão não dá poderes de julgamento. Então continuamos sem o 2º pilar do processo, que é a justiça”, explica.

LULA PERPETUA JUSTIÇA INCOMPLETA

Segundo Muller, a insistência da impunidade, mesmo depois de 60 anos do golpe militar, persiste por decisões de governos, seja daqueles que negaram a existência do período ditatorial –caso de Jair Bolsonaro–, seja daqueles que pedem para “não remoer o passado” –como disse Lula em entrevista, depois de proibir a menção ao golpe por ministros de estado.

“Depois de 4 anos de governo Bolsonaro romantizando o período da ditadura, o governo brasileiro não poderia deixar isso dessa maneira, sem fazer essas conexões. [O posicionamento de Lula] é uma questão política, com tratamento bastante diferente, mas abre espaço para a gente continuar em uma perpétua justiça de transição incompleta”, declarou.

DIFERENÇAS DE DATAS

De acordo com a presidente da Comissão de Anistia do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania (MDHC), Eneá de Stutz e Almeida, não há consenso entre o dia certo em que o golpe militar se instalou no Brasil. Há 3 datas possíveis: 31 de março, 1º de abril e 2 de abril.

Para os que consideram 31 de março, a referência é a marcha liderada pelo general Mourão Filho, que partiu nesse dia com as suas tropas de Juiz de Fora (MG) até o Rio de Janeiro a fim de tirar Jango do governo. O então presidente, porém, ficou no cargo até 1º de abril, antes de fugir para o Uruguai.

Para a professora, o golpe só se concretizou em 2 de abril, com uma declaração oficial do Congresso Nacional.

“Essa foi a data, na madrugada de 2 de abril, em que o Congresso Nacional decretou a vacância da Presidência da Republica. Então, formalmente, quando que o presidente João Goulart foi deposto? Com a declaração de vacância em 2 de abril”, afirmou.