“O livro está morrendo? Vivam as bibliotecas!”


17/08/2010


Umberto Eco, Pedro Herz e Muniz Sodré ganham espaço
na mídia para defender o papel contra seu inimigo virtual
                                                                   
Criam-se editoras só para atender a escritores virtuais; empresas estabelecidas fazem opção por edição digital na tiragem certa da comercialização imediata; livrarias de rua são extintas pela falência em massa; a queda na venda de novos títulos no País chega a 30%; mais um diário nacional da maior importância histórica – o “Jornal do Brasil” – encerra as edições impressas enquanto nos Estados Unidos pelo menos 120 jornais de pequena e média circulação desapareceram dos pontos de distribuição nos últimos dois anos. 

Mas se a decadência dos jornais impressos quotidianos parece vir de longe, a crise econômica mundial atualiza as dificuldades publicitárias. Ao mesmo tempo as restrições ao crédito e a ampliação da conscientização ecológica transformam insubstituíveis bobinas de papel e outros insumos gráficos em artigos de luxo que mesmo a prodigalidade industrial chinesa não consegue baratear.

Uma catástrofe cultural coincidindo com o crescente temor coletivo ante as descontroladas agressões à natureza e os desacertos do capitalismo?
Realmente, depois que o “New York Times” se jogou nos braços do milionário mexicano Carlos Slim, “The Chicago Tribune”, “Los Angeles Times” e mesmo o supercapitalista “Wall Street Journal” acusam perdas anuais de US$ 5 bilhões, ao mesmo tempo em que The Washington Post e The Christian Science Monitor fecham suplementos tradicionais e se refugiam na Internet, aparentemente nada haveria a fazer pelo desprotegido livro nosso de cada dia. 

E o que dizer do desemprego mundial decorrente do impasse que juntou a briga do papel com a internet à débâcle econômico-financeira global?  Incluindo o parque gráfico-jornalístico do Brasil, já foram suprimidos 25 mil postos de trabalho destinados a repórteres, redatores, editores, ilustradores, publicitários, administradores e gráficos, segundo cálculos de analistas americanos e europeus. 

Cálculos que prevêem o desaparecimento próximo de 80% dos diários nos Estados Unidos. Mais pessimista ainda, o miliardário da comunicação Rupert Murdoch profetiza em declarações ao “Washington Post” que até 2040 o jornal diário será um veículo extinto. Ou peça de museu juntando-se à prensa de Gutenberg. 

Com base também em profecias desse gênero há governos na América Latina – como os da Argentina, Equador, Bolívia e Venezuela – que pretendem adiantar salvaguardas contra o que chamam de “latifúndios midiáticos” representados por veículos diversos mas cada vez mais impotentes para resistir ao crescimento da notícia e do lazer via internet. 

Embora não se fale em forca na casa de enforcado, a informação impressa cumpre no momento a essencial neutralidade como espaço destinado a declarações de personalidades que fazem do ato de escrever e divulgar livros a razão maior de suas vidas. 

Das últimas reportagens destacadas na mídia, separamos aqui a de três notórios profissionais capazes de representar a literatura, a livraria e a biblioteca. Os escolhidos – Umberto Eco, Pedro Herz e Muniz Sodré – no entanto, preferem minimizam o assalto eletrônico ao livro tradicional considerando-o um caso diferente, “embora paralelo”, ao dos diários e semanários de papel.

 
Umberto Eco: exemplo
da colher e da roda
 
Não nascesse na piemontesa Alessandria, Umberto Eco talvez não tivesse sido tão predestinado ao ex-librismo. Predestinação que abarca a defesa da palavra e do conhecimento gravados em papel. O que inclui os óbvios diários e semanários distribuídos em bancas. É dele – deste colunista do hebdomadário italiano “L’Espresso”, jornalista que abraçou o romance e a semiologia para se expressar em línguas várias e signos diversos – é de Umberto Eco a mais enfática e atualizada defesa do livro gutenberguiano. 

Defesa proposta pelo autor de “O nome da rosa” para anular a incendiária tecnolatria tamanho global que pretenderia antecipar a reedição das cinzas de Alexandria. Cinzas contemporâneas muito menos ocasionais do que as que reduziram a Bibliotheca das Bibliotecas às diferentes fogueiras fantásticas ou reais interpretadas pelo bibliófilo/bibliotecário Jorge Luis Borges em seu conto “A biblioteca de Babel”. Para Jorge Luis Borges, como também para Umberto Eco, o livro seria a indelével “memória da humanidade”. 

