A farra do crédito e o homem endividado


22/09/2008


Colaboração de Altamir Tojal, jornalista e escritor

É preciso ter cuidado para não cair na mesma tentação dos profetas do pensamento único, que assinaram antes da hora o atestado de óbito da diferença. Eles saudaram a convergência das idéias — não só as econômicas — em torno do paradigma absoluto do mercado. Deu no que deu.

Não cabe, então, decretar o fim do liberalismo, mesmo depois da intervenção trilionária dos governos para conter o efeito dominó dos bancos quebrados. E parecem vãs as especulações sobre o que vai acontecer com o capitalismo.

Mas 2008 vai ser lembrado como o ano em que o capitalismo mudou. Mudou mais uma vez. O capitalismo se nutre da mutação. Tem fôlego de sete gatos.

Evocando Marx, o filósofo Gilles Deleuze disse que o capitalismo é um “sistema imanente que não pára de expandir os próprios limites, reencontrando-os sempre numa escala ampliada, porque o limite é o próprio capital”.

Os mais pessimistas dirão que o capitalismo mudou para pior. Esta é a finalidades deles. Teremos outra grande recessão e a miséria será maior para sempre. Os otimistas — se é que sobrou algum — e os menos pessimistas talvez vejam esta nova crise de forma menos sombria.

A quebra de 1929 levou ao welfare state, estado do bem-estar, que durou umas boas quatro décadas. Por que não é possível admitir agora algum controle da sociedade sobre o capital financeiro? E por que não admitir políticas globais de comunhão da imensa riqueza produzida pelos avanços da tecnologia e da ciência?

Não parece fazer sentido que uma economia que depende cada vez menos do trabalho insista em padrões primitivos de distribuição e em desperdiçar o imenso ganho de produtividade em crises sucessivas e guerras sem-fim. 

Afinal, o mundo real continua no mesmo lugar, produzindo misérias e maravilhas. Por que não botar algumas fichas em nossa capacidade de ir em direção do que fazemos e podemos fazer de melhor?

Depois do enfraquecimento do estado do bem-estar e da derrocada do comunismo soviético, o triunfalismo liberal quis enterrar a esquerda e buscou desqualificar qualquer outra crítica ou proposta alternativa. Tudo que não glorificasse o deus mercado era jurássico e insano.

OK, o Muro ruiu de podre. O estatismo coroou a imoralidade e a incompetência. Muitas políticas para proteger os desprotegidos falham e acabam superprotegendo os já protegidos.

Mas é deplorável que esse fracasso tenha sido usado para penalizar políticas sociais e para promover a farra do crédito sem lastro. E pior, para sufocar a divergência e indultar liminarmente os que se locupletam da “exuberância irracional” e os que fecham os olhos diante da orgia financeira globalizada.

E agora? É pouco provável que a arrogância triunfalista liberal sobreviva ao choque dessa crise. E é certo que de nada vale trocar uma arrogância por outra. O fracasso do liberalismo desregrado não transforma em sucesso o fracasso do intervencionismo voluntarista.

O mundo já vai ficar melhor por conta do convencimento de que não há sistema perfeito. E sobra o dever de espernear para que o custo da socialização do megarrombo não fique para os mais pobres. Talvez essa seja a maior e mais urgente missão política da hora.

Vale, também, estar atento à sedução do endividamento. Pelo menos aqui no Brasil, o comércio e as financeiras continuam distribuindo dinheiro fácil, a perder de vista. É bobagem querer demonizar o crédito. Mas é bom ter cuidado para não empenhar a alma.

A farra do crédito vem de longe e o primeiro aviso público da crise chegou na metade de 2006, com a disparada dos juros imobiliários nos Estados Unidos. Desde então, cada capítulo da novela da crise parece validar outra formulação de Deleuze (para ficarmos no mesmo filósofo). Ele observou que o homem endividado é o sujeito dessa versão contemporânea do capitalismo, que depende cada vez menos da coerção explícita para exercer o controle social. No lugar do medo da censura e da prisão, basta agora a alegria do cartão de crédito.