Milton Gonçalves, estivador das artes


01/06/2022


Por Guina Araújo Ramos em Bonecos da História

Perdemos neste final de maio de 2022, um grande personagem da dramaturgia brasileira, gente da maior importância e qualidade, querido de todo o povo brasileiro, exemplar defensor das causas da população negra.

Pouparei meus poucos leitores de um arrazoado sobre sua vida e carreira, que a mídia e muitos dos seus amigos já o fizeram a contento, dando-lhe todo o mérito que lhe coube.

Relato, então, minha tão pequena, mas marcante convivência com aquele que foi, ainda que de relance, um dos meus bons amigos, o ator e diretor Milton Gonçalves.

Convivi com o (de todos) querido Milton Gonçalves, em muitos lances profissionais, nas décadas de 1970 e 80. O meu trabalho era fotografar gravações de capítulos de novelas da TV Globo para revistas da Bloch Editores (Amiga, Sétimo Céu) e, depois, para reportagens do Caderno B do Jornal do Brasil. O trabalho dele, era exercer sua arte e incorporar personagens que emocionariam gerações.

Mas o melhor, e fico feliz só em lembrar, era a simpatia com que convivia conosco, trabalhadores da imprensa, e em particular comigo, que tantas vezes conversamos, sempre suavemente, simpaticamente, amigavelmente. E realmente eu o via como um amigo sincero, simples, espontâneo, nossa amizade concentrada no espaço e no tempo, em estúdios ou em externas da Globo, só durante as gravações. Mas, a gente se curtia: sempre trocávamos sorrisos, comentários simpáticos e bem humorados, ele sempre com toda boa vontade para a entrevista e as fotos.

Apenas uma vez, fui fotografá-lo num ambiente pessoal, em sua casa, numa entrevista, certamente para a Amiga. E sua casa era simplesmente um apartamento discreto de pequeno conjunto residencial de classe média na Rua Marquês de Olinda, em Botafogo. Eu, ele e a repórter (quem?…) conversamos calmamente na sala do apartamento silencioso, que certamente as crianças estavam na escola…

De toda esta relação profissional, me restou uma única foto, da última vez em que nos vimos, ele, por ironia, como ator de novela que não existiu!… Nos meados dos anos 1980, antes que ele investisse na política (de que nada fotografei), fui um dia fazer fotos de externa de novela, em armazém do Cais do Porto, perto da Praça Mauá. Lá, reencontrei Milton Gonçalves, desta vez em um inesperado “modelito” estivador… Gravações muito estranhas, cheias de indecisão, nada de cenas maiores, mais registros de movimentos e tal, sabe-se lá porque a novela não foi adiante, dias depois deram por cancelada. Nem faço ideia de qual seria o nome, agora nem importa: dela, ficou o melhor, uma lembrança particular do querido amigo que acaba agora de partir para outros palcos.

E me ficou esta imagem, altamente simbólica, de Milton Gonçalves, mestre guerreiro: assumindo, no papel de humilde estivador, seu personagem real, o de ser, para sempre, um trabalhador a carregar, no próprio corpo, todo um grande estoque de potenciais do povo brasileiro.