Vítimas da tortura: Dia especial
para reflexão


26/06/2020


#direitoshumanosbrasil

26 de junho, Dia Internacional de Apoio às Vítimas da Tortura, criado pela ONU,  a ABI se manifesta para rechaçar toda e qualquer ação de violência física e psicológica, e alerta  para a importância e necessidade cruciais de se combater a tortura permanentemente no Brasil e no mundo e punir seus autores. A questão foi debatida na quinta-feira, 25, pelo vice-presidente da ABI, Cid Benjamin, e pelo membro da Comissão de Liberdade de Expressão e Direitos Humanos, Rogério Marques. O encontro virtual teve a jornalista Vera Saavedra Durão como mediadora.  “A tortura é a maior desumanidade; vai muito além do espancamento, da dor física. Ela busca quebrar o torturado como ser humano”, destaca Benjamin,  vítima de tal crueldade.

O momento  é de vigília, diante de um presidente da República que demonstra desprezo pelos direitos humanos, faz apologia a práticas antidemocráticas, e insiste em desrespeitar a Constituição.

Em homenagem especial às vítimas da tortura no Brasil e no mundo, o site da ABI está publicando matéria sobre o debate, além de artigos de Benjamin, de Marques, de Vera Saavedra Durão e de Vera Vital Brasil.

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Debate

TORTURA VAI ALÉM DA DOR FÍSICA

“Não é à toa que a ONU considera a tortura crime imprescritível, inafiançável. A tortura é a maior desumanidade; vai muito além do espancamento, da dor física. Ela busca quebrar o torturado como ser humano, fazendo com que ele renegue sua personalidade, princípios e valores e, por conta da dor física,se torne um escravo do desejo do torturador”. A reflexão sofrida é do vice-presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Cid Benjamin, que, preso em 1970, foi libertado em troca do embaixador Giovanni Enrico Bucher, e passou quase dez anos no exílio.

Benjamin participou na quinta-feira, 25, de debate online sobre o Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura. A data comemorativa, 26 de junho, foi instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1997, sendo criada no mesmo dia em que foi assinada a Convenção contra a Tortura, em 1987, pelos Estados- membros da Organização. “Esta data marca a luta pela defesa da Humanidade. Não é uma bandeira de esquerda ou direita; é uma bandeira de todos”, diz o dirigente da ABI.

A live, moderada pela jornalista Vera Saveedra Durão, teve a participação também de Rogério Marques, conselheiro e membro da Comissão de Liberdade de Expressão e Direitos Humanos da ABI.Um das questões centrais do debate  foi como o Brasil, depois de anos de ditadura,  pôde eleger um presidente da República defensor da tortura , a tal ponto de,  na votação do impeachment de Dilma Rousseff , ter exaltado o coronel  Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos maiores torturadores do pais e  que comandou o DOI CODI num período mais sangrentos do regime militar.

Marques destacou que mesmo durante a ditadura militar, os generais ditadores nunca assumiram publicamente a defesa da tortura. Ao contrário, havia tortura, mas eles sempre negaram. “Pela primeira vez, o Brasil tem hoje um presidente que já assumiu, até em entrevista, a defesa da tortura.É muito grave, e funciona como um sinal verde para tal prática”, ressalta ele, observando que o Brasil é um país com terrível tradição de castigos físicos e tortura. “Vem desde o Brasil Colônia. Passou pelo genocídio dos indígenas, pela escravidão dos povos africanos, com práticas de marcação com ferro em brasa, açoite.

Quase 350 anos de escravidão pesam. O Brasil nunca conseguiu se desvincular disso. Antes mesmo da instauração do Estado Novo, a polícia já era violentíssima”.

Segundo o jornalista, essa terrível tradição ajuda a entender porque Jair Bolsonaro, ao defender abertamente tortura e torturadores, não é punido. Ainda em 1999, como deputado federal, defendeu a tortura publicamente e não foi cassado. Mais tarde, reincidiu na apologia, ao exaltar o coronel Ustra, eacabou eleito presidente da República.

Marques apontou também responsabilidades da mídia, que, ao pegar erros do PT, os direcionou a objetivos políticos. “Foi o massacre não só do PT, mas a demonização da classe política. Nesse ambiente, surge alguém que se impõe como quem vai colocar ordem na casa”.

“Será que a maldade a violência são marcas da elite brasileira?”, indagou Vera, que foi também uma das vítimas de tortura do regime militar, presa durante um ano e meio em uma solitária.

Numa perspectiva histórica, Benjaminobservou que “a tortura existe no mundo desde que o homem existe”. Seja nasantigas guerras, seja antes da chegada dos portugueses ao Brasil, com tortura entre diferentes tribos indígenas, e, depois, com a escravidão. A igreja católica ajudou a legitimar a escravidão, com a tese de que negro e índio não tinham alma. A maioria achava natural escravizar e torturar seres humanos.