Malgrado essa sacralização, reconhece Umberto Eco que “a efemeridade do papel é uma contingência material destruidora” a ser considerada. Pois o papel de trapos ou celulose é matéria prima que precisa ser perenizada por processos e técnicas tão ou mais exigentes do que as solicitadas no tempo do cilindro de papiro livrado, o avô da Bíblia de Gutenberg. 

Aliás, reduzir literatura, livro e biblioteca a fogueira, carvão e cinza, queimar escritores, jornalistas e bibliotecários hereges ou discípulos de diabos foram práticas que construíram o sonho e o pesadelo de inquisidores do papiro, do pergaminho e do próprio papel em seis mil anos de torturada história do livro. 

Sobre tudo isso e a possível substituição e extinção do livro, Umberto Eco sentencia curiosamente o seguinte:
 – Você não pode fazer uma colher melhor do que uma colher.

As imagens comparativas da colher e do livro podem exigir uma espantosa e desconcertante correlação. Mas você também não pode fazer um martelo melhor do que um martelo. Uma tesoura melhor do que uma tesoura. Porque assim como uma roda será sempre uma roda, um livro é e será sempre um livro. 

Não exatamente usando tais expressões, foi com esse enredo comparativo que Umberto Eco se manifestou em recente diálogo gravado com o ensaísta francês Jean-Claude Carrière – ele também um ex-librista. A longa conversa teve Jean-Phillip de Tonnac como mediador. E foi traduzida para o português por Andrés Telles. A Editora Record acaba de publicar a tradução sob o título “Não contem com o fim do livro” (272 pg, 39,00).
 
Pedro Herz no metrô
de NY: só um e-book

Outro notório ex-librista, o brasileiro Pedro Herz contou à Folha de S. Paulo (Folha Mais, 21/02/2010) e repetiu ao suplemento Eu& do Valor Econômico (23/07/2010) que fez uma pesquisa (de bolso) para avaliar até que ponto o livro poderia estar morrendo para dar lugar ao e-book ou ao Kindle. Foi então direto a uma das maiores, senão a maior concentração de jornais e livros editados no mundo ocidental. Escolheu o metrô possivelmente como o difusor de mídia de melhor expressão nova-iorquina. E ficou vigiando os passageiros para ver quantos estavam usando e-readers, e-books, Kindles e correlatos eletrônicos ao invés de jornais, revistas ou livros tradicionais. 

Diz ele que em dez dias de observação encontrou apenas um leitor com o equipamento que pretende substituir textos impressos em papel por caracteres eletrônicos tão portáteis quanto os livros tradicionais. 
– Um detalhe que me chamou a atenção – conta ele – foi que esse único leitor lia segurando o aparelho com as duas mãos. As pessoas que liam livros no entanto usavam apenas uma. Depois entrevistei leitores informalmente nas livrarias. Cem por cento disseram que não vão trocar o livro pelo volume eletrônico. 

Pedro Herz é o dono da rede de livrarias Cultura, com uma dezena de lojas em São Paulo, Brasília, Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco e Ceará. Apesar de sua descrença no livro eletrônico, a Livraria Cultura anuncia que está editando 150 mil títulos para serem lidos em e-readers. Pedro Herz tem uma justificativa comercial para o paradoxo:
– Eu acho que isso é o algo mais que se pode oferecer ao leitor. Não vamos vender o hardware, mas apenas o conteúdo. Os formatos são tantos que pode ser que o pretenso usuário adquira um tipo que o seu equipamento não possa ler. A Amazon (que vende o Kindle) fez isso. Se você comprar um e-book na Livraria Barnes & Noble e tem um Kindle, não conseguirá fazer a leitura. Acho que foi um tiro no pé da Amazon obrigar o consumidor a se restringir ao seu formato. É o mesmo caso do já superado carregador de celular que só funciona no seu equipamento específico. Os formatos são tão vários que dependerá de como cada editora vai digitalizar seus livros. 

Não obstante “tal barafunda” – como diz – Pedro Herz acha que muitos profissionais dependentes de leituras rápidas e portáteis, como advogados envolvidos com audiências distantes e volumosos processos, vão acabar optando por e-books ou e-readers. E cita um exemplo mais próximo de sua atividade como livreiro:
– Um editor de uma grande editora que recebe 50 livros novos por semana de todo mundo para decidir o que deve publicar, ter tudo isso digitalizado e disponível num voo de 12 horas para a Europa é de uma utilidade fantástica.

Muniz Sodré contra
a sacralização do livro

Historicamente egressa de um incêndio na Lisboa parcialmente destruída pelo terremoto de 1755 e trasladada há 200 anos pela família real para o Rio de Janeiro, em 29 de outubro, a Biblioteca Nacional nem de longe demonstra que poderá repetir a tragédia das cinzas de Alexandria. É uma das dez mais importantes do gênero no mundo que tem a Biblioteca do Congresso Americano na cabeça. Há 9,5 milhões de itens, entre livros, mapas e obras de arte, quase tudo disponível ao público na Biblioteca Nacional freqüentada por 2,5 milhões de usuários/mês. 

