ABI fotojornalismo e arte


25/01/2023


Por Maria Luiza Busse, diretora de Cultura da ABI

Até dia 29, domingo, o Museu Histórico Nacional exibe a exposição fotográfica Ara’puka Peró – Uma cartografia decolonial do Rio de Janeiro nos 200 anos da Independência. Os trabalhos são do fotógrafo Caio Clímaco com curadoria dos professores Mauro Trindade e José Urutau Guajajara, especialista em línguas do tronco Tupi. Ara’puka Peró” quer dizer ‘armadilha de branco’ em tupi-guarani, e era o modo como os indígenas chamavam os colonizadores portugueses.

Caio Clímaco tem 34 anos, é graduado em Ciências do Estado pela UFMG, Universidade Federal de Minas Gerais, e estudou fotografia e cinema em Cuba e Venezuela, além da formação no Brasil. Nasceu em São Paulo, “por circunstâncias profissionais de meu pai”, mas faz questão de firmar que é de família mineira de Ponte Nova, Minas Gerais. Hoje, Caio mora no Rio de Janeiro.

Entrevista 

Qual é sua história com a fotografia e há quanto tempo trabalha nesse campo?

Desde criança me recordo que nas viagens que fazia em família, gostava de ter essa interação a partir da fotografia e registrar alguns momentos. Na adolescência minha mãe passou a me considerar o fotógrafo oficial da casa pois dizia que as minhas fotos ficavam boas. Na juventude a fotografia se tornou um instrumento de luta através do trabalho que realizamos na coordenação da primeira equipe de comunicação do movimento social Levante Popular da Juventude, em Belo Horizonte, no ano de 2015. No entanto foi em Caracas que me despertei completamente para este ofício através de minha amiga fotógrafa e designer Cacica Honta que me incentivou a levar a sério a fotografia a partir de 2018.

De onde vem seu interesse pelos povos originários?

Vem pelo fato de que essa é uma questão que também me atravessa. Minha bisavó era indígena e esses traços são muito presentes nas pessoas da minha família. No entanto a violência do colonialismo nos afastou de nossa etnia e consequentemente de nossa cultura, é uma ferida em aberto pra nós. No presente momento estou indo ao encontro da retomada desses aspectos que considero fundamentais para compreensão do que somos e para onde vamos. Acompanhar a luta dos indígenas yukpa da Venezuela, dos yanomamis e macuxis de Roraima, dos guajajaras, puris e goytacás do Rio de Janeiro e de tantas outras etnias nas marchas, manifestações e demais atividades que participo tem me ajudado nesse processo. A residência artística que realizei na Galeria de Arte indígena contemporânea do Jaider Esbell também me abriu muito para esses caminhos de retomada identitária.

Como nasceu a ideia da exposição?

Minha experiência em Caracas me aproximou de maneira muito profunda das questões históricas, tanto a partir da vivência no coletivo cultural Minka (em língua quechua “minka” significa trabalho coletivo em favor da comunidade) que foi responsável por liderar processos de retomada dos símbolos nacionais venezuelanos através da derrubada da estátua de Cólon e do erguimento do monumento a Guaicaipuro (líder indígena) em 2006, quanto a partir dos estudos dos processos de independência liderados pelo caraquenho Simón Bolívar e que resultaram na libertação de Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia do domínio colonial espanhol. É também na Venezuela onde me aproximo do pensamento decolonial – movimento de resistência teórico, epistêmico, cultural, prático e político – através das aulas de Iraida Vargas e Mário Sanoja na Escuela Venezuelana de Planificación e também através de uma conferência dada por Enrique Dussel, um dos precursores desse movimento. A partir daí busco contrastar o processo de Independência do Brasil com o dos países da chamada “América espanhola” e percebi que não sabia quase nada da história brasileira que fosse fora do padrão das narrativas oficiais criadas e sustentadas pela elite. Com a aproximação do bicentenário da independência do Brasil, percebi que era o momento ideal para tratar do assunto e entendi que o Rio de Janeiro era estratégico para contar essa história pois foi a cidade sede da Coroa e a capital do país por 197 anos, possuindo um grande legado colonial. A ideia da exposição surge como uma forma de contribuir para uma interpretação decolonial da história do Brasil no ano do bicentenário de sua independência. Atualmente a exposição “Ara’puka Peró – Uma cartografia decolonial do Rio de Janeiro nos 200 anos da Independência” se encontra no Museu Histórico Nacional até o día 29 de Janeiro, quando também haverá visita guiada.

Com a cultura sucateada, foi difícil realizar o projeto?

Foi muito difícil, foi necessário realizar uma ampla mobilização de amigos e parceiros, além de investir dinheiro do próprio bolso para que todo o trabalho, produção das fotografias e exposições, pudesse acontecer, uma vez que não tive suporte de nenhuma lei de incentivo.

Quais são seus outros trabalhos?