“Então, quando Bolsonaro elogia torturadores e não é repudiado por toda a sociedade brasileira, mostra como a prática da tortura não faz parte da cultura de repúdio”, diz Benjamin , lembrando ainda o processo do  fim da escravidão no Brasil.“Terminou a escravidão, mas o sentido de exclusão social ficou muito presente, sem nenhum amparo aos escravizados. Além disso, o fim da escravidão foi por etapas, com a lei do ventre livre e do sexagenário. Para nossa vergonha, o Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão”.

O vice-presidente da ABI compara a exclusão social dos ex-escravizadoscom o que aconteceu no final do regime autoritário no Brasil. “O processo do fim da ditadura brasileira foi todo controlado pelos ditadores, com muito  cuidado, de forma lenta, gradual e segura para eles . Nunca se pensou seriamente – a nãoser vozes isoladas da esquerda e de movimentos democráticos  – na abertura dos arquivos da repressão.  Reputo mais importante a abertura  dos arquivos do que a própria punição dos torturadores”, afirmou.

Benjamin citou como exemplo aÁfrica do Sul, onde Nelson Mandela,então eleito presidente, após 27 anos de prisão e torturas, elaborou, junto com o arcebispo Tutu, um sistema de reconciliação do país e um projeto de anistia que incluía  assassinos e torturadores. Mas com a seguinte condição: que os assassinos a torturadores iriam a público, aos tribunais,confessar seus crimes.

“O que Mandela queria com isso? Criar anticorpos contra a repetição desse tipo de coisa. Considerava que era mais importante a criação desses anticorpos do que a prisão de assassinos e torturadores,  masdesde que as torturas e assassinatos   fossem desmascarados,  e abrisse a possibilidade de um país diferente. Com isso, Mandela evitou uma guerra civil”.

Já no caso doBrasil, e diferentemente de outros países da América Latina, o fim do regime foi  organizadopelos militares, num processo longo  e gradual , no  ritmo e na dimensão que eles quiseram. “Desde 1984, vinha sendo comandado pelo Geisel . Tanto que Sarney, que acabou presidente  da República, era presidente da Arena , partido  que apoiava a ditadura. A própria Lei da Anistia,com o conceito de “crimes conexos”, visouanistiar  torturador e assassino. Só o nosso Supremo aceitou esse argumento, dando, assim, anistia extensiva aos torturadores”, diz Benjamin, destacando que “a anistia no Brasil foi sem base jurídica, feita para ajambrar uma situação e não incomodar os militares que participaram  das torturas e assassinatos”.

“E por que governos do PT não abriram esses arquivos?”, indagou a moderadora.

Para Marques, a resposta está no difícil equilíbrio de forças entre governos do PT e um Congresso super conservador. “A questão acabou escancarada com “o episódio do golpe de  2016 contra Dilma. O crime da Dilma foi ter derrotado Aécio Neves nas eleições de 2014. Isso nunca foi engolido pelas classes dominantes”.

Benjamin tem opinião diferente. Em seu entender, a opção do PT foi não mexer com quem tinha poder. “Isso vale também em relação às Forças Armadas. Por exemplo, nunca se mudou o currículo nas escolas militares. Até hoje, passando pelos governos do PT, a história é ensinada como sendo a revolução de 64 que salvou o Brasil do comunismo, formando uma nova geração de oficiais com isso na cabeça. Bolsonaro, desde que foi vereador, era convidado a dar palestras de extrema direita na Academia Militar das Agulhas Negras”.

Diante da atual conjuntura política do país, e apesar de tantas vítimas da tortura no Brasil, entre elas presos comuns, houve consenso entre os debatedores de que a data de 26 de junho sequer será lembrada pelo governo.

A ABI rechaça todo e qualquer tipo de violência e presta homenagem a todas as vítimas de tortura, entre elas as pessoas mais vulneráveis das comunidades, submetidasà violência das milícias e da polícia.

Vera rendeu homenagem especial a sua companheira de luta Maria Auxiliadora, que, de tanta tortura que sofreu na cadeia, acabou suicidando-seanos mais tarde, no exílio na Alemanha.

Mesmo triste destino teve o dominicano Frei Tito, homenageado por Marques. “Ele nunca se libertou do fantasma do torturador. Suicidou-se no exílio, em Paris.

Por Lívia Ferrari, membro da Comissão Mulher & Diversidade

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Artigos

Cid Benjamin, Vice-presidente da ABI 

“O HOMEM É O ÚNICO ANIMAL QUE TORTURA SEU SEMELHANTE”

