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06/07/2007


UNE: passado de conquistas, futuro de novos desafios

A União Nacional dos Estudantes chega ao seu 50º Congresso às vésperas de completar 70 anos de uma existência fértil em contribuições para a democratização do Brasil. Não são tantas as instituições que podem se orgulhar disto como a UNE, que nasceu, em agosto de 1937, para imprimir caráter orgânico, nacional e permanente à até então episódica, regional e transitória participação política da juventude estudantil; para dinamizar e arregimentar num poder jovem — o movimento estudantil — o idealismo, o desprendimento, a rebeldia e a vontade de melhorar o país e o mundo que já se haviam manifestado, desde a fase colonial, no espontâneo engajamento de tanto moços nas campanhas e lutas contra a invasão de corsários franceses no Rio de Janeiro, pela independência nacional (inclusive na Conjuração Mineira), pela abolição da escravatura, pela república e contra a chacina promovida pelo Exército no arraial de Canudos.

Com a fundação e consolidação da UNE, os estudantes passaram a ter presença ativa e constante na política nacional, sobretudo a partir da primeira grande passeata — em 4 de julho de 1942, no Rio de janeiro —, pela declaração de guerra às potências do Eixo nazifascista. Desde então, o movimento estudantil vem desempenhando papel relevante em muitos dos principais momentos e movimentos da nossa história: contra o Estado Novo; pela indústria siderúrgica nacional; pelo monopólio estatal do petróleo e pela criação da Petrobrás; em prol da gratuidade do ensino, da escola pública e da reforma universitária; contra a alienação do patrimônio nacional; pela cultura popular (via Centro Popular de Cultura — CPC); na Cadeia da Legalidade, contra os ministros militares que tentaram impedir, em 1961, a posse do vice-presidente João Goulart; pela participação estudantil nos órgãos colegiados da administração das universidades; contra a espoliação do país pelo capital estrangeiro; na campanha nacional de alfabetização de adultos pelo método Paulo Freire, no governo Goulart; por uma política externa independente; pelo princípio da autodeterminação dos povos; contra a invasão de Cuba; pelas reformas de base de Jango, inclusive a agrária; contra o golpe militar de 1964 e a ditadura que implantou no país.

Na vanguarda da resistência

Foi por causa dessa imensa bagagem de lutas e realizações que a histórica sede da UNE à Praia do Flamengo, 132, no Rio — tomada ao Clube Germânia logo após a primeira grande passeata —, teve as suas dependências saqueadas e incendiadas no 1º de abril do triunfo golpista. Despejada, com seus dirigentes tentando escapar à repressão, e colocada, com todas as uniões estaduais de estudantes, na ilegalidade, a UNE passaria a enfrentar então o mais difícil dos desafios de toda a sua trajetória: manter o movimento estudantil vivo e atuante sob um regime ditatorial que se fechava dia a dia.

A luta pelo restabelecimento das liberdades democráticas e contra a intervenção norte-americana na universidade foi a resposta estudantil à Lei Suplicy, ao Decreto Aragão, à Lei de Segurança Nacional, à destruição da Universidade de Brasília, aos Acordos MEC-Usaid (que buscavam, inclusive, a privatização do ensino superior) e, mais adiante, ao draconiano Decreto-Lei nº 477, que tornaria ainda mais severas, em fevereiro de 1969, as restrições às manifestações políticas de alunos, funcionários e professores universitários.

O acerto das palavras de ordem da UNE, conduzida por uma aliança em que predominavam comunistas e os católicos de esquerda da Ação Popular (AP), a repercussão nacional das passeatas de protesto, a intensificação da repressão policial-militar e o desmantelamento dos outros movimentos sociais e políticos de oposição, que incluiu a intervenção nos sindicatos e a extinção dos partidos em outubro de 1965, contribuíram para que o movimento estudantil — menos vulnerável, por sua origem de classe, do que os operários e camponeses às arremetidas iniciais do regime — fosse, aos poucos, sendo guindado à liderança da resistência à ditadura.

