A dor do jornalismo sem diploma


29/03/2012


Contava-se (a boca grande) que dentista prático só arrancava dente com dor. Pois aplicar anestesia exigia mais que simples habilidade. Antes de pegar o boticão, porém, o prático ministrava boas doses de pinga pura goela abaixo do paciente – e da própria garganta!  Assim o pobre leitor… isto é, o pobre paciente  talvez conseguisse agüentar o tranco.

Claro que isso era uma piada. Muitos até achavam graça. Mas era uma piada que podia ser verdade verdadeira em áreas talvez menos fiscalizadas/policiadas. Era também uma piada típica daqueles tempos. Uma piada de protesto contra os que achavam supérflua a exigência de diploma para dentistas. Estávamos em meados do século passado e o Mec do legendário ministro Gustavo Capanema – que acreditava na importância total da Universidade – ultimava “provas de suficiência” para conceder diplomas que legalizassem o exercício da Odontologia.

Se for possível medir o quanto de semelhança esta piada-verdade pode ter com os tempos atuais, basta substituir no lead desta crônica a palavra “dentista” por “repórter” e a expressão “arrancava dente com dor” por “fazia cascata”.

Falando sério, é no mínimo doloroso lembrar que no dia 17 de junho de 2009 o Supremo Tribunal Federal teve um acesso de regressão ao passado e cassou a exigência de formação de nível superior – o diploma! – para o exercício (legal) da profissão de jornalista.

E já que estamos evocando e invocando o doloroso passado inculto e retrógrado, não seria exagero bradarmos aos céus com a exclamação “Oh! Senhor Deus dos desgraçados!” imortalizada pelo também jornalista Antônio de Castro Alves – o nosso cantor dos escravos e defensor de todas as vítimas de inacreditáveis injustiças que resistem à evolução do gênero humano e da Civilização:

– Dizei-me vós, Senhor Deus, se é mentira ou se é verdade que há quase três anos Te mandamos nosso grito de protesto e de revolta que embalde desde então corre o infinito, pois precisamos continuar na luta pelo nosso direito ao diploma!

Castro Alves que nos perdoe o relax destas linhas chorosas e mal traçadas – ele que era a expressão da liberdade.  Mas não há como renunciar à paródia poética.  Principalmente porque constatamos que o Senado Federal, ao aprovar em primeiro turno a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 33/09, restabelecendo a exigência de diploma de jornalista para o exercício da profissão, em verdade os senhores senadores apenas atendem ao apelo da sociedade. É essa, aliás, a principal função da Câmara Alta ao exercer seu papel soberano, que evidencia a real identidade do Parlamento com a opinião pública.

Temos, portanto, de continuar gritando. Pois a votação do segundo turno no Senado e a continuação do processo na Câmara Federal serão tanto mais rápidos quanto mais ampla for a mobilização dos interessados. Os interessados primeiros somos nós jornalistas, é verdade. Mas como “não há povo sem jornalismo, nem jornalismo sem povo”, que tal levar essas verdades também aos leitores dos jornais que nos restam como porta-vozes de anseios populares depois de tanta cartelização imposta ao tão badalado Quarto Poder?

Estudantes, professores e mesmo o mercado de trabalho sabem que a formação universitária é essencial para o exercício de um jornalismo competente, ético e responsável. E também sem dor. Sem dor inclusive para o público que percebe seu desamparo ante o poder dos donos da mídia. Prova da necessidade acadêmica são os cursos de Jornalismo. Os quais, malgrado as previsões pessimistas, continuam na cabeça da procura de cursos superiores. Somos informados que o vestibular de 2011 da Universidade Federal Fluminense (Uff), por exemplo, se manteve como dos mais procurados por candidatos que acreditam no jornalismo com Diploma. Esse interesse ficou atrás apenas da Medicina, da Engenharia e do Direito. Salvo informações incompletas de eventuais “repórteres práticos”, a procura pelo jornalismo com formação universitária demonstra o quanto a Suprema Corte está divorciada da vontade popular. Ou simplesmente desinformada. É uma procura que permanece viva apesar da pretensa sentença de morte. E capaz, assim, de se juntar aos estímulos para o Congresso Nacional  acelerar o processo de restabelecimento de um direito que não é só dos Jornalistas.

É do povo brasileiro.

*Pinheiro Júnior é membro Conselho Deliberativo da ABI e de Ética do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado do Rio de Janeiro.