Ditadura militar matou pelo menos 47 pessoas vinculadas à USP, entre elas Alexandre Vannucchi Leme


14/03/2023


Por Camilo Vannucchi, em Jornal da USP (*)

Quando Alexandre Vannucchi Leme foi raptado por agentes do DOI-Codi e conduzido ao mais temido centro de tortura de São Paulo, no dia 16 de março de 1973, a USP contabilizava pelo menos 24 estudantes mortos e desaparecidos por ação do Estado desde o golpe deflagrado nove anos antes. Em mais da metade dos casos, haviam deixado de frequentar as salas de aula à medida que a militância no movimento estudantil e, em seguida, nas frentes de oposição à ditadura os empurrava para a clandestinidade – numa época em que qualquer manifestação política ou publicação podia servir de argumento para detenção, maus-tratos e desaparecimento forçado.

Foi assim, por exemplo, com Antonio Benetazzo, aluno do curso de Filosofia que caiu na clandestinidade em 1968 e foi morto em outubro de 1972. Meses antes, em fevereiro, agentes do DOI-Codi mataram Gelson Reicher, estudante de Medicina. Helenira Resende, aluna de Letras, acumulava as funções de presidenta do centro acadêmico e vice-presidenta da UNE quando foi presa pela primeira vez, em 1968, sendo empurrada para a clandestinidade no ano seguinte: foi morta no Araguaia, também em 1972. Em todos esses casos, não houve desligamento formal da Universidade, tampouco trancamento de matrícula.

Professores e funcionários também sofreram perseguição. Heleny Guariba, formada na Faculdade de Filosofia, lecionava dramaturgia na Escola de Arte Dramática (EAD) antes de ser morta, em 1971. Vladimir Herzog, chefe de jornalismo da TV Cultura assassinado em 1975, dava aulas de Jornalismo na Escola de Comunicações e Artes (ECA), como professor associado. Ana Rosa Kucinski era professora do Instituto de Química (IQ) quando desapareceu, em 22 de abril de 1974. Havia deixado o campus para almoçar com o marido, Wilson Silva, ex-aluno da Física, quando ambos desapareceram. Das 47 vítimas fatais da repressão vinculadas à USP, 37 são homens e 10, mulheres.

Todos esses casos estão narrados no relatório final da Comissão da Verdade da USP. Formada em 2013, tal comissão detalhou com propriedade os paradoxos que se alastraram pela USP a partir de 1968. Ao mesmo tempo em que parte dos professores e dos estudantes se mostrava intensamente comprometida com o resgate da democracia, com o repúdio à censura e com a denúncia das atrocidades praticadas pelo regime, muitos deles pagando com a própria vida, com o exílio forçado ou com anos de detenção, o ambiente universitário se caracterizou, também, pela perseguição e pela prática de delações.

É dessa forma que o relatório final da Comissão da Verdade da USP, publicado em 2018, descreve a criação da Assessoria Especial de Segurança e Informação (Aesi), implementada na Universidade em 1972 com a finalidade de “realizar triagem ideológica de alunos, professores e funcionários”. Segundo o documento, a Aesi teria produzido “inúmeros informes, com difusão para as Forças Armadas, para o Serviço Nacional de Informações (SNI), para o Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops) e para as polícias.” Em muitos casos, ainda conforme o relatório, “a vigilância resultou em prisão, morte, desaparecimento, privação de trabalho, proibição de matrícula e interrupção de pesquisa acadêmica na instituição”. Coincidência ou não, um dos funcionários lotados na Aesi teria visitado o prédio do Deops em 23 de abril de 1974, um dia após o desaparecimento da professora Ana Rosa Kucinski. Seu nome está anotado no livro de registros de entrada na sede da polícia política paulista.

Por que razão a morte de Alexandre Vannucchi Leme, em 17 de março de 1973, acabou se destacando em relação às demais baixas sofridas pela comunidade USP naquele período – justificando, por exemplo, sua escolha como patrono do Diretório Central dos Estudantes, refundado em 1976 como DCE-Livre Alexandre Vannucchi Leme? Não precisa ir longe: seu colega no curso de Geologia, Ronaldo Mouth Queiroz foi fuzilado num ponto de ônibus por uma equipe do Dops no dia 6 de abril de 1973, apenas três semanas após a morte de Alexandre, sem que seu assassinato tenha suscitado a mesma comoção.

O jornalista Sérgio Gomes, que era estudante da ECA e diretor do Centro Acadêmico Lupe Cotrim em 1973, entende que a diferença esteve na repercussão, amplificada sobretudo em razão da missa presidida por Dom Paulo. “De repente, havia 3 mil estudantes na Catedral da Sé, o arcebispo de São Paulo repudiava publicamente a versão oficial de atropelamento, um cantor como o Sérgio Ricardo veio cantar na cerimônia e as autoridades não se entendiam sobre o que responder e como se explicar”, diz.

Para Adriano Diogo, colega de Alexandre na graduação em Geologia, também contribuiu para isso o perfil do estudante assassinado. “O Alexandre era um estudante típico, primeiro aluno da classe, com um jeitão de menino do interior, que punha apelido em todo mundo, com quem todo mundo se dava, e que era disputado pelos professores como assistente ou orientando porque já chegou geólogo”, diz. “Ele não tinha nenhum cargo na hierarquia da ALN, não era um guerrilheiro procurado. A morte dele foi um absurdo, não fazia nenhum sentido.”

Em 2011, por iniciativa do Núcleo de Estudos da Violência, foi inaugurado o Memorial em homenagem aos membros da comunidade USP que foram perseguidos e mortos por motivações políticas durante o regime militar (1964-1985), conforme inscrição feita no monumento de concreto aparente. A obra está exposta na Praça do Relógio, no coração do campus do Butantã, em São Paulo, e lista 38 nomes. Por ocasião da entrega do relatório final da Comissão da Verdade da USP, que listou 47 nomes, foi proposto o acréscimo dos nove nomes faltantes. O nome de Alexandre Vannucchi Leme está gravado na sexta placa de concreto, de um total de dez, junto com Heleny Guariba, Luiz Eduardo Merlino e outros. De vez em quando, o monumento amanhece pichado com palavras de ódio ao comunismo e de louvor à “revolução de 1964”. Ao que parece, a universidade segue um território em disputa – o que renova o compromisso dos que lidam com memória e justiça de sempre contar. Para não esquecer.

(*)  jornalista e escritor, mestre e doutor em Ciências da Comunicação pela USP, professor de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e primo de segundo grau de Alexandre Vannucchi Leme. Para informações sobre o livro Alexandre Vannucchi Leme: eu só disse o meu nome, entre em contato pelo e-mail camilo.vannuchi@gmail.com