E para mostrar que está imune a incêndios inclusive os virtuais ateados pela Apple, Amazon e Sony – poderosas produtoras de diferentes equipamentos eletrônicos de leitura – a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro apronta-se para aniversariar “oferecendo-se até de fachada renovada, mas não mutilada ou cafonizada” – informam funcionários de uma equipe presidida pelo escritor e sociólogo Muniz Sodré (de Araújo Cabral), professor de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Sobre o futuro das bibliotecas, acha Muniz Sodré que se há ameaça da internet pairando sobre os livros, esta ameaça seria bem maior para as livrarias:
– Porque – garante ele – as bibliotecas são eternamente necessárias por sua centralidade simbólica

É também de Muniz Sodré a ampla definição da mídia que inclui prioritariamente o livro:
– A mídia é uma nova administração do mundo – diz. 

Portanto, livros, jornais e revistas – impressos ou virtuais – são capítulos de algo que se desenha a partir da modernidade do Ocidente.
–Uma modernidade – continua – que é a intervenção do todo (por exemplo, do Estado) no homem. Primeiro o Estado intervém juridicamente, prendendo, monopolizando a violência. E depois começa a intervir biologicamente na vida das pessoas. De que maneira? Nos campos de concentração, com experiências na biologia do indivíduo, experimentando o corpo do outro. Agora nós temos a genética, intervindo, clonando, alterando o rumo tradicional das coisas. As pessoas não estão precisando mais, sequer, do esperma para fecundar um óvulo. E essa é a tendência do Ocidente. Já matou Deus. Está matando as figuras de fundação. Nessa ordem, a mídia também é um mundo sem terra. É um mundo feito de sinais, de palavras, de discursos. Para mim nós temos aqui uma ruptura civilizatória importante. 

É essa ruptura que eu quero pensar e estudar. Portanto, eu me considero, eu me coloco aqui como um aprendiz de filosofia. Não a filosofia abstrata. Mas eu quero entender essa ruptura, as mudanças sociais, e colocar isso publicamente. A comunicação, para mim, do ponto de vista cognitivo, é uma filosofia pública aplicada. O jornalista não está distante disso. Ele deve ser um publicista. E não ser mais um profissional formado como o antigo jornalista, quando as escolas, para ensinar o ofício, compravam todo aquele equipamento e ensinavam o estudante a fazer lide, a matéria…. Isso também é útil. Mas não define o jornalismo. Ou ele é uma intervenção na cena pública contemporânea, na reconstituição dos fatos, ou então não é nada. Ou vai ficar submergido pela internet. Então a comunicação para mim é um pretexto para pensar a atualidade e a mutação cultural da realidade (entrevista a Desirée Rabelo para a Revista PCLA – Pensamento Comunicacional Latino Americano).

Impressa em 1642 e um dos poucos exemplares sobreviventes da gráfica de tipos móveis de João Gutenberg, a Bíblia de Mogúncia é a maior preciosidade e o próprio símbolo de imortalidade da Biblioteca Nacional como “armazenadora de fatos reconstituídos”. Não obstante, seu diretor – que é autor de “uns cem livros e outras publicações” – não aceita sacralizar a ideia do livro. E explica esse paganismo:
– Bibliotecas são lugares materiais de memória e sentido organizados e não simplesmente de paixão pela lombada.

Em suma, são conjuntos de salas, estantes e nichos com dimensões mágicas e infinitas – “a biblioteca infinita” imaginada e hoje concretizada graças inclusive a recursos digitais que harmonizam química, clima e a inescapável Internet. Valorizando e especializando cada vez mais os bibliotecários. Não fossem as conquistas tecnológicas, as bibliotecas estariam antecipadamente ossificadas, mumificadas e convertidas em museus de poeira e traça. 

Simbolicamente perfeitos como os hexágonos imaginados por Jorge Luis Borges possivelmente quando, na década de 1950, dirigiu a Biblioteca Nacional de Buenos Aires, os espaços bibliotecários infinitos destinam-se porém não somente ao texto e à imaterialidade que dele deriva. Mas também à imagem e ao som com cores, pautas, notas musicais e gravações virtuais ou sólidas. Sendo o próprio livro e seu conteúdo imagens em si e sons que nunca silenciam, nunca se apagam, eternizando enfim os sentidos e a memória dos tempos.

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Pinheiro Junior é jornalista e membro efetivo do Conselho Deliberativo da ABI.