Extratos do livro “Gracias a la vida – Memórias de um militante”, (José Olympio Editora, 2013), de autoria de Cid Benjamin
“O homem é o único animal que tortura seu semelhante. Essa prática sempre esteve presente na história da Humanidade. Enquanto ela não for inteiramente erradicada, não se poderá pensar em sociedades civilizadas.
Em seu livro A burrice do demônio, o saudoso Hélio Pellegrino (1924-1988) traz reflexões sobre a tortura, o torturado, o torturador e a relação que se estabelece entre os dois.
“A tortura reivindica, em sua empreitada nefanda, uma rendição do sujeito. (…) Busca, à custa do sofrimento corporal insuportável, introduzir uma cunha que leve à cisão entre o corpo e a mente”, afirma.
É exatamente isso. No momento da tortura, tudo o que a vítima deseja é o fim do martírio. Sabe que pode conseguir isso, mas a que preço? O mais alto que poderia lhe ser cobrado: a abdicação de princípios.
Como diz Pellegrino, o aspecto mais desumano da tortura é fazer do corpo um inimigo de seu dono. Assim, ela não é apenas um ato de violência, por ter como objetivo causar sofrimento a outro ser humano. É algo pior: a tentativa de anular a consciência de uma pessoa, de fazer com que ela renegue seu sistema de valores, justamente o que distingue os seres humanos. Em outras palavras, é uma tentativa de fazer com que a pessoa negue a si mesma.
Pellegrino lembra que, enquanto para o torturado há uma alternativa para a afirmação do humano — a resistência — para o torturador não existe saída. A este último está reservado um único papel: o de tentar esmagar a humanidade alheia. Por isso, derrotado ou vitorioso, não se afirmará como ser humano.
Há mais de dois mil anos, Sócrates (469 a.C. – 399 a.C.) já tinha dito que, em determinadas situações, o difícil não é evitar a morte, mas evitar “proceder mal”. É assim na tortura.
(…)
Na tortura, a disparidade de forças é imensa. O preso, muitas vezes amarrado e, na maior parte do tempo, vendado ou com capuz, tem o corpo à mercê dos carrascos. (…) A dor, a sede, o cansaço, o sangue, a sujeira, o cheiro de fezes e de urina, tudo isso está presente. Os riscos de perda do controle são grandes. Mas a sensação de vitória quando se resiste é incomparável. Cada momento que passa e faz com que determinada informação deixe de ter valor é intensamente festejado no íntimo.
(…) A tortura no Brasil, historicamente, esteve relegada a delegacias policiais, onde um método usual de interrogatório era o espancamento de presos comuns. Passou a frequentar a realidade da classe média nas duas ditaduras que o país viveu no século 20: o Estado Novo (1937-1945) e, principalmente, o regime militar (1964-1985).
Nelas, presos políticos começaram a ser as vítimas. Já não eram mais o negro, o pobre, o favelado e o ladrão os pendurados no pau-de-arara e submetidos a choques elétricos e afogamentos. Passaram a ser o parente próximo, o vizinho, o amigo, enfim, pessoas respeitadas na sociedade.
Isso levou a que, no início do século 21, seja maior o repúdio à tortura do que há 50 anos. Ainda assim, a prática ainda subsiste, vitimando gente de origem pobre suspeita de ter praticado crimes comuns ou recolhida a presídios.
Note-se, porém, que nem todos os criminosos comuns estão sujeitos à tortura. Ela é aplicada apenas nos de baixa renda. Não se conhece um só caso em que criminoso de colarinho branco tenha sido torturado.
Também nesse aspecto a sociedade de classes se mostra tal como é.
(…) Na ditadura, a tortura foi política de Estado. Assim, há responsáveis maiores pelas torturas do que seus executores diretos. Ainda assim, é inaceitável considerar que estes últimos apenas cumpriam ordens. Aceitar a justificativa é retroceder a uma situação anterior à do julgamento de Nuremberg. Ademais, pela própria natureza da tortura, é fácil entender que militares ou policiais que a praticassem a contragosto não eram obrigados a fazê-lo.
Enquanto os torturadores não forem punidos, haverá quem torture e a prática subsistirá. Por isso, é importante que seus executores diretos e, ainda com mais razão, os mandantes sejam levados ao banco dos réus.
Digo isso sem sentimento de vingança em relação a meus torturadores. Penso, aliás, que uma frase de Sidarta Gautama, o Buda (560 a.C. – 480 a.C.), é de grande sabedoria: “Cultivar a raiva é como segurar um carvão quente com a intenção de jogá-lo numa outra pessoa; você é o único que fica queimado”.
Mas é fato que o futuro da tortura está ligado ao futuro dos torturadores.
Há quem considere melhor esquecer o que houve. Mas, não. A democracia só ganha se eles forem punidos.
É preciso que venha à luz tudo o que ocorreu. Que se saiba o que aconteceu com as centenas de desaparecidos, quem os matou e onde estão seus restos mortais. Que as responsabilidades se tornem públicas, deixando clara inclusive a cadeia de comando. Receber essas informações é direito inalienável das famílias dos presos políticos assassinados.
É, também, direito dos parentes darem uma sepultura digna a seus entes queridos remonta à antiguidade. A peça Antígona, de Sófocles (496 a.C. – 406 a.C), trata disso. O rei Creonte, de Tebas, determina que o cadáver de Polinice, seu opositor, fosse deixado ao relento para ser devorado por aves de rapina e cães, mas Antígona, irmã de Polinice, se revolta e acaba assassinada pelo monarca.
Temos exemplos edificantes aqui perto de nós, na Argentina, onde até generais têm sido condenados a longas penas ou à prisão perpétua.
A experiência da África do Sul é diferente, porém, também ilustrativa. Nelson Mandela – que foi barbaramente torturado e esteve preso durante 27 anos, parte dos quais em trabalhos forçados, quebrando pedras – tinha todas as razões para ser alguém ressentido. No entanto, uma vez na Presidência da República, depois da extinção do odioso regime do apartheid, aceitou anistiar torturadores e assassinos de presos políticos, mas com uma condição: eles deveriam confessar publicamente seus crimes. Qualquer ato omitido poderia dar margem a processo criminal e condenação.
A sociedade sul-africana sabia que havia torturas, mas não tinha ideia da dimensão da barbárie. Pela comoção causada, certamente tão cedo as atrocidades perpetradas pelo regime racista não se repetirão.”

