Entrevista – Bárbara Heliodora


28/08/2007


José Reinaldo Marques
06/09/2007
 

Uma vida dedicada ao teatro

Considerada a principal crítica teatral da imprensa brasileira, Bárbara Heliodora, aos 84 anos de idade e 50 de profissão, foi uma das responsáveis pela organização do ensino da matéria no Brasil, quando dirigiu o Serviço Nacional de Teatro (SNT), no início dos anos 60.

Temida por muitos, ela diz que a crítica é a fase final do processo criativo e que quem acha que ela é muito exigente é porque não lê a crítica publicada fora do Brasil. E avisa: “Só externo mais indignação quando sinto que houve desleixo, auto-indulgência, coisa que o público não merece.”

Primeira carioca a receber o título de doutoramento — pela USP, com uma tese sobre a obra de Shakespeare —, Barbara afirma que no Brasil não existe política cultural e que a medida do governo que unificou o teatro com o esporte, para fins de subvenção, é equivocada. Diz também que o Rio de Janeiro, empobrecido, precisa reformar seus teatros e que o meio teatral, no momento, carece de uma safra de bons diretores.

ABI OnlineComo se deu sua aproximação com o teatro?
Barbara Heliodora — Todo mundo quando criança gosta de brincar de interpretar. Eu, ao invés de querer ser atriz, me interessava pelo processo teatral. Até hoje acho que o grande milagre, a coisa mais inacreditável, é você transformar uma página impressa num espetáculo vivo. Este é o grande fenômeno teatral. No entanto, não me lembro de ter ido a teatro quando pequena. Minha lembrança mais antiga de uma peça foi quando eu tinha 15 anos. Em 1938, conheci o trabalho da Dulcina (de Moares) e vejo ainda hoje, claramente, sua imagem no palco. Minha memória me tem servido muito bem para preservar muitas coisas que eu vi e que, de repente, passam na minha frente, ao vivo e em cores.

ABI OnlineQual foi a sua grande descoberta?
Barbara — À medida que eu fui conhecendo mais o teatro, percebi que ele é um instrumento maravilhoso para se aproximar das pessoas e aprender sobre elas, porque se trata de uma arte que depende exclusivamente de ações humanas. Através da imaginação, o teatro leva a gente a conhecer mundos, hábitos, temperamentos e atos que de outra maneira não conheceríamos. É isso que me fascina nessa arte.

ABI OnlineE o seu encontro com Shakespeare?

           Barbara Heliodora com Diogo Vilela

Barbara — O primeiro livro dele, eu ganhei da minha mãe, também aos 15 anos, porque já sabia alguma coisa de inglês e lia pelas beiradas (risos). Depois, como sempre me interessei por teatro e literatura inglesa, fui me apaixonando pelo autor. Quando entrei para a faculdade de Filosofia, ganhei uma bolsa de graduação e fui estudar nos Estados Unidos. Meu ideal era ir para a Inglaterra, mas havia no caminho um pequeno detalhe chamado Segunda Guerra Mundial. E tive uma professora maravilhosa. Estudei não só a obra Shakespeare como a história do teatro europeu antigo e moderno, e várias outras cadeiras ligadas ao espetáculo teatral. Como fiquei em Connecnicut, a duas horas de trem de Nova York, fui muito ao teatro nos dois anos em que morei lá e vi muitas coisas boas.

ABI OnlineA senhora é considerada uma das maiores autoridades em Shakespeare e a melhor tradutora nacional do autor. A revelação de sua obra aumentou seu interesse pela crítica teatral?
Barbara — São duas coisas diferentes. A crítica veio da minha curiosidade em desvendar os processos que fazem o teatro funcionar. Aconteceu na época em que eu comecei a freqüentar o Tablado, no Rio, onde fui aprender o processo de ensaio vendo a atuação da ótima diretora Maria Clara Machado. A estréia na crítica aconteceu no final de 1958, quando ocupei a vaga na Tribuna da Imprensa. Fiquei pouco tempo lá, porque mudou o chefe de Redação e o novo queria que eu escrevesse uma coluna de fofocas teatrais. Recusei e, no início de 59, me transferi para o Jornal do Brasil, onde fiquei seis anos.

