O guerrilheiro sócio da ABI


07/06/2022


Por João Teixeira, em Jornal Contratempo (*)

“Ih, Viegas, os fuzileiros”.

As tropas atacaram. Marco Antonio deu um salto para dentro da cabana, gritando isso, e correu para pegar uma arma M-1 pendurada na parede da frente.

Meio desentendido, Viegas largou no fogo a panela, a carne e a faca, adeus jantar!
Os dois guerrilheiros saíram da cabana com as armas engatilhadas.

“Fogo nos comunistas”.

Os soldados receberam a ordem e a direção do alvo e iniciou-se o formidável combate entre as tropas do Batalhão Humaitá dos Fuzileiros Navais, especializado em contrainssurgencia, e a guerrilha do Movimento de Ação Revolucionária (MAR) nas montanhas do Rio de Janeiro, em agosto de 1969.

Os guerrilheiros viam os soldados protegidos por trás das bananeiras, armados de fuzis Fal e M-16.

Resistiram e forçaram o recuo das tropas, travando-se um violento combate que durou uns 15 minutos, no terreno irregular do litoral fluminense.

O combate, um dos poucos conhecidos da guerrilha rural, mereceu ampla cobertura da imprensa.

A Cabana do Jacu era o portal da guerrilha rural carioca, a tentativa de reeditar Caparaó, sem os mesmos erros.

Lá estavam Marco Antonio, Antônio Duarte e Pedro Viegas, aguardando os companheiros da cidade, os marinheiros que haviam empreendido uma fuga espetacular da Penitenciária Lemos de Brito.

Caçados pela polícia e os militares, o MAR estava articulado com a VPR de Lamarca e a ALN de Marighella, na resistência armada á ditadura civil-militar (1964/85).

Viegas, ferido nas montanhas, escapou do cerco das tropas. Dormiu em um capinzal ouvindo o ronco dos helicópteros acima dele.

O tiro o atingiu na coxa direita, uns quatro dedos acima do joelho, e o ferimento tirava a firmeza da arma.
Tentava andar e caía. Perdera o grupo de Capitani e teve que sobreviver sozinho, nas piores condições.

Esfomeado, comeu limões vermelhos, que confundiu com tangerina. Usava a M-16 como bengala.

Vagou pelas montanhas, achando que as tropas do Governo haviam desistido de procurá-lo.

Em “Rebelião dos Marinheiros” (Artes e Ofícios, 1997, pág. 140), Avelino Capitani aborda o assunto, mas o episódio é obscuro na História do Brasil.

O esquecimento deliberado, por conveniências políticas, como a anistia de 1979, não apaga o passado que volta e meia ressurge, vem á tona.

De repente, a figura de Lamarca surge como fantasma na imprensa, provocando calafrios.

A nação com passado pendente, vive assustada.

Quem deve, não dorme sossegado. A nação mal resolvida é como um tumor que lateja e dói antes de ser lancetado.

A “lei do esquecimento” imposta no Brasil em nome da anistia incomoda.

Paul Ricoeur examinou o assunto, ou seja, o que ocorre quando uma sociedade resolve esquecer certos acontecimentos do passado em nome da pacificação ou de conveniências presentes e futuras, como foi o caso da Alemanha no após-guerra para esquecer a tragédia do nazismo.

Ou da França, no mesmo período, para tentar esquecer o governo colaboracionista de Vichy, ou da violenta guerra colonialista da Argélia.

Anistia não é perdão. É necessidade política de trégua do poder em certa etapa da vida do País.

Perdão é categoria não jurídica – não pode ser concedido por lei.

E implica esquecer mágoas.

A anistia quis cicatrizar à força a ferida que ainda sangra.

O sangramento do guerrilheiro Viegas já havia coagulado, quando ele entrou altas horas em Monsuaba, o povo dormia.

Mangaratiba e Conceição do Jacareí eram lugares tranquilos, paradisíacos, mas ele havia ido parar nas mãos do inimigo.

As tropas militares estavam concentradas em Monsuaba e cobriam a praia com barracas de campanha.

“Boa noite”.

Entrou no bar e cumprimentou o balconista.
Pediu um refrigerante (Crush) e um sanduíche de queijo.

Então, ouviu vozes de comando, em aparelhos de telefonia, que falavam claramente em Capitani.

Estava no QG de Operações Antiguerrilha instalado em Monsuaba.

“Sou jornalista e estou fazendo a cobertura das manobras militares. Já tenho material suficiente para escrever a reportagem”.