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Rogério Marques, jornalista, membro da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e dos Direitos Humanos

GOVERNO INCENTIVA TORTURA AO EXALTAR TORTURADORES

O Dia Internacional de Apoio às Vítimas da Tortura, 26 de junho, ganha uma importância ainda maior no Brasil atual. A data foi criada pela ONU em 1997 para incentivar ações de amparo material e psicológico aos que  foram submetidos a essa prática odiosa que é a tortura. O 26 de junho tem também a finalidade de lembrar todos os países da importância de se combater a tortura permanentemente e punir seus autores.

No Brasil isso envolve uma enorme contradição. Neste país em que castigos físicos e tortura sempre foram adotados como método de punição e de interrogatórios, um político que sempre defendeu essas práticas, sem fazer segredo disso, foi eleito presidente da república em 2018.

Mais do que nunca é importante lembrar que Jair Messias Bolsonaro já fez essa defesa publicamente em programas de TV. Em 1999, quando era deputado federal, ao ser entrevistado no programa Câmera Aberta, da TV Bandeirantes, afirmou que a ditadura militar matou pouca gente. Com expressão de ódio, como um desequilibrado, defendeu o extermínio de “pelo menos 30 mil pessoas, ainda que morram inocentes”.

A tortura é vetada no Artigo 5* da nossa Constituição. O fato de Bolsonaro não ter sido cassado por fazer apologia de um crime, e mais tarde ter sido eleito presidente, deve servir de alerta. É um sinal inequívoco de que boa parte da sociedade brasileira aceita a prática da tortura ou, no mínimo, vê a tortura como “um mal necessário”.

Anos depois, no dia 17 de abril de 2016, Jair Bolsonaro voltou a causar espanto quando homenageou publicamente um torturador da ditadura militar, ao declarar seu voto pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff:

“Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff” – disse Bolsonaro na Câmara dos Deputados. Mais uma vez o então deputado do PSC-RJ deixou estarrecidos defensores dos direitos humanos e entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil, e mais uma vez não teve o mandato cassado.

Brilhante Ustra, já falecido, foi o homem que entre 1970 e 1974 comandou o sinistro Doi-Codi do II Exército de São Paulo,  centro de torturas em que a ex-presidente Dilma Rousseff foi supliciada, assim como centenas de outras presas e presos políticos da ditadura. O mesmo Doi-Codi em que foram assassinados, na tortura, o estudante Alexandre Vannucchi Leme, o operário Manoel Fiel Filho e o jornalista Vladimir Herzog. Ustra foi o primeiro militar considerado torturador pela Justiça brasileira, em São Paulo.

Marcas eternas

A tortura deixa marcas para o resto da vida. São inúmeros os casos de pessoas que ficaram desestruturadas, perseguidas pelas sombras de seus algozes. Foi o que aconteceu com frade dominicano Tito de Alencar Lima, preso em 1969, em São Paulo, supliciado por vários dias pela equipe do delegado Sérgio Fleury, outro notório torturador, também já falecido.

Mais tarde, exilado na França, Frei Tito não conseguiu se livrar das imagens de seus carrascos e do delegado Fleury. Passou por tratamento psiquiátrico, mas acabou suicidando-se em 1974, aos 28 anos.

A prática da tortura está enraizada no Brasil desde os primeiros anos da colonização. Passou pelo genocídio indígena, atravessou quase 350 anos da escravidão dos povos africanos. Até meados do século passado, castigos físicos como ajoelhar em caroços de milho e o uso da palmatória eram adotados por muitos colégios. A tortura presente hoje nos presídios brasileiros é uma tradição que vem do Brasil Colônia. Em alguns fortes militares tombados pelo patrimônio encontramos celas sem janelas, com o teto tão baixo que o prisioneiro não podia ficar em pé.

Em 1910, 22 anos depois do fim da escravidão, os marinheiros comandados por João Cândido Felisberto, o Almirante Negro, se uniram na Revolta da Chibata contra os castigos físicos na Marinha, entre eles o açoite. Os marinheiros eram quase todos negros.

As Forças Armadas brasileiras têm a história manchada pela prática da tortura principalmente durante a ditadura militar instaurada com o golpe de 1964.  Nunca pediram desculpas por esse crime. Ao longo de toda a república, castigos físicos e torturas continuaram sendo uma prática nas  polícias civil, militar, nas Forças Armadas.

