‘Cercados ou cercados
em terra em transe’


12/12/2020


“Cercados” revela os desafios da cobertura jornalística na pandemia

“Cercados” ou Terra em Transe (*)

Por Vera Saavedra Durão, jornalista, membro da Comissão Inclusão Social, Mulher & Diversidade da ABI

“Cercados” ou “A imprensa contra o negacionismo da Pandemia” é um documentário de grande valor histórico, que revela os bastidores da cobertura jornalística no País, infestado pela peste do Corona Vírus. Os fatos ali expostos abarcam os meses de março, abril, maio e início de junho deste ano. No depoimento de Flávia Lima, ombudsman da Folha de São Paulo, o Brasil vivenciou, neste período, “uma mistura explosiva” de crises: sanitária, econômica e política.

O nome do filme foi inspirado no “cercadinho do Planalto”, onde repórteres de jornais e TVs se amontoavam (literalmente) para cobrir as entrevistas do Presidente Bolsonaro, tendo ao lado um outro espaço, erguido propositalmente, para receber apoiadores. O ritual diário das coletivas ocorria com a chegada do Presidente ao Planalto. Ele ia direto ao “cercadinho”, saudava seus partidários e, em geral, num segundo momento, se dirigia de forma provocativa e agressiva aos jornalistas.

Estes “quebra-queixos” foram reveladores da maneira como o mandatário supremo da Nação iria conduzir sua política de combate à Pandemia e de guerra contra o jornalismo.

Os conflitos começaram com a queda de braço entre o Presidente e o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ainda no final de março. O mote de Bolsonaro era desqualificar a orientação do ministério em relação aos cuidados com a doença com declarações do tipo “Depois da facada não é uma gripezinha que vai me derrubar”, “não sou coveiro”, dizia em relação aos mortos e sobre o distanciamento ironizava: “quem fica em casa parado vai morrer de fome”.

O documentário explicita o processo de “fritura” de Mandetta, que estava se tornando uma figura popular entre os brasileiros por dar orientações e informações diárias sobre a evolução da Covid-19, o que, na avaliação de analistas políticos, irritou o Presidente. Sua substituição por Nelson Teich, um inexpressivo oncologista paulista, ocorreu em meio a “panelaços” de protestos por todo o País.

Teich permaneceu apenas dois meses na pasta. Sua saída foi patética. Ela ocorreu depois dele saber, através da imprensa, numa coletiva no Ministério, que o Presidente autorizara a abertura de academias de ginástica e salões de beleza e barbearia, por considerar estes serviços essenciais. O constrangimento foi geral, como revela o documentário. “A vida tem escolhas e hoje escolhi sair. Dei o melhor de mim enquanto estive aqui e não aceitei o convite pelo cargo, mas porque achei que podia ajudar o Brasil”, disparou poucos dias depois o médico, na coletiva onde anunciou sua demissão, sem mais nenhuma explicação.

Na época, em 15 de maio, o País já contava com 14 mil mortos.

Sem ministro da Saúde, o corona vírus lotou hospitais e cemitérios. (veja, clicando no link, a referida matéria postada no site da ABI em 04/05/2020, “Boa informação combate pandemia nas favelas”. http://www.abi.org.br/informacao-combate-coronavirus-nas-favelas/) . O repórter fotográfico Raphael Alves, da Agência EFE, relata que fotografou em cemitérios enterros de vítimas da Covid em “vala comum”, com o uso de escavadeiras para tapar os caixões, como mostra “Cercados”. “Escolhi fazer as fotos em cinza plúmbeo para mostrar o peso deste momento”, declarou Alves. Um coveiro lhe contou que, em um único dia, enterrou 115 pessoas “entrando pela noite com farol de luz”.

Em meio a este caos sanitário, a situação política foi se agravando com avanços de manifestações cada vez mais agressivas da extrema-direta. Entre abril e maio as fake news corriam soltas em relação à Covid, confundindo os cidadãos menos informados, como denúncia o documentário, e o Presidente fazendo acusações aos meios de comunicação por criar sensação de pânico na população.

Um protesto de profissionais de saúde, que manifestavam seu descontentamento em Brasília, foi alvo até de agressões físicas de bolsonaristas de raiz. Para azedar ainda mais a conjuntura, o ministro da Justiça, Sérgio Moro, pediu demissão em 24 de abril, acusando o Presidente de querer interferir na Polícia Federal. As provas da acusação se materializaram num vídeo de uma reunião ministerial do dia 22 de abril.

A saída de Moro esquentou ainda mais o pesado jogo político. Em 5 de maio, quando o Presidente chegou ao “cercadinho” avisou aos repórteres: “jogo rápido”. Bastante enraivecido com as notícias sobre as acusações de Moro mandou um repórter calar a boca. Chamou a Folha de São Paulo de “canalha”, bastante exaltado com a divulgação do vídeo autorizada por Celso de Mello, o então decano do STF. Os palavrões, a passada da boiada enquanto a imprensa cobria o corona vírus e outras declarações reveladas no vídeo estarreceram e assustaram o País.

