O dilema das tragédias


01/12/2022


Por Carmem Silvia Moretzsohn Rocha, da Comissão de Igualdade Étnico-Racial da ABI

 Existe um comportamento recorrente tanto do público como das mídias diante de tragédias e comportamentos bizarros. A curiosidade aliada às fortes emoções são exploradas pelas mídias e repercutidas pela sociedade à exaustão. Os mais diversos ataques violentos fatais estão, cada vez mais, recorrentes e reproduzidos com riquezas de detalhes. Costumamos direcionar toda a nossa indignação e raiva para o autor específico do momento.

Este artigo tem como objetivo trazer algumas reflexões tendo como principal referência o recente ataque às escolas do Espírito Santo. Em 2011, quando houve o primeiro ataque dessa natureza no bairro de Realengo, no Rio de Janeiro, fiquei profundamente triste. Além de todo horror ali presente, sabia que tínhamos importado o que há de pior nos Estados Unidos e era previsível, infelizmente, que esse não seria o último.

Depois da Segunda Guerra, o Brasil foi o país com o maior número de nazistas. Embora seja crime, essa chaga social foi pouco coibida. Há duas décadas, quando a antropóloga Adriana Dias começou a estudar o nazismo no Brasil, era questionada por muitos que desacreditavam seu objeto de estudo. Seu trabalho é amplamente reconhecido nos dias de hoje, porém, há mais de mil células nazistas no Brasil. Não é difícil perceber que nossa sociedade está profundamente doente. Penso que está na hora de cada um de nós refletirmos sobre nossa responsabilidade individual e coletiva. Sim, somos responsáveis!

Além desses terríveis ataques a escolas, e falo como professora, é preciso olhar para quem somos em âmbito coletivo. Apesar de o conceito desenvolvido por Sérgio Buarque de Holanda do “homem cordial” ter sido atribuído aos brasileiros, urge questionar por que estamos entre os primeiros países do mundo, quando se trata de feminicídios, encarceramento em massa, em especial de negros, genocídios dos povos originários e da população negra, assassinatos da população LGBTQIAP+ dentre outras violências?

Não tenho as respostas, porém, defendo que está na hora de perguntar, debater, refletir e buscar soluções que envolvam indivíduos, instituições e movimentos sociais. Quando tragédias ocorrem, esperamos a ampla divulgação nas mídias. No entanto, esquecemos que os autores desses horrores têm essa mesma expectativa. Eles querem, igualmente, impactar de modo profundo a sociedade e se regozijam com essa ideia que é, inclusive, grande motivação para seus crimes. Além disso, tornam-se heróis e inspiram seguidores.

Na minha opinião, precisamos falar menos e agir mais. Precisamos de maior eficiência em várias frentes. É nosso dever combater todo tipo de preconceito, discriminação e violência. Acredito que está na hora de diminuirmos os ataques em massa aos nazistas, racistas, homofóbicos etc porque não está surtindo efeito. Não quero dizer que não devam ser punidos por seus crimes, mas, é necessário ir além disso. O que temos que fazer é investir todas as nossas forças em combater o neonazifascismo, o racismo, a misoginia, a LGBTQUIAP+fobia, o capacitismo. E isso não é fácil porque estão em nossas entranhas, em nossas piadas, olhares, comentários, grupos, instituições. Em outras palavras, estão em todos os lugares, arraigados em nossa cultura.

Quando surgiu a ideia do “politicamente correto”, a resistência foi grande por parte de muitos humoristas, jornalistas, professores, enfim, de todos os cantos da sociedade. Os opressores se sentiram oprimidos e censurados em sua “liberdade”. Precisamos compreender mais profundamente nossos processos de socialização. Ninguém nasce nazista, racista e homofóbico!

Mesmo que a frente democrática tenha ganhado as eleições, não podemos esquecer a nossa história genocida, escravocrata, misógina e homofóbica. Temos, ainda, o Padre Júlio Lancelotti para nos lembrar, de maneira cotidiana, da nossa aporofobia. É, igualmente, crucial lembrar do golpe misógino contra a Presidenta, como ela gostava de ser chamada, Dilma Rousseff. Esse golpe, por sua vez, abriu as portas para a ascensão da extrema direita no Brasil.

Estou, sim, profundamente triste com as vítimas da tragédia do Espírito Santo. No entanto, em meio à distopia que vivemos, não creio que seja exagero dizer que o Brasil hoje é a própria tragédia. Não pretendo negar que temos, sim, indivíduos, grupos, instituições e movimentos sociais que fazem um belo trabalho de resistência. Mesmo assim, precisamos nos esforçar mais e em direção a uma mudança mais profunda.

(*) Esse texto é de responsabilidade exclusiva da sua autora não refletindo, necessariamente, a opinião da direção da ABI