Em 1935, durante o governo de Getúlio Vargas, a revolta conhecida como Intentona Comunista foi reprimida com a tortura de prisioneiros. Um deles, o militante comunista alemão Arthur Ewert, conhecido como Harry Berger, foi levado à loucura pelas torturas que sofreu. Nunca mais se recuperou. Sua mulher, Elisa Saborowski, presa com ele, foi estuprada várias vezes – prática adotada por torturadores quando suas vítimas são mulheres.

Na ditadura do Estado Novo, a tortura voltou a assombrar presos comuns e políticos, com a polícia comandada por Filinto Müller.

Em um país como o Brasil, com essa tradição nefasta, a apologia à tortura feita por Jair Bolsonaro tem conseqüências desastrosas nas polícias, nas Forças Armadas, segmentos em que ele goza de prestígio. O presidente dá o sinal verde para essas instituições já contaminadas, em grande parte, com a ideia de que direitos humanos não passam de uma invenção de defensores de bandidos.

Peritos exonerados

Desde que assumiu a presidência da república Jair Bolsonaro tem mostrado coerência com tudo aquilo que sempre defendeu. Em julho de 2019 publicou o decreto 9.831, que exonerou 11 peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT).

O Mecanismo existe desde 2013. Foi criado a partir de um compromisso assumido em 2007 entre o Estado brasileiro e a ONU para investigar violações de direitos humanos em instituições como penitenciárias, abrigos de idosos, hospitais psiquiátricos. O decreto assinado por Bolsonaro, estabelece que novos peritos não remunerados serão nomeados. O ato do governo foi denunciado por entidades de defesa dos direitos humanos como o desmantelamento dos mecanismos de combate à tortura no Brasil.

Segundo a Agência Pública, de jornalismo investigativo, desde o início do governo Bolsonaro os peritos do Mecanismo de Combate à Tortura vinham denunciando que Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, trabalhava para impedir as apurações. Foi o que teria acontecido quando eles tentaram investigar denúncias de torturas e maus tratos em penitenciárias do Ceará, em fevereiro de 2019. Em abril, os peritos finalmente conseguiram visitar unidades do sistema prisional cearense. Fizeram um relatório com denúncias graves, entre elas presos com mãos e dedos quebrados, dizendo terem sido vítimas de golpes de cassetetes.

Em agosto de 2019, a Justiça Federal do Rio de Janeiro suspendeu a exoneração dos 11 peritos do Mecanismo de Combate à Tortura. Em sua sentença, o juiz Osair Victor de Oliveira Júnior, da 6 Vara Federal Cível, decidiu: “Não é difícil concluir a ilegalidade patente do decreto em tela, uma vez que a destituição dos peritos só poderia se dar nos casos de condenação penal transitada em julgado, ou de processo de disciplina.” A Advocacia Geral da União está tentando reverter a decisão da Justiça Federal.

Violência policial

Na primeira semana de junho, em mais um movimento coerente com sua política, o governo decidiu excluir do relatório anual dos direitos humanos os indicadores da violência policial de 2019, primeiro ano da gestão de Bolsonaro.

As denúncias de diversos tipos de violências são feitas através do canal telefônico Disque 100, em ligações de todo o Brasil. Os números da violência policial vinham crescendo desde 2015. O Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos, de Damares Alves, informou em nota que os dados da violência policial de 2019 foram excluídos porque havia contradições nos registros. O governo ficou de fazer “um estudo aprofundado” e divulgar os dados dentro de 60 dias.

A Associação Brasileira de Imprensa afirmou em nota que “assim como busca esconder os números sobre as vítimas do coronavírus, o governo Jair Bolsonaro está tentando maquiar outros indicadores importantes para a sociedade”.

Regina Duarte e a tortura

Os ministros e secretários do governo Bolsonaro são fiéis ao presidente no que há de pior. No dia sete de maio deste ano a então secretária especial de Cultura Regina Duarte deu uma estarrecedora entrevista à TV CNN. Ao falar da ditadura militar, relativizou a prática da tortura. Disse que “sempre houve tortura” e que não se devia “ficar cobrando coisas que aconteceram nos anos 60, 70, 80”.

Dizendo-se chocada com a entrevista, a jornalista Lygia Jobim está processando Regina Duarte por crime de apologia à tortura. Cobra da atriz, que já deixou o cargo, uma indenização de R$ 70 mil. Lygia é filha do diplomata José Jobim, seqüestrado, torturado e assassinado em março de 1979, no Rio, durante a ditadura militar. “Fiquei horrorizada com a forma como ela naturalizou a tortura” – disse a jornalista.