ABI OnlineE no JB, como foi?
Barbara — O jornalista Geraldo Queirós ia sair do Suplemento dominical do jornal e me perguntou se eu não queria ocupar seu lugar. Aceitei o convite e comecei a escrever minhas críticas, até que surgiu um fato desagradável. O Mário Nunes, que também escrevia críticas para o noticiário diário do jornal, reclamou com a Condessa Pereira Carneiro (então proprietária do JB). Eu não sabia que o Queirós só escrevia sobre peças em cartaz fora do País. Eu disse à Condessa que ia parar, mas o Reynaldo Jardim, que editava o Caderno B, publicou uma nota, dizendo que, enquanto eu não voltasse, não haveria coluna de teatro no jornal. Acabou com o Mário Nunes concordando que eu fizesse a crítica do Suplemento Dominical, de onde saí para assumir a direção do Serviço Nacional de Teatro (SNT).

ABI OnlineO cargo lhe permitiu fazer alguma coisa pelo teatro brasileiro?
Barbara — Havia o caso das subvenções, que eram decididas por uma comissão de 17 pessoas de vários segmentos culturais, como teatro, circo etc. Era um processo de cotas pulverizado, em que cada um defendia a sua área. Minha primeira medida foi acabar com esse conselho, criar um novo, previsto para funcionar com cinco membros, e nomear Carlos Drummond de Andrade, Décio de Almeida Prado, Adonias Filho, Gustavo Dória e Agostinho Olavo. Passamos a examinar as subvenções com muito mais cuidado, a estimular o que era mais interessante, e estabelecemos que a verba seria repassada em dois semestres, com prazos estipulados para as solicitações, de acordo com a data de estréia das peças. A medida deu mais equilíbrio à questão. Antes a distribuição das cotas era feita no início do ano; quem estreava no segundo semestre não recebia nada.

ABI OnlineHouve outras mudanças?
Barbara — Fizemos também a reforma do Conservatório Brasileiro de Teatro, que estava erroneamente subordinado ao SNT, contrariando o que determina a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, da mesma forma que a Escola Nacional de Biblioteconomia era ligada à Biblioteca Nacional. Esses órgãos foram unidos na Federação das Escolas Federais Isoladas da Guanabara (Fefieg). Quando a Guanabara virou Rio de Janeiro, nasceu a Fefierj, depois UniRio.

ABI OnlineQual foi impacto das reformas?
Barbara — A distribuição de recursos, que hoje está com a Funarte, ficou mais organizada e mais transparente. Também, de um conselho com membros como Drummond e Décio Prado, ninguém podia duvidar da lisura no julgamento das cotas de subvenção. O teatro tornou-se um produto mais respeitável, com estrutura mais reconhecível. Atualmente, tenho algumas restrições a fazer ao seu ensino e até me arrependo de tê-lo levado para a universidade. Ele devia ter ficado como Conservatório, porque o Conselho Federal de Educação não vê que as artes são diferentes das ciências exatas.

ABI OnlineComo? 
Barbara — Antigamente era possível aproveitar atores e diretores experimentados para dar aula. Hoje, é obrigatório ter titulação. Então, quem está ensinando são professores novos, que nunca pisaram num palco, não têm a experiência viva que permite ser bom mestre em disciplinas como Direção e Interpretação. Isso está prejudicando muito o ensino teatral.

ABI OnlineTemos alguma universidade com essa preocupação?
Barbara — A vantagem da USP é ter agregada a ela a Escola de Arte Dramática, em nível de segundo grau. As pessoas passam por lá e só depois vão fazer a Escola de Comunicações e Artes (ECA). 

ABI OnlineComo foi receber o primeiro doutoramento do Rio, com a tese “A expressão dramática do homem político em Shakespeare”, defendida na USP?
Barbara — Foi importante para eu poder continuar na carreira acadêmica, iniciada com as aulas de História do Teatro no antigo Conservatório. A tese ganhou esse título complicado porque, se eu só a chamasse “O homem político em Shakespeare”, me poriam diante de uma banca formada por cientistas políticos. Foquei o trabalho nas peças históricas, para mostrar a preocupação constante do autor com o bom governante, aquele preocupado com o bem-estar da comunidade, não o que quer o Estado para si. Shakespeare, porém, não faz sermão, não dá aula: todas as suas convicções se manifestam de maneira dramática.

