Documentos da ditadura são repatriados


14/06/2011


Documentos e microfilmes do acervo do projeto “Brasil:Nunca Mais” foram repatriados em solenidade na tarde desta terça-feira, dia 14, na sede do Ministério Público Federal, em São Paulo. O conteúdo será disponibilizado no site do Arquivo Público do Estado de São Paulo. O processo de digitalização e de publicação na internet deve demorar cerca de um ano e será conduzido pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo, pelo Arquivo Nacional e pelo Armazém Memória.
 
O “Brasil:Nunca Mais” ajudou a denunciar ainda durante o regime militar, a prática de tortura e de outras violações de direitos humanos, chegando ao nome de 444 torturadores.
 
O acervo foi trazido de Chicago(EUA), no Center for Research Libraries, onde vinha sendo mantido nos últimos 26 anos. São 543 rolos de microfilme, que totalizam 1 milhão de páginas de 707 processos. Há informações sobre 1.843 vítimas, incluindo mortos e torturados que sobreviveram. Por serem documentos da instância mais elevada da Justiça Militar, apenas processos que alcançaram a última instância estão incluídos. 
 
O projeto “Brasil:Nunca Mais” foi organizado secretamente durante a ditadura militar por Dom Paulo Evaristo Arns, na época arcebispo de São Paulo, e pelo pastor presbiteriano Jaime Wright. Eles descobriram que os processos da Justiça Militar poderiam ficar até 24 horas com advogados dos envolvidos.
 
Entre 1976 e 1985, o Conselho Mundial de Igrejas (CMI), que congrega as igrejas protestantes, e a Cúria Metropolitana da Arquidiocese de São Paulo, comandada por Dom Paulo Evaristo Arns, forneceram o respaldo financeiro e político ao projeto, para detalhar ofuncionamento do regime repressivo. Advogados retiravam os arquivos legalmente durante o dia e os documentos eram fotocopiadas à noite.
 
Em 1985, poucos meses após o fim do regime militar, foi publicado o livro “Brasil: Nunca Mais”, que vendeu mais de vinte edições somente nos dois primeiros anos. Redigido por Ricardo Kotscho e Frei Betto, o a obra revela o modo de atuação do regime militar.
 
Em 1988, após o término da ditadura, apenas a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) aceitou abrigar, parte do acervo, que foi enviado na totalidade, em forma de microfilme, aos Estados Unidos. Atualmente, o “Brasil: Nunca Mais” está na 37ª edição.
 
Um lote de documentos inéditos será remetido de Genebra, na Suíça. No total, são 3.500 documentos sobre a articulação entre oDom Paulo Evaristo Arns, e o CMI.
 
Durante a concorrida cerimônia de repatriamento, foi realizada uma homenagem ao ex-ministro de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, que coordenou a coleta dos documentos.
—O acesso aos arquivos na internet coloca o País em um novo patamar em relação às investigações a ao uso acadêmico deste conteúdo. Sendo aprovada a Comissão da Verdade, o primeiro trabalho será um mergulho nesse material e, a partir desse mergulho, realizar uma série de audiências. Há uma pressão que é crescente, e que seguirá crescendo nos próximos anos. Acabou o período da impunidade. O Brasil tem dois caminhos. O caminho de protelar mais e o caminho de fazer logo. Não existe o caminho de não fazer, afirmou o ex-ministro, sobre a condenação do País na Corte Interamericana de Direitos Humanos. que avaliou no ano passado que a Lei de Anistia não pode servir de pretexto ao não julgamento de agentes envolvidos na violação de direitos humanos, entre uma série de outras determinações.
 
Segundo Marcelo Zelic, do Armazém Memória, e vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo, o repatriamento aconteceu durante um convênio com o Arquivo Público do Estado de São Paulo, os autores do projeto “Brasil: Nunca Mais” e o Ministério Público Federal (MPF):
—O projeto é importante no resgate da história do país e permite que novas gerações saibam o que aconteceu naquela época, para que isso não se repita. Nas salas de aula, a meta fundamental será cumprida para o nunca mais no Brasil. Temos um milhão de páginas que, quando indexadas, em um sistema de busca moderno, pode trazer elementos novos para muitas situações que podem ter passado desapercebido em 26 anos de pesquisa manual.
 
De acordo com o Procurador regional da República em São Paulo Marlon Weichert, o projeto é resultado de um grande esforço:
– Foram seis anos de trabalho para reunir 543 rolos de microfilme cuja impressão totaliza 12 volumes de 6 mil páginas. Na Unicamp, é a pesquisa mais procurada. Que esse material possa servir de convite à reflexão sobre a necessidade de concluirmos nosso processo de justiça de transição. A instalação da Comissão de Verdade, defendida pelo Governo Federal e em discussão no Congresso Nacional, permitiria estudar episódios ocorridos durante a ditadura, incluindo apuração sobre o paradeiro de desaparecidos e de seus corpos, além de detalhes sobre crimes cometidos por agentes do Estado. 

O Presidente da seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ), Wadih Damous, defendeu  a “luta pela verdade” e a preservação da memória:
-Vemos ainda hoje integrantes do regime militar querendo passar sua versão da ditadura, querendo desqualificar a versão dos militantes”, alertou Damous. Temos o direito de ver os criminosos, os terroristas de Estado, no banco dos réus com o devido processo legal. Não lutamos pelo direito deles, de torturar e de perseguir, lutamos pelo direito de que se sentem no banco dos réus.
 
Eni Moreira, advogada que deu início ao processo, e Delora Wright, filha do pastor Jaime Wright, também receberam homenagens. Dom Paulo não compareceu ao evento, mas manifestou humildade, em carta, afirmando não ter feito nada de excepcional.
 
*Com informações de O Globo e Rede Brasil Atual.