O crime aconteceu poucos dias depois de Jobim comentar que pretendia denunciar, em um livro de memórias, o superfaturamento nas obras da Usina Hidrelétrica de Itaipu. O corpo de Jobim foi encontrado com marcas de tortura, pendurado pelo pescoço em uma árvore baixa, na Barra da Tijuca. Os pés tocavam no chão e as pernas estavam flexionadas, como na simulação do suicídio do jornalista Vladimir Herzog, quatro anos antes, em São Paulo. Em 2018 o Estado reconheceu que o suicídio havia sido forjado, e que José Jobim foi seqüestrado e morto.

Em entrevista ao Globo, Lygia Jobim disse que “não há liberdade de expressão que abarque a apologia de crimes. É um acinte a todos que foram afetados pela violência”.

Neste momento difícil que o Brasil enfrenta, com um governo que despreza a arte, a cultura, os direitos humanos, que vê a mídia e os jornalistas como adversários, o Dia Internacional de Apoio às Vítimas da Tortura, 26 de junho, ganha ainda maior importância. Essas vítimas estão entre nós. Não são apenas os que sobreviveram às sevícias da ditadura militar, ou os que enfrentam esse flagelo em presídios, quartéis, delegacias de polícia. São também os milhões de moradores de favelas, de comunidades pobres, vítimas de um outro tipo de tortura. Trabalhadores que passam noites em pânico, ouvindo tiroteios, vendo morrer na porta de suas casas jovens que ainda ontem eram crianças. Um terror que deixa seqüelas, como qualquer forma de tortura. Que o dia 26 de junho nos leve a refletir e buscar, como cidadãos, uma saída para o poço de obscurantismo em que o Brasil foi jogado.

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Vera Saavedra Durão, jornalista, membro da Comissão da Verdade/RJ 

COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE E O DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE HISTÓRICA DO BRASIL

  O que estamos lembrando hoje não deve ser esquecido. A tortura é uma prática milenar da humanidade e viola todos os princípios de direitos humanos. Em que consiste a tortura?

Na definição do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), instalada em maio de 2012, pelo Governo Dilma, “a tortura, cuja prática foi incorporada como estratégia do Estado de Segurança Nacional implantado no país à época do golpe de 1964, consiste não somente em impor, intencionalmente, dor física ou moral a uma pessoa, mas também em utilizar métodos que objetivam anular sua personalidade ou diminuir-lhe a capacidade física ou mental.

Segundo a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes, a configuração da tortura como grave violação de direito, ou seja, como crime de lesa-humanidade exige, ainda, que haja ação ou omissão intencional de um ‘agente do Estado” ou um “terceiro que atue com o consentimento estatal”, ou seja, por ele instigado ou tolerado”.

Ainda segundo a CNV, “além de a tortura não ser um método racional para se obter a verdade, ela não se justifica eticamente como meio para evitar um mal maior. Frente ao Direito Constitucional e Criminal vigente no país, hoje e em 1964, bem como ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, NENHUMA situação justifica a prática da tortura. Não se pode torturar para salvar uma vida, cem vidas ou mil vidas. A proibição da tortura é absoluta, não admite exceções nem flexibilizações”.

A CNV buscou durante dois anos e meio cumprir a tarefa que lhe foi conferida pela Lei de número 12.528, de 18 de novembro de 2011, de examinar e esclarecer o quadro de graves violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988, “a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”.

O trabalho da CNV, apoiado por consultores, assessores e colaboradores voluntários, coordenado pelos conselheiros José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti Filho, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro, Pedro B. de Abreu Dallari e Rosa Maria Cardoso da Cunha, foi efetivado pela busca de grande volume de documentos, tomada de depoimentos de envolvidos neste processo como familiares e depoimentos até mesmo de torturadores que se dispuseram a falar, realização de audiências públicas em todo território nacional.

Foram criadas comissões da Verdade estaduais e municipais que trabalharam intensamente na busca da comprovoção e denúncia dos fatos relativos às graves violações de direitos humanos, com especial atenção ao regime ditatorial que vigiu no país entre 1964 e 1985.

O relatório entregue pela CNV ao governo Dilma, e tornado público, é de importância vital para a verdadeira história do Brasil. Ele engloba denuncias de torturas a presos políticos, massacres a camponeses e povos indígenas e num terceiro volume relaciona os casos de mortos e desaparecidos. Ao todo, foram levantados os perfis de 434 mortos e desaparecidos no Brasil e no exterior de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988. Foi relatada a história de 191 mortos e 243 desaparecidos, desses, 33 foram identificados ao longo das últimas décadas.

Para elaboração do volume referente a mortos e desaparecidos a CNV buscou consultar grande parte dos acervos disponíveis, como o Arquivo Nacional, hoje ameaçado de ser destruído, ouvir ex-presos, sobreviventes de tortura, familiares e até agentes da repressão, mas, como destaca a CNV, apesar dos esforços feitos durante os trabalhos “não foi possível desvendar a maior parte dos casos de mortes e desaparecimentos ocorridos durante 1964 a 1988”.