Na área da fotografia o outro trabalho que realizei foi através da exposição “Caminhos de Resistência” que trata sobre a realidade de distintos imigrantes da região caribenha para Boa Vista, capital de Roraima e importante porta de entrada no continente. No cinema contribui na produção do filme “The Breadmaker” realizado em parceria com o jornal britânico The Guardian. O filme conta a história de Natália, mãe, professora de dança e imigrante colombiana que ocupou uma padaria localizada no coração de Caracas junto com seu companheiro e um grupo de jovens ativistas. Também produzi alguns curtas, com destaque para “A damurida da Vó Bernaldina” que é um documentário que mostra a Vó Bernaldina – importante liderança da etnia macuxi que possuía conhecimentos milenares – preparando a damurida, o prato mais tradicional de seu povo. Bernaldina faleceu em 2020 vítima de COVID-19. “Fruto da Modernidade” é outro curta, sendo produzido durante a pandemia e que busca realizar uma reflexão coletiva sobre a COVID-19 a partir de contribuições de imagens gravadas por distintos realizadores audiovisuais de países como Alemanha, Chile, Colômbia, Espanha, Índia, México, Holanda, Peru, Brasil e República Dominicana.

Como está vendo a situação dos Yanomamis e a responsabilidade do governo que levou a esse estado de genocídio?

Diria que o genocidio do povo Yanomami foi uma política de estado implementada pelo governo Bolsonaro, uma vez que se sabia da gravidade da situação da população yanomami e ainda assim nada foi feito. É bom lembrar também que historicamente o estado brasileiro tem praticado o que se chama terrorismo de estado contra os povos originários de modo geral. É chocante o que está ocorrendo com os yanomamis, mas isso não é uma novidade. Precisamos urgentemente mudar esse cenário demarcando todas as terras indígenas, retirando a indústria ilegal de garimpo das terras indígenas e travando a luta pela construção de um estado plurinacional no Brasil que seja capaz de aceitar, de respeitar e de fornecer as condições para que a diversidade étnica e cultural sobreviva e se fortaleça.

Quais são suas expectativas com a volta do Ministério da Cultura neste governo progressista para o qual a cultura importa?

Sabemos que reverter os estragos do governo anterior será uma tarefa muito árdua, por isso nada melhor do que contar com uma mulher preta e guerreira feito a Margareth Menezes à frente do Ministério da Cultura. O governo do presidente Lula tem dado sinais concretos de que a cultura precisa e irá cumprir um papel importante tanto no setor econômico quanto na batalha ideológica. Nós, fazedores e fazedoras de cultura, teremos uma oportunidade importante para mostrarmos a que viemos e devemos nos somar nessa construção que é necessariamente coletiva. Minhas expectativas são as melhores.

O que você diria à ministra Margareth Menezes?

Diria que o projeto colonial implementado no Brasil tem suas raízes muito bem consolidadas e mais recentemente foram canalizadas pelo bolsonarismo. Para melhorar esse quadro grave e perigoso é necessário que se invista em projetos, ações e iniciativas de caráter decolonial e com protagonismo social, pois só assim poderemos combater o fascismo pela raiz e fazer frente ao poderio hegemonista das empresas transnacionais da indústria cultural, convertendo a batalha cultural na batalha pela nossa soberania enquanto nação. A batalha cultural precisa ser entendida como algo a ser travado no cotidiano, pois para se construir uma sociedade onde o imperativo seja a justiça social, necessitamos que o desenvolvimento das disposições subjetivas humanas seja coerente e apropriado às transformações sociais que se busca e o Ministério da Cultura tem um papel fundamental nisso. Não podemos enxergar a cultura somente a partir da lógica mercadológica e economicista, pois a cultura para além de dar muito lucro aos seus investidores, cumpre um papel político fundamental uma vez que ela é o nosso principal instrumento de transformação e resistência.

Quer acrescentar alguma coisa?                                                                                                                         

Sim, agradeço a ABI pelo espaço pois muita coisa precisa ser dita, afinal houve um rompimento do pacto constitucional com o golpe de 2016 que retirou a presidente Dilma Rousseff do poder, sendo essa crise aprofundada a partir da prisão do presidente Lula e da consequente eleição fraudulenta daquele que não gostamos de falar nem o nome. Após estes fatos, a constituição de 1988 foi dilacerada pelos governos Temer e Bolsonaro. Diante desse cenário, é necessário unir forças para repactuar o país novamente através de uma nova carta constitucional que fortaleça a ideia de que a sociedade precisa ser o principal protagonista das decisões políticas, afinal temos 513 deputados federais e 81 senadores ganhando altos salários, com acesso a uma grande parte do orçamento público, mas o que vemos é que a maioria deles está comprometida com interesses que não representam a diversidade social brasileira. Em outras palavras, existe uma crise no sistema político devido ao sequestro de grande parte do poder político pelas elites e ninguém fala sobre isso. Em uma democracia que seja de fato cidadã, a sociedade deve ter o controle do orçamento público e o poder de decidir e propor o que precisa ser feito em termos de políticas públicas, no entanto, tudo isso é um processo que precisa ser construído através do fortalecimento e da tomada de consciência de nossa própria cidadania. A democracia brasileira precisa necessariamente se modernizar para continuar existindo, então vamos à luta pois o setor cultural é peça fundamental para isso.