Celso Horta, Presente!


18/04/2024


Por Carlos Carolino, jornalista, associado da ABI

Neste 21 de abril de 2024 completa-se um ano da morte de Celso Antunes Horta. A Folha de São Paulo, um dos veículos de imprensa nos quais trabalhou, colocaria vírgula depois de “Horta”, seguido pelo número 74, sua idade. Goste-se ou não do recurso, ele ajuda a situá-lo no tempo e na história do Brasil. Aos 21 anos, no dia 29 de setembro de 1969, por exemplo, ele está estirado sobre a calçada da rua Teodoro Sampaio, em Pinheiros, fugindo ao cerco que lhe era feito por policiais do DEOPS, sob o comando do delegado Raul Careca. Seguem-se prisão, pau-de-arara, choques e o medo de que a morte esteja mais próxima que o imaginado. O quadro é conhecido: ditadura, AI-5 e escalada da repressão contra os que lutavam contra o regime.

Celso passaria os oito anos seguintes na prisão, juntamente com outros militantes igualmente torturados e espezinhados, mas não derrotados. Evidência desse fato é a produção, ainda atrás das grades, de uma obra coletiva: A Repressão Militar-Policial no Brasil — ou, como ficou conhecido, “o livro chamado João”. Como muito de seus autores, o ensaio experimentou um longo período na clandestinidade até ser trazido ao público em 2016, pela editora Expressão Popular. Assinam, além do próprio Celso, Aton Fon Filho, Carlos Lichtsztejn, Gilberto Luciano Belloque, Hamilton Pereira da Silva, José Carlos Vidal, Manoel Cyrillo de Oliveira Netto, Paulo Vannuchi e Reinaldo Morano Filho.


Celso Horta, penúltimo sentado da esquerda para a direita, Presídio Barro Branco, 1975

Vários desses companheiros estiveram presentes na homenagem póstuma prestada ao amigo no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, em 29 de maio de 2023. Entre as histórias ali lembradas, uma delas joga luz sobre o material do qual Celso era feito. Na Ação Libertadora Nacional – ALN, o grupo fundado por Carlos Marighella, o jovem Celso (sob o codinome “Alcides”) integrava um dos Grupos Táticos Armados. De fato, ele era o subcomandante do seu GTA quando foi preso.

Esses grupos ficaram conhecidos por suas ações de expropriação, como assaltos a bancos, destinados a financiar a luta contra a ditadura. Celso atuava, sobretudo, como motorista. Motorista de fuga. Por irrisório que possa parecer a olhos desavisados, um motorista de fuga era essencial para o sucesso de uma ação. Uma descrição de cargo demandaria além da habilidade ao volante, alguém capaz de planejar as rotas de escape e a capacidade de reagir a imprevistos — polícia, tiroteios, feridos — com eficácia e sangue frio. Ele preenchia os requisitos.

Na homenagem realizada no Sindicato, Aton lembrou de um episódio emblemático sobre a “calma” com que Celso reagia sob pressão. Certa feita, os dois se encontravam na periferia de São Paulo fazendo um levantamento para uma ação. Entram, por engano, por uma rua de terra e quando se dão conta estão de frente para um campinho de futebol, ao lado de uma birosca e à frente de um caminhão. Nada de tão terrível até serem ladeados por um camburão. Porque estava ali, não se sabe. Mas um dos policiais, ostentando uma metralhadora, encarou os ocupantes. Fon lembrou que ele e Celso estavam armados, o que seria um problema em caso de uma possível revista. Mais ainda: o carro que ocupavam, um simpático Corcel, era roubado. Celso, ao volante, agiu como se não fosse com ele. Com a maior naturalidade do mundo, sinalizou para que o motorista do caminhão saísse de ré, contornou a viatura policial (que, pasmem, também lhe concedeu passagem) e partiu mansamente. De quebra ainda agradeceu aos policiais.

Em 1977, sob os ventos da Anistia, Celso deixa a prisão. Não retoma o curso de Direito, que havia iniciado na PUC SP, optando, dessa vez, pelo curso de jornalismo na ECA-USP. Acredita que um jornalismo crítico e bem-feito é fundamental a um projeto de comunicação mais amplo, capaz de apoiar as mudanças que o país precisava. Em essência — sem talvez o tempero romântico dos primeiros tempos — essa ideia o acompanhará ao longo da vida, culminando com a criação do jornal ABCD Maior.

Antes de chegar lá, Celso participou de várias iniciativas no campo da comunicação. Ainda na faculdade, ele ajuda na criação de um jornal em Franco da Rocha, o Primeira Mão. O projeto é encabeçado por um colega de classe, natural daquela cidade e que viria a se tornar um grande amigo: o hoje deputado estadual pelo PT, Mário Maurici de Lima Morais. “O jornal foi um primeiro passo para a consolidação do PT na região”, diz.