As lacunas dessa história de execuções, tortura e ocultação de cadáveres de opositores políticos à ditadura militar poderiam ser melhor elucidadas caso as Forças Armadas tivessem disponibilizado à CNV os acervos dos Centros de Informação do Exercito (CIE), da Aeronáutica (CISA) e da Marinha (Cenimar), produzidos durante da Ditadura. E se fossem prestadas todas as informações requeridas pela CNV, como destacam os relatórios. Mas “as autoridades militares optaram por manter o padrão de resposta negativa ou insuficiente vigente há cinquenta anos, impedindo assim que sejam  conhecidas as circunstâncias e autores de graves violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar”, destaca o relatório.

Entre os trabalhos mais relevantes da CNV podemos citar a denúncia da Casa da Morte de Petropólis, onde foram mortos militantes de organizações revolucionárias. O depoimento de Inês Etienne, única sobrevivente deste lugar de horrores, contribuiu para se estabelecer a verdade sobre o local.

Os relatórios da CNV, iniciativa de maior importância do Governo Dilma, são hoje a maior contribuição dos governos democráticos que vieram depois dos governos militares para que as gerações, que não viveram a ditadura, saibam do que aconteceu de fato naqueles tempos tenebrosos. É preciso resistir para que não retornem!

DITADURA NUNCA MAIS!

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Vera Vital Brasil, psicóloga*

TORTURA, PANDEMIA E SUBJETIVIDADE

A prática da tortura atravessa a existência da sociedade brasileira nas suas modulações históricas. Utilizada em larga escala durante o período da colonização europeia na América Latina, compondo a brutal violência que envolveu o extermínio de populações locais, saques de riquezas, se enraizou no universo de práticas e das produções subjetivas, marcando profundamente as relações sociais. É considerada uma chaga que insiste em permanecer, ainda que normativas internacionais e nacionais apoiadas pelo Estado brasileiro a condenem como um crime de lesa humanidade.

No Brasil a tortura sempre foi uma prática permanente nos espaços prisionais, nas ruas. Intensificou-se, transformando-se em arma de guerra nos períodos das ditaduras, incidindo na formação – até hoje vigente – das polícias. Mantém-se sob o olhar condescendente do conjunto da população como se os setores particularmente atingidos fossem dela merecedores. Trata-se de uma prática ignóbil, banalizada em nosso país, utilizada de forma trivial por agentes do Estado. Se durante as ditaduras o principal alvo foram os opositores políticos ao regime militar, a prática da tortura não poupou os setores empobrecidos, em especial a população negra, pessoas LGBTI, mulheres, indígenas. Hoje recrudesce no cenário da pandemia, sob a batuta do pandemônio institucional em que o presidente eleito, rompendo princípios éticos e humanitários, deixa claro sua concordância com a tortura ao homenagear um dos mais notórios torturadores do regime ditatorial de 1964-1985.

A tortura e seus efeitos na subjetividade

Viver a situação de tortura é experimentar a degradação humana. É confrontar-se com o sofrimento  extremado, com a morte.

A tortura destrói a dignidade daquele que a sofre e do que a pratica. No mesmo ato produz-se de forma imanente a ruptura da dignidade de ambos: da vítima e do algoz. Promove o efeito perverso de desconstrução da dignidade humana. Sob o poder absoluto do agente estatal, que deveria proteger a integridade física e psíquica da pessoa humana, se dá o inverso: a indução ao sofrimento com incidência no corpo físico e psíquico, ofensas morais, ameaças, e a possibilidade de morte iminente. No ato da tortura a intenção do torturador,  além de buscar obter informações, é a de dominar e aniquilar aquele que está em seu poder, destruir os laços que unem o sujeito aos grupos de pertencimento. De quebrar o vigor do corpo resistente, de colocar em questão a relação com os outros e com sua própria existência. No exercício do poder soberano sobre a vida e a morte, institui o medo e o terror diante de uma situação limite.

A tortura produz traumas irreparáveis. Marcas que perduram no restante das vidas produzindo efeitos dolorosos.

Seus efeitos que não se limitam aos indivíduos que a experimentam diretamente, cujo dano é inexorável. A tortura se irradia em várias intensidades e em dimensões da vida social, afetando diversos laços: entre familiares, amigos, nas relações sociais.

Ainda que a condenação da tortura date do século XVII, por questionamentos jurídicos instrumentais da época, que normativas para seu impedimento e sansão tenham sido elaboradas – principalmente logo após a Segunda Guerra Mundial sob o impacto do que aconteceu nos campos de concentração -, os instrumentos para sua contenção e erradicação são pouco aplicados. A impunidade do crime de tortura tem prevalecido.

No Brasil a impunidade dos crimes da ditadura foi mantida com a decisão do Supremo Tribunal Federal, que em 2010 reafirma a interpretação da Lei da Anistia de 1979 que auto-anistia torturadores. Uma decisão que favorece os que atualmente a praticam, sentindo-se igualmente imunes a possíveis sanções.

Vale lembrar que no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (2012-2014) foram apresentadas 29 Recomendações ao Estado brasileiro e a primeira delas refere-se ao reconhecimento pelas Forças Armadas das violações e crimes cometidos no período. A de número 6 refere-se às mudanças nos curriculum das policias e dos militares, visando uma formação ajustada ao respeito aos Direitos Humanos, enquanto que a de número.15 prevê a atenção médica e psicossocial aos afetados pelas violações. Entretanto, o Estado brasileiro não as levou em conta, destinando-as ao lugar escuro das gavetas.