ABI OnlineQuais foram as melhores montagens de Shakespeare a que a senhora assistiu no Brasil?
Barbara — Tem uma de “Hamlet” inesquecível, de 1948, com Sérgio Cardoso. Era extremamente romântica, seguindo uma linha muito comum na Alemanha, um pouco inspirada em Goethe. O espetáculo foi um sucesso, as pessoas urravam de entusiasmo, tinha gente que ia todos os dias. Mais recentemente, foi maravilhoso ver “Romeu e Julieta” com o Grupo do Galpão. Apesar dos cortes e alterações, é extremamente fiel ao espírito da peça.

ABI OnlineO Brasil já teve alguma proposta de dramaturgia popular como a de Shakespeare?
Barbara — Os dois últimos períodos do teatro realmente popular, que serviram a toda a sociedade, foram o elizabetano, na Inglaterra, e o século de ouro, na Espanha. No Brasil, o “Auto da compadecida” — por não haver brasileiro que não entenda essa peça — é o que mais representa o teatro popular, que, no entanto, acaba sendo feito para a classe média. Aqui, a transformação que considero mais importante é que, de 1950 para cá, começamos a ter um teatro brasileiro.

ABI OnlineComo o teatro nacional se impôs ao estrangeiro?
Barbara — Em princípios da década de 60, existia a lei do dois por um, ou seja, para cada dois textos estrangeiros tinha que se produzir um nacional — e todo mundo dava cambalhota para escapar dessa legislação. Hoje, é só abrir o jornal e verificar que cerca de 80% do que está em cartaz é ncional. O Brasil finalmente parou de brincar de fazer teatro, que para mim é o melhor documentário da História do mundo desde a Grécia. Essa nova apresentação de textos brasileiros reflete que o País está mais interessado na própria brasilidade e se conhecendo melhor. 

ABI OnlineJá temos uma tradição teatral?
Barbara — Com Nelson Rodrigues, o País começou a ter um teatro seu. Tivemos o Silveira Sampaio, o Teatro de Arena. E temos o Millôr Fernandes e o próprio Suassuna.

ABI OnlineAo mesmo tempo em que recebe elogios, a senhora é a crítica teatral mais temida pela maioria dos atores. Foi sempre assim?
Barbara — A crítica é a fase final do processo criativo. Todo mundo que faz alguma coisa quer que alguém diga como é que ficou. A crítica jornalística tem um dever duplo: informar quem fez até que ponto ele foi bem-sucedido e informar o público sobre o que ele vai assistir. Quem que sou muito exigente não lê o que se publica fora do Brasil: é arrasador. Aqui, somos uns anjos, mas não podemos dizer que o ruim é bom, não seria desonesto. Eu brigava muito com Paschoal Carlos Magno por causa disso. Ele tinha outra visão e me dizia: “É preciso estimular esses moços.” Eu retrucava, afirmando que não se pode estimular o que está errado, porque é levar a pessoa a fazer o pior. O crítico tem contribuir para que se encontre o caminho certo.

ABI Online O que deve ser entendido sobre suas críticas? 
Barbara — Eu não critico o ator, falo do trabalho que pode não estar bom hoje e amanhã vai estar maravilhoso. As únicas críticas que eu faço com mais indignação ocorrem quando eu sinto que houve desleixo, auto-indulgência, coisa que o público não merece. Muitas vezes um erro é extremamente digno, porque se tentou fazer alguma coisa, houve a intenção de acertar. O bom às vezes é mais difícil de analisar do que o ruim. A função do crítico é encarar a realidade e ser o mais isento possível, mas dizer que somos assim totalmente não é verdade.

ABI OnlinePor quê?
Barbara — Cada um traz para a crítica a sua formação, e isso pesa. Temos referenciais. As pessoas que dizem que lêem somente as minhas críticas descobriram, de algum modo, que eu geralmente concordo com elas — por isso acham minha crítica boa. O crítico tem que assumir seus critérios, não vejo outra maneira de desempenhar a função. Se eu não puder agir segundo o que parece ser claro, tenho que parar.

ABI OnlineUlysses Cruz, Marília Pêra e Gerald Thomas, que chegou a desejar sua morte, ainda são seus desafetos?
Barbara — Não tenho contato com o Ulysses Cruz e com a Marília Pêra hoje me dou muito bem. Tenho o maior respeito pelo talento dela. Quando falei mal, era porque o espetáculo era ruim, estava errado. Já o Gerald Thomas, depois, veio me pedir perdão, foi muito engraçado.