Outra iniciativa foi a criação, no início dos anos 1980, da ABR, Agência Brasileira de Reportagens, uma agência de notícias que fornecia conteúdo editorial para pequenose médios jornais de diversas partes do Brasil. Em parceria com outro antigo militante da ALN, Antonio Carlos Fon — um dos mais respeitados jornalistas de polícia da imprensa brasileira —, Celso consegue reunir um grupo de profissionais de primeira linha, que produziam um material diferenciado e de qualidade sobre assuntos do momento. Entre eles, naturalmente, o movimento sindical na região do ABC e o surgimento do Partido dos Trabalhadores, sob a liderança do hoje presidente Lula.

Celso e o PT terão uma longa convivência futura, mas antes de focar nesse aspecto vale falar do jornalista. Além da Folha de São Paulo, já citada, ele trabalhou no Jornal do Brasil, na TV Manchete e no Jornal da Tarde, entre outros veículos. Vale lembrar também que, em Cuba, onde viveu por cerca de dois anos, ele contribuiu para a edição semanal do lendário Granma. Mas foi como repórter do JT, que ele se tornou chave para um dos maiores furos do jornalismo de economia dos anos 1980, o Caso Tieppo.

A corretora Tieppo fazia algo vedado a investidores brasileiros à época: aplicações financeiras do exterior. Quando quebrou, o escândalo veio à tona. Os detalhes podem ser conferidos nas páginas do GGN, de Luís Nassif, então chefe de reportagem de economia do JT e chefe de Celso. Basta dizer aqui que, na contramão das versões oficiais encabeçadas pelo delegado Romeu Tuma — e passando uma boa conversa na telefonista da empresa — Celso levantou o nome de cada um dos investidores, lista que acabou confirmada pelo próprio advogado de Tieppo. As palavras de Nassif não deixam dúvida: “A morte de Celso Horta priva o jornalismo brasileiro de uma das pessoas mais doces, coerentes e corajosas que conheci”. Segundo ele, Celso poderia ter se tornado um expoente do jornalismo investigativo. Mas a vida seguiu por outros caminhos.

No final dos anos 80, Celso passa a se envolver mais diretamente com o Partido dos Trabalhadores e a ter, na região do ABCD paulista, o seu foco de atuação. No PT, ele atuará com José Dirceu durante o seu período como Presidente do Partido dos Trabalhadores. No Sindicato dos Metalúrgicos do ABC ele irá assessorar o presidente Vicente Paula da Silva, o Vicentinho e, anos mais tarde, Luiz Marinho, a quem também acompanhará na presidência da CUT. Em 2006, com o apoio da CUT e do Sindicato dos Metalúrgicos, Celso dará início a um ambicioso projeto de comunicação regional:o jornal ABCD Maior. Foi frequente a presença do veículo apoiando iniciativas ligadas ao trabalho, à cultura e à discussão de temas políticos, tanto locais como nacionais. As expectativas eram grandes, mas as dificuldades para sustentar o projeto tal como imaginado foram maiores. Pode-se dizer que essa foi uma de suas maiores decepções.

Desistiu da luta? Longe disso. Mas a ação passou a conceder um espaço maior à reflexão. É daí que irá surgir sua obra mestra: Tempo dos Cardos, a saga de João Leonardo, dirigente do Movimento de Libertação Popular, o Molipo, naquele que foi um dos últimos esforços da luta armada para se contrapor à ditadura sanguináriainstaurada no Brasil. Vale registrar que Celso já escrevera um livro, A Greve da GM, em 1993, e uma tese de mestrado sobre o Diário do Grande ABC: O braço ‘direito’ do grande ABC. Por uma dessas trapaças do destino, ele não chegou a ver Tempo dos Cardos publicado. Mas o livro está entre nós, cumprindo a função de manter viva a memória sobre o passado.

Sim, Celso Horta, você está presente. E não apenas no coração das suas filhas, Guta e Joana, de sua enteada Danielle, dos netos que você tanto curtia e dos companheiros, amigos e familiares que tanto o respeitavam. Mas não abusa, tá? Há poucas semanas, Mônica, 54, esposa de Celso e analista na Assembleia Legislativa de São Paulo, conversava sobre comunicação com um jovem assessor do gabinete, David, quando este veio com a proposta: “e se a gente criasse uma agência de notícias de esquerda?”. A reação de Mônica foi imediata: “Sai Celso Horta, sai desse corpo que não te pertence!”. Risos. Alguém já disse o quanto o Celso era persistente?