“Você está frito. Há um bloqueio na entrada da cidade, está proibida a presença de estranhos na área, inclusive da imprensa!”.

“Cadê seus documentos?”

Tirou do bolso e mostrou sua carteira de sócio da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).

O comerciante disse que poderia tentar tirá-lo dali no dia seguinte, ia comprar pão fora e não costumava ser revistado.

O guerrilheiro-sócio da ABI achou que era outro ato da comédia, mas resolveu arriscar.

Ia tomar banho, fazer a barba e dormir na casa do homem.

O vendeiro só lhe pediu um favor: “ponha o nome do meu bar na sua reportagem”.

Preparava-se para fazer a barba quando ouviu o barulho e a porta da cozinha voando sobre sua cabeça.

Quando deu por si, já estava sem o cinto e os sapatos, os braços dobrados para trás, nas costas, fortemente seguro pelos soldados.

“O jogo acabou para você, Viegas” – à sua frente, o oficial deu-lhe voz de prisão.

Pedro França Viegas foi preso no dia 12 de agosto de 1969.

“Guerrilheiro preso estava ferido” – o jornal Última Hora (UH) deu em manchete, no dia seguinte.

A amnésia coletiva impede a interpretação do passado.

Só a narrativa e a memória concedem o perdão.

(*) Jornalista,trabalhou no Jornal da Tarde, Diário da Noite, O Globo, Gazeta Mercantil, Folha de S.Paulo e no Jornal do Brasil, em Brasília, nos anos 80. Hoje é editor do jornal Contratempo, de Ourinhos (SP).

Nota da Redação
O marinheiro jornalista

Pedro França Viegas, marinheiro, repórter e editor de A Tribuna do Mar, órgão oficial da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais (AMFN), onde foi contemporâneo de José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo. Teve seu curso de jornalismo interrompido pela condenação à prisão. Em 1969, comandou da Penitenciária Lemos de Brito, no Rio, a Operação Liberdade, que libertou presos políticos, a maioria ex-marinheiros, numa ação cinematográfica que culminou na fuga em um Aero-Willis e foi executada enquanto outros detentos, coniventes, batiam suas canecas nas barras das celas e cantavam: “O mar se agitou! O mar não está para peixe! Bate firme, marujada!”. Foi um dos 70 presos políticos libertados em troca do embaixador suíço, Giovanni Enrico Bucher, capturado em 7 de dezembro de 1970, exilando-se no Chile. Sócio n.o 2653 da ABI. A carteira citada nesse texto foi apreendida pela repressão. Em 2004, publicou o livro Trajetória Rebelde, pela Cortez Editora, onde faz uma narrativa sobre importantes movimentos de oposição ao regime militar brasileiro e revela detalhes das operações desses grupos diante da repressão. Mostra como era sua composição e seus modos de atuação sob o olhar crítico de quem vivenciou in loco o período, participando ativamente na luta pela democracia.

No prefácio do livro, o jornalista Percival de Souza escreveu:

“Viegas, de posse da velha bússola, consegue nesta empreitada manter sempre regulado o rumo do norte. E como experimentado marinheiro, ensina que não se pode confundir, em alto mar ou terra firme, impacto da onda com farfalhar frívolo da espuma.

Para acompanhá-lo nessa viagem, é bom saber que o mergulho na História contemporânea, embora já coisa do século passado, exige desprendimento. “Era uma vez…” configura formato interessante. “Meninos, eu vi!”, também. Era uma vez um grupo do qual Viegas fazia parte. E ele viu muita coisa, testemunhou, sofreu e alegrou-se. É como se contasse a História, sem querer enfeita-la, despindo-a de tons épicos, o que não significa abolir atos de coragem, altruísmo e humanidade, mas contar a você uma parte relevante de fatos ainda insuficientemente esmiuçados. Alguns episódios e nomes não conhecidos. Mas nada é apenas repetitivo. Aquis estão revelações que ajudam a formatar lentamente um mosaico gigantesco, com partidos e organizações, alas e tendências, filosofias e engajamentos, confrontados com uma repressão de momentos brutais, selvagens, exterminadores.

Porque neste livro, com alentadores momentos de audácia, Pedro Viegas ousa desmentir Carl Jung: “Todos nós nascemos originais e morremos cópias”. Ele, não. Coisa de marinheiro calejado, que não teme as chibatadas de nosso tempo, das quais está nos ajudando a ficar livres, dizendo sem receio, do Leviatã, que nós também não somos assim”.