Necropolítica dita quem
deve viver ou morrer


10/12/2020


Direitos Humanos

O direito à vida e a necropolítica

Vera Saavedra Durão, jornalista, membro da Comissão Inclusão Social, Mulher & Diversidade da ABI 

Hoje, dia dos Direitos Humanos, nada há para celebrar, a não ser carpir mais uma morte violenta, arbitrária e cruel, a de Jane Beatriz Silva Nunes, 60 anos, mulher negra, moradora de periferia, mãe de família e funcionária pública da Secretaria de Segurança Pública de Porto Alegre (RS). Ativista e Promotora Legal Popular da ONG Themis, Jane morreu ontem, numa operação policial na Vila Cruzeiro, quando chegava em casa e se deparou com policiais armados invadindo sua residência. Ao pedir-lhes o mandado judicial, segundo testemunhas, teria sido empurrada escada abaixo e sofrido um forte impacto na cabeça, falecendo a caminhodo Posto de Saúde, onde seria socorrida.

O fato gerou revolta entre os moradores. Mas, o protesto foi contido por um Batalhão de Choque da Brigada Militar com uso de caminhão com canhão d’água e forte aparato repressivo (segundo relato do site reporterpopular.com.br).

O ocorrido nos remete à Constituição de 1988, que em seu artigo 5º, versa sobre “Dos direitos e garantias fundamentais” ou “Dos direitos e deveres individuais e coletivos”, em suma, dos direitos humanos dos brasileiros. Ao todo, são 5 capítulos descrevendo com minúcias a igualdade de direitos e deveres de homens e mulheres, brasileiros e estrangeiros residentes no País com destaque para a inviolabilidade do direito à vida, a liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

De todos os direitos, o primeiro, único e mais importante é certamente a INVIOLABILIDADE DO DIREITO À VIDA. Sem ele, os demais não fazem sentido. E é justamente o que a necropolítica tem nos confiscado no cotidiano. A necropolítica é o poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Com base no biopoder e em suas tecnologias de controlar populações, o “deixar morrer” se torna aceitável. Mas não aceitável a todos os corpos. O corpo ”matável” é aquele que está em risco de morte a todo instante devido ao parâmetro definidor primordial da raça. O Brasil é um caso emblemático de necropolítica voltada contra a população negra, numa sequência perversa da escravidão. A pandemia escancarou ainda mais a terrível desigualdade social e racial que a necropolítica busca reproduzir.

O Brasil já conta com quase 180 mil mortos por Covid-19, fruto da falta de política pública sanitária para orientar os brasileiros a se protegerem do vírus mortal. O mau exemplo vem de cima, com o mandatário da Nação fazendo piadas e chacotas, negando os perigos da doença, se comportando como se ela não existisse e agora, liderando “a revolta da vacina”. Além desta estatística macabra da peste, somos assolados no dia a dia pelas mortes violentas, de índios, negros, ativistas que defendem os direitos humanos, jornalistas, todas em grande parte de responsabilidade de um aparato policial violento e cruel, criado para reprimir “o andar de baixo” da Nação.

Semana passada, o assassinato de duas meninas, Emily Vitória da Silva Moreira Santos, de 4 anos, e Rebeca Beatriz Rodrigues Santos, de 7 anos, abatidas a tiros de fuzil quando brincavam em frente a suas casas na comunidade de Barro Vermelho, no Jardim Gramacho, em Duque de Caxias, deixou o País estarrecido. Ao todo, 12 crianças já perderam a vida no Rio de Janeiro, este ano. Em média, uma criança morreu por mês na Cidade Maravilhosa, 5 a mais que no ano passado, segundo dados da ONG Rio da Paz. O presidente da ONG, Antônio Carlos Costa, destaca que “a face mais hedionda da criminalidade no Rio é a morte por bala perdida desses meninos e meninas”.

A ineficácia e morosidade da Justiça e o sentimento de indiferença das autoridades públicas em relação as dores dos pais e familiares por tais perdas gera um sentimento de desamparo e revolta das famílias. “Eles (os policiais) só sabem dar tiros”, desabafou a avó de uma das meninas assassinadas.

O Brasil atual é um terreno minado, prestes a explodir, onde “cada vez que um justo grita, um carrasco vem calar, quem é ruim fica vivo, quem é bom, mandam matar”( versos de Cecília Meirelles, do poema Romanceiro da Inconfidência).