Em 25/05 o Presidente foi até o “cercadinho”, como de praxe, e provocou os jornalistas: “o dia que vocês tiverem compromisso com a verdade eu falo com vocês”. E foi saindo. No ato, seus  apoiadores, irados, passaram a atacar os repórteres e cinegrafistas , chamando-os de lixo,  pedindo intervenção militar, criando um clima de terror, como se vê em “Cercados”.

O fato extrapolou todos os limites de tolerância dos profissionais de imprensa, que levaram as queixas às chefias das empresas jornalísticas que, finalmente, optaram por colocar um fim àquela cobertura perigosa, que aliás já fora criticada pela Associação Brasileira de Imprensa. O site da ABI já havia feito matéria sobre os riscos do “cercadinho” (veja, clicando no link, a referida matéria postada no site da ABI originalmente em 25/5/2020, “Plantão no Alvorada: tarefa de alto risco”.  http://www.abi.org.br/plantao-na-alvorada-tarefa-de-alto-risco/ ).

Estimulados pelas manifestações antidemocráticas, grupos neonazistas e de supremacia branca, intitulado os 300, fizeram, na ocasião, uma manifestação fantasmagórica em Brasília, à noite, com velas e máscaras nos moldes da Klu Klux Klan americana.

O Ministro Fachin se manifestou, em seguida, dizendo que tal manifestação era um atentado contra os poderes e que não eram apoiadas pela Constituição. A escalada de tensão entre os poderes só crescia, como observou Sérgio D’Ávila, diretor da Folha.

Uma determinação do STF que irritou profundamente o Governo, foi a inclusão de empresários no inquérito que apurava as fake news.

Em 28/05 um dos filhos do Presidente, Eduardo, e seu pai reagiram em tom de ameaça contra as declarações do Supremo, com o Presidente declarando que “ordens absurdas não se cumprem e nós temos que botar um limite nestas questões. Ontem foi o último dia. Acabou! Me desculpem o desabafo. Acabou. Querem tirar a mídia que eu tenho a meu favor”.

O pronunciamento caiu como uma bomba sobre as instituições por ser uma ameaça direta à nossa frágil democracia.

O mês de junho já começou com atos a favor e contra o governo. Grandes manifestações em Brasília de antifascistas, com palavras de ordem “fascistas não passarão”, “Fora Bolsonaro”, ”Impeachment Já”, “Marielle Vive!”. A crise era profunda.

O governo, ainda sem ministro da Saúde, decidiu em 5 de junho, mudar o horário de divulgação dos dados sobre a evolução da pandemia para só depois das 10 horas da noite. O Presidente provocou na ocasião: “acabou a matéria do Jornal Nacional”.  O fato levou os jornais e TVs a se juntarem e criar o consórcio da imprensa para divulgar os dados da Covid, levantando os dados das 27 secretarias estaduais de saúde. Em 19 de junho o país já contava com mais de 50 mil mortos pela doença. (veja, clicando no link, matéria postada no site da ABI, postada em 8/8/2020, “Tragédia: cem mil mortos por covid no Brasil”. http://www.abi.org.br/tragedia-cem-mil-mortos-por-covid-no-brasil/).

Em 8 de agosto o número de óbitos já ultrapassava 100 mil mortos, o que levou o STF a decretar luto oficial em todo o País. Em outubro o total de mortos já passava de 150 mil.

Durante os cinco meses dedicados intensamente à cobertura da pandemia, 180 jornalistas contraíram a doença, segundo o documentário. (veja, clicando no link, nota oficial postada no site da ABI postada em 21/4/2020 “Jornalistas em tempos de covid”. http://www.abi.org.br/jornalistas-em-tempos-de-covid-19/).

“Cercados” é uma narrativa primorosa sobre o Brasil de Bolsonaro.

O importante é que as manifestações populares antifascistas, capitaneadas pelas torcidos de futebol, como a do Corinthians, o inquérito das fake news no STF, o inquérito aberto para apurar a interferência do Presidente na PF, e a firmeza das instituições levaram a um recuo do Planalto e da extrema -direita e propiciaram que o País tivesse, em novembro, eleições municipais pacíficas, nas quais o eleitor se revelou contrário a extremismos políticos.

Hoje, o País já conta com quase 200 mil mortos.

E Bolsonaro já deu início a uma nova guerra contra a Ciência: a revolta da vacina!

*“Cercados” pode ser visto na Globoplay. Foi dirigido por Caio Cavechini, com roteiro de Caio Cavechini e Eliane Scardovelli.

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