Nabuco, o monarquista que desafiou o Império


15/12/2010


Centenário da morte do estadista motiva revelações sobre sua primeira defesa de um escravo. E mostra como “Quincas, o Belo” era estimado pela Princesa Abolicionista.
 
Tinha 19 anos e era ainda estudante de Direito quando Joaquim Nabuco tomou a defesa do escravo Tomás Fogueteiro, acusado do assassinato do subdelegado Braz Pimentel, de Olinda, Pernambuco. Prestigiado pelos senhores da época porque era ele quem abria as procissões com fogos de animação e show religioso, Tomás caiu de repente na real de sua situação quando cometeu um deslize qualquer sequer mencionado no processo agora revelado pelo pesquisador e historiador Humberto França, coordenador do Centro Cultural Mauro Mota da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj).  

França conta como Tomás foi preso e supliciado pelo subdelegado, amarrado às grades da cadeia de Olinda e chicoteado em público – para escarmento dos demais escravos – até ter as nádegas, pernas e costas dilaceradas. Por fim, a mando do mesmo subdelegado, teve as feridas lavadas com uma aguada de suco de pimenta. E assim curtiu a mais cruel e inimaginável tortura.
– Para ele teria sido melhor a morte – acentua França.

 Tomás, porém haveria de fugir da prisão, mal cicatrizadas as suas carnes. E armou-se de um bacamarte para voltar à cadeia e fulminar o subdelegado com um tiro de grosso calibre.
– Facínora à solta! – berrou a imprensa de Recife. 

Preso de novo, Tomás foi julgado, porque mesmo os escravos precisavam passar pela formalidade de um julgamento. E acabou condenado à morte. Na forca, como era de praxe na época. Na primeira oportunidade, porém, Tomás haveria de novamente fugir. Mas outra vez a fatalidade e a indução social o levariam ao homicídio. Armado desta vez com uma faca, Tomás atingiu na carótida o soldado Afonso Honorato Bastos que lhe tentou barrar a liberdade. E feriu mais duas pessoas que encontrou no caminho.

A defesa legal do escravo Tomás surge assim como o primeiro desafio histórico de Nabuco aos escravocratas e à própria aristocracia imperial. 

Foi no último dia 6 de dezembro que o pesquisador e historiador Humberto França trouxe as minúcias deste fato ao conhecimento público. A revelação bem além das referências feitas pelo próprio Nabuco, aconteceu como ponto alto do Simpósio de Recife promovido pelo Instituto Antares com apoio da Eletrobrás e do Governo Federal. O documento principal que narra o acontecimento policial e suas consequências jurídicas até então inéditas são a base do livro “Joaquim Nabuco e o Escravo Tomás” que o historiador anuncia para o primeiro trimestre de 2011. 

A descoberta aconteceu em 2005, quando França vasculhava o acervo do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco. Para escrever o livro sobre a tragédia do escravo Tomás, França conta que teve de ampliar as buscas aos registros da Casa de Detenção e da Chefatura de Polícia de Pernambuco, além de jornais da época quase perdidos e nos quais Nabuco também colaborava iniciando atividades jornalísticas que ele ampliaria na virada do século XIX ao desiludir-se da política com a Proclamação da República. 

Afinal, Nabuco desafiou o Império no que ele tinha de mais retrógrado, sendo ele, no entanto, um monarquista de berço, filho do senador José Nabuco de Araújo criado no feudo aristocrático do Engenho Massangana. Conhecido como “Quincas, o Belo” – era ainda um dandy de marcante modelo imperial. 

E possivelmente encontra-se ai, neste paradoxo ideológico e social, o grande mérito e o diferencial deste estadista, diplomata, advogado, escritor e jornalista que abjurou a República, mas acabou por dobrar-se às necessidades – e modernidades – da Civilização que avançava no caminho da igualdade “ainda que mesmo tarde”. Por insistência do presidente Campos Sales, eis que Nabuco foi representar a novel República Brasileira, primeiro em Londres como diplomata junto à Rainha: nada mais lógico e apropriado – um monarquista ainda que a serviço da República junto à Monarquia Britânica; depois como primeiro Embaixador do Brasil nos Estados Unidos da América, onde e se fez panamericanista.  