ABI OnlineEm 93, na entrega do Prêmio Esso de Teatro, a senhora (que estava ausente por problemas de saúde) foi vaiada pelos artistas. Qual foi sua reação ao souber do episódio?
Barbara — Acho melancólico, pois foi uma reação meio infantil. Só isso. Hoje em dia já não acontece.

ABI OnlineO que prevalece em seu baú de críticas até o momento: as positivas ou as negativas?
Barbara — Provavelmente, as negativas. Em compensação, eu só me lembro das positivas. (risos)

ABI OnlineA qualidade do nosso teatro vai mal?
Barbara — Infelizmente, há muito autor que usa a chanchada com palavrão, a apelação barata etc., porque sabe que existe um público despreparado que vai achar aquilo muito engraçado. E esse é um teatro que deseduca, que, ao invés de tirar o melhor do público, explora o pior. Acho isso terrível. Mas há gente tentando fazer o melhor.

ABI OnlineAs novelas brasileiras sofreram alguma influência do teatro e vice-versa?
Bárbara — Na minha opinião, os melhores atores de novelas saíram do teatro, e há na TV muitas pessoas que passam por uma, duas produções teatrais e desaparecem, porque não têm talento. Houve uma diminuição de público nos teatros por causa das novelas, que oferecem entretenimento gratuito para quem não pode sair de casa. Mas a TV podia oferecer uma programação de melhor qualidade. Essa história de que o teatro é caro é um mito. Sua não tradição aqui é que faz com que as pessoas à vezes prefiram pagar muito mais para ver algo que já conhecem. Isso acontece por causa dos maus espetáculos: se uma pessoa vai ao teatro e assiste a um desastre, fica sem voltar uns dois ou três anos.

ABI OnlineO que a senhora pensa sobre as políticas públicas de incentivo à cultura no Brasil?
Barbara — E elas existem? Agora então que misturaram com o esporte, o que o teatro vai ganhar? Nada, apesar de dar um retorno em publicidade que o esporte não dá. O público do futebol é enorme num determinado momento — e nesse ponto o teatro sai prejudicado, porque a lei devia prever que o setor é diferente e necessita de um estímulo especial. Não há política cultural no Brasil.

ABI OnlineQue modelo seria interessante adotar para desenvolver a produção teatral?
Barbara — No País, o teatro ficou muito habituado a ser subvencionado. Não temos o hábito de ver o espetáculo como qualquer outro investimento, como ocorre nos Estados Unidos. Para eles, subvenção não existe, cada investidor participa como uma sociedade anônima comprando uma cota do espetáculo. Se a peça faz sucesso, ele ganha uma fortuna; caso contrário, deduz sua perda do imposto de renda. 

ABI OnlineDo ponto de vista físico, o Brasil tem bons teatros?
Barbara — No Rio, não. O João Caetano, por exemplo, não tem boa acústica; o Carlos Gomes precisa de poltronas mais confortáveis… Agora estão anunciando a construção da Cidade da Música, para a qual já existem o Municipal e a Sala Cecília Meireles. Mas ninguém constrói um bom espaço para o teatro, com bons recursos técnicos.

ABI OnlineA senhora já disse que está havendo aqui “uma certa deficiência de direção”. O que acha do teatro experimental lançado por José Celso Martinez Corrêa, nos anos 60?
Barbara — Sou a favor, mas ninguém pode achar que o teatro experimental é para o grande público. Só vai realmente ter curiosidade pela experimentação teatral quem já viu muito teatro. Muitos jovens, por exemplo, ainda não entendem bem o que é teatro experimental. Então, é preciso explicar antes de fazer a experimentação.

ABI OnlineQual é a sua esperança em relação ao teatro brasileiro?
Bárbara — Que ele fique mais nacional, mas não tacanhamente brasileiro. A curiosidade pelo Brasil é fundamental e o teatro tem que cada vez mais conhecer o País e expressá-lo de forma interessante.

ABI OnlineComo se forma um bom crítico teatral?
Barbara — Vendo e estudando muito teatro. Por isso fico muito preocupada, porque no momento, no Rio, o panorama está muito pobre. A falta de dinheiro está limitando muito o gênero de espetáculo que se apresenta e, para poder encontrar seus referenciais, o crítico precisa ver produções diversificadas. Para ser um bom profissional é preciso também, acima de tudo, ter muita paixão pelo teatro, para poder assistir ao que é ruim e ainda ter esperança.