Essa posição vanguardista se prenunciou em setembro de 1966, batizado Setembro Heróico pela intensidade das manifestações, com o seu dia 22 eleito pela UNE Dia Nacional de Luta contra a Ditadura; e se evidenciaria a partir do assassinato no Rio, em 28 de março de 1968, do estudante secundarista paraense Edson Luís de Lima Souto, de 18 anos. O cortejo que o levou ao túmulo no dia seguinte, com cerca de 60 mil pessoas percorrendo vários bairros cariocas aos gritos de “Abaixo a ditadura fascista” e “Povo organizado derruba a ditadura”, inaugurou uma série de demonstrações de protesto em todo o país, culminadas em 26 de junho, também no Rio, com a Passeata dos Cem Mil, a maior de todas desde o golpe.

A prisão dos quatro principais líderes estudantis da época, com mais de 900 participantes do 30º Congresso da UNE, em Ibiúna, em 14 de outubro, e, pior do que isso, a edição do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro, com o endurecimento ainda maior da ditadura, tornaram impossível a continuidade do movimento estudantil tal como existira, mesmo a duras penas, até então. A UNE bem que tentou, sob as lideranças de Jean-Marc van der Weid e de Honestino Guimarães — preso e desaparecido desde 1973 —, mas os estudantes só conseguiriam voltar às ruas em 1977, com o início da abertura do regime. Aos inconformados com isso restou a adesão à luta armada. Ou ao movimento hippie.

A reconstrução e os novos desafios

Reconstruída a partir do seu 31º Congresso, em Salvador, em outubro de 1979, rompidas as barreiras da proscrição e da clandestinidade, a UNE reconquistou a legalidade e o direito de participar, abertamente, das lutas pela democratização, pelo crescimento econômico e pela ética na política, com notória presença nas mobilizações nacionais pelas “Diretas já” (1984), pelo “Fora Collor” (1992), contra a corrupção, pelo controle das mensalidades escolares, contra o “provão”, na campanha “Eu não agüento FHC”, contra a emenda da reeleição e a política de privatização do governo FHC (especialmente, da Vale do Rio Doce e das estatais estratégicas para o desenvolvimento nacional, como o sistema Telebrás), contra a quebra do monopólio estatal do petróleo, pelo “Fora FMI”, contra o neoliberalismo e a mercantilização do ensino, contra a violência e pelo desarmamento.

Além disso, a UNE retomou em 1999, com a 1ª Bienal de Cultura, em Salvador, e com a posterior consolidação do Cuca (Circuito Universitário de Cultura e Arte), a preocupação com a produção artística, científica e cultural que a acompanha desde as origens e da qual fora afastada com a destruição, pela ditadura, dos seus centros populares de cultura. A 5ª Bienal de Arte, Ciência e Cultura, o maior festival universitário da América Latina, reuniu em janeiro deste ano, no Rio, mais de oito mil jovens.

Dessa última bienal, após o lançamento das comemorações dos 70 anos com a presença de vários ex-presidentes e até de um dos fundadores da entidade — o médico geriatra Irun Sant’Anna, de 91 anos —, saiu a passeata que levou a UNE de volta para casa, com a retomada do terreno da antiga sede, na Praia do Flamengo.

E aqui chegamos ao futuro que espera os sucessores de Gustavo Petta, o único presidente reeleito da UNE, aos desafios que terão de vencer para manter o prestígio construído ao longo de sete décadas de ativa participação na edificação da nossa democracia. A primeira tarefa, aliás, será de edificação no sentido mais material e arquitetônico da palavra: a concretização do projeto que um dos maiores brasileiros de todos os tempos, o nosso querido Oscar Niemeyer, já elaborou para a nova sede.

Será difícil, sem dúvida, mas, certamente, menos extenuante, custosa e demorada do que a plena materialização de um sonho que a UNE acalenta desde a sua fundação: o de ver constituído, afinal, um país verdadeiramente democrático, em que seja distribuída com mais justiça a renda produzida por todos os brasileiros. Para efetivar esse objetivo maior, a UNE não esta mais sozinha, como em 1968, mas ao lado do MST, da CUT, da Cnbb, da ABI e das demais entidades com que compõe, neste Brasil ainda em vias de democratização, a Coordenação dos Movimentos Sociais. Havemos de chegar lá.