Segundo o pesquisador Humberto França, “o processo da Justiça Pernambucana da época seria insuficiente para reconstituir o caso do escravo Tomás em suas facetas históricas com implicações notadamente psicológicas na luta pela abolição da escravatura”.
– Nele (no processo) não há detalhes importantes, como a transcrição das falas das testemunhas – explica França, lembrando também o papel desempenhado por Nabuco como iniciante advogado de defesa.

Interessante neste episódio é que Nabuco, embora muito jovem, já estava concluindo na Faculdade de Direito do Recife o curso iniciado em 1866 em São Paulo. Então funcionava como uma espécie de “trabalho de campo” os futuros bacharéis assumirem um caso no júri da cidade. 
– Um detalhe importante a ser destacado – diz ainda França – é que apesar de toda iniqüidade da sociedade escravocrata, havia um rito jurídico a ser respeitado e seguido mesmo em se tratando de acusação contra um escravo sem direitos.

O escravo Tomás era propriedade de D. Anna Barbosa da Silva. Ela ganhava dinheiro alugando-o para outros moradores de Olinda e Recife. No decorrer do processo, temerosa de vir a ser também acusada de algo ligado ao assassinato, D. Anna fez chegar petição ao juiz de Olinda renunciando aos direitos (e deveres) que tinha sobre o escravo. 

Com 25 anos de idade, Tomás era descrito como forte, bem apessoado e dotado de estranhas marcas no rosto que tanto ele podia ter trazido da África, como característica tribal, como podiam ter sido resultado de ferimentos durante uma briga. O historiador não encontrou registro de seu sobrenome. No final das contas, “era nada mais que um escravo”. Constatou apenas que Tomás era fogueteiro de profissão. E o dinheiro que ganhava soltando fogos nas festas religiosas ou para pagar promessas de fiéis, ele tinha que entregar à sua dona. 

França descreve o que apurou em suas pesquisas sobre a personalidade, a condição social e a repentina desventura do “privilegiado” escravo:
– Tomás gozava de algumas regalias apesar de ser um escravo típico. Quase todos em Olinda o tratavam por senhor, “Seu Tomás”, considerando-o um cidadão como outro qualquer. Mas por motivo não identificado em nenhum documento, ele foi detido pela polícia em Olinda e arrastado ao açoite em presença de todos os que o tinham em consideração até alí. Era a suprema humilhação. E depois, porque matou a autoridade que supostamente ordenara seu açoitamento, foi condenado à morte. Mesmo assim conseguiu escapar pela segunda vez da cadeia em Olinda. 

Preso novamente, foi encarcerado na Casa de Detenção no Recife. Mas escapou também daí, matando um soldado. E tornou a ser preso após uma grande perseguição pelas ruas da capital. Foi tal a agitação, que se chegou a temer uma revolta de escravos em Recife.

Sobre a última fuga de seu cliente e a resistência que opôs à captura, disse Joaquim Nabuco:
– “Não era mais um homem, era um tigre”.
Com admiração pelo réu, que poderia até ser apenas profissional, Nabuco lutaria como o melhor dos advogados e conseguiria o máximo possível numa época de absurdas injustiças e intolerâncias: reduzir a pena de morte para galés perpétua ou prisão perpétua. Mas o importante é que o jovem acadêmico de Direito conseguiu, pela primeira vez no País “salvar da morte não um escravo apenas, mas colocar toda a escravidão no banco de réus”. 

Sobre sua jovem experiência especificamente como defensor e a tese por ele levantada para reduzir a pena de um réu que parecia irremediavelmente perdido, Nabuco em seu primeiro livro – “A Escravidão” (1869) – esboçou uma análise do escravo levado ao assassinato:
– “De humilde, tornou-se altivo; era bom, fez-se uma fera. Na origem desse processo dois crimes havia. Havia a escravidão, havia a pena de morte. Fora a escravidão que levara Tomás a praticar o primeiro crime, a pena de morte que o levara a perpetrar o segundo”.

A Princesa e o Abolicionista

 O Simpósio de Recife encerrou a série de eventos – “Joaquim Nabuco e a Modernidade” – realizada em vários pontos do País sobre a atualidade do pensamento do estadista. E culminou o “Ano Nacional Joaquim Nabuco” instituído por Lei Federal para comemorar em 2010 o centenário da morte de quem – além de diplomata, político, humanista, advogado e cultor da literatura ao fundar com Machado de Assis a Academia Brasileira de Letras – foi o Jornalista da Abolição. 

As homenagens foram prestadas também como resultado do fascínio pessoal exercido por este monarquista tradicional que, mesmo assim, engajou-se na causa abolicionista e ligou-se tanto à Princesa Isabel “que pode ter sido ele quem mais induziu a Regente do Império a proclamar a Lei Áurea” em 13 de maio de 1888. E cujo “preço político foi o 15 de novembro de 1889 que selou o fim da Monarquia:

– “A Princesa Imperial, já a caminho do exílio, afirmava: …se houvesse ainda escravos no Brasil, nós voltaríamos para libertá-los” – lembrou o conferencista Sylvio Massa de Campos, economista, matemático, escritor e direto descendente (sobrinho) de José Lins do Rêgo.

O “nós” aqui referido por Sylvio Massa poderia significar, mesmo inconscientemente, que a Princesa estava a dizer “eu-Isabel e ele-Nabuco”.  

A proximidade de Nabuco com a Princesa – “que gostava muito dele, podendo-se tirar daí a conclusão que se desejar” – foi enfatizada durante o Simpósio de Recife pelo coordenador e conferencista Arnaldo Niskier, da Academia Brasileira de Letras, em intervenção após as palestras. Ao seu lado na mesa diretora estava o editor e jornalista Alexandre Sávio, produtor do evento juntamente com o jornalista Jorge Sávio. Participaram também como conferencistas o diplomata e escritor João Almino, o professor da Universidade Federal da Bahia Edivaldo Machado Boaventura da Academia de Letras da Bahia e a presidente da Comissão do Ano Nacional Joaquim Nabuco, Lucila Bezerra. 

Ela ofereceu um balanço das comemorações que contaram inclusive com a realização do seminário “Congresso Nabuco e o Novo Brasil”, realizado em outubro último, em Nova York, mobilizando a Americas Society, a West Point Military Academy e a Columbia University. Razão maior para o seminário nos EUA, lembrando os 100 anos da morte de Nabuco, foi o fato histórico de ter sido ele o primeiro Embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Tão admirado se fez que ao morrer em Washington aos 60 anos de idade, vítima de uma septcemia em 17 de janeiro de 1910, o presidente William Howard Taft determinou que seu corpo fosse trasladado ao Rio de Janeiro no cruzador North Caroline. O que se fez. Com honras e pompas. Do Rio, Nabuco seguiu para Recife onde finalmente ganhou chão definitivo.

Cem anos depois ainda se discute se Nabuco foi um monarquista de esquerda ou um esquerdista deslocado na monarquia. Sobre essa dúvida-debate que pairou no Simpósio de Recife, vale reproduzir um trecho da fala do economista Sylvio Massa:
– O humanismo de Joaquim Nabuco tem seu centro de gravidade na liberdade do indivíduo e na prevalência da lei sobre todos, atingindo-se a igualdade, idealizada pela revolução francesa, “para tolerar a diversidade da espécie humana” 

(*) O jornalista José Alves Pinheiro Júnior participou do Simpósio de Recife como Conselheiro da ABI e editor da Auracom