Há, porém, que se considerar a criação de algumas medidas de reparação no campo da Justiça de Transição que, apoiadas na Constituição de 1988, foram sendo implantadas para contrapor os efeitos da longa ditadura de 21 anos, que penetraram profundamente nas relações sociais. Efeitos que se entranharam nas instituições sociais reiterando as formas autoritárias e a discriminação social já existentes.Mas estas medidas foram tardias e insuficientes. Dentre elas, a criação de duas Comissões encarregadas de Reparação: a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos em 1995, a Comissão de Anistia em 2002. Esta última, para além da compensação econômica aos perseguidos políticos desenvolveu atividades para fortalecer a Memória e a Verdade, e um projeto de apoio psicológico aos sobreviventes da tortura, exílio, perseguidos e seus familiares, que visava a implantação de uma política pública de atenção aos afetados pela violência de Estado. Com apenas cinco anos de existência este projeto de atenção psicossocial atendeu pessoas em vários estados brasileiros e destacou a função do testemunho como um importante operador na clínica psicológica e na construção da memória coletiva pela quebra do silêncio e do esquecimento que marcaram por décadas as experiências dos sobreviventes e familiares.

As Comissões de reparação estão sendo destruídas em sua finalidade desde a destituição da presidente Dilma em 2016. Desmontadas pouco a pouco, seus conselhos estão ocupados por pessoas sem afinidade com a pauta de Direitos Humanos. O objetivo é a sua extinção, atendendo ao negacionismo histórico característico dos discursos das autoridades. Em postura patética alguns de seus membros procuram afirmar a decadente “Teoria dos dois Demônios”, invertendo o foco das violações ao acusar peticionários à anistia política de terroristas.Tal postura de representantes do poder público mobiliza efeitos de retraumatização entre os que aguardam há anos o reconhecimento estatal do dano provocado pela tortura.

O Estado brasileiro mantém sua dívida de reparação com a sociedade. Não prestou devidamente contas sobre os crimes de lesa humanidade, não fez a tarefa da construção de memória à altura da extensão das violações, não reviu o racismo estrutural que acompanha as relações sociais de forma brutal desde a colonização, não tratou da formação dos agentes públicos na área de segurança nem das Forças Armada. Hoje o país paga uma conta altíssima, tendo eleito um inimigo dos Direitos Humanos, que intensifica a necropolitica, destrói a Amazônia, desmonta políticas públicas e direitos assegurados pela Constituição.

O que se engendra como formas e modos de subjetivação nesse contexto?

O que esperar no Dia Internacional de Apoio às Vítimas da Tortura neste cenário de pandemia e pandemônio institucional? Que relações poderíamos tecer entre o que ocorre neste momento inédito da experiência humana e os que a sofreram esta prática nefasta?

Antes de tudo podemos dizer que o vírus é um analisador institucional. Invisível, expõe a desigualdade social, a violência, o modo como as autoridades destratam a grave pandemia, sua postura anticientífica, sua incompetência. Ilumina a necessidade de um Sistema Único de Saúde como um instrumento fundamental.

Sendo o isolamento social no momento a única medida a ser amplamente tomada para evitar a difusão do covid-19, experimentamos a evidência, bastante esquecida, de que estamos intrinsecamente ligados: que cuidar de si significa cuidar de todos. E que a grande maioria da população não tem tido condições para manter-se em isolamento e adotar as medidas básicas de proteção, expostos à perversa e profunda desigualdade econômica e social.

Sob a quarentena, enormes desafios se impõem. O temor à doença insidiosa desencadeia insegurança, medo, angústia, depressão, raiva. O fantasma da morte produz pesadelos, suspeição, acentua sintomas. A ameaça de perdas povoa o universo imaginário.  Conflitos familiares expõem mulheres e crianças em posição de maior vulnerabilidade. A violência contra a mulher registra índices elevados. Por sua vez, o vírus nos coloca ainda em contato com uma realidade inexorável, a do limite do controle sobre a vida e a morte. Produz a quebra das ilusões, que porventura existam, sobre este controle e sobre uma possível volta à “normalidade”, vivida até então há poucos meses.

Na ausência de orientação do governo no planejamento de ações para o enfrentamento da pandemia, sem o efetivo apoio econômico para dar sustentação às condições básicas de subsistência aos setores vulneráveis e de pequenas empresas, a população além de conviver com o terror da pandemia experimenta sobressaltos diários com os desacertos governamentais e institucionais. Desorientada pelas manifestações disparatadas e inconsequentes do presidente se vê lançada nas ruas com a abertura do isolamento colocando-se em risco. Registros de assassinatos e tortura a céu aberto de jovens por policias-militares indicam seu crescimento, estimulado pela impunidade de agentes públicos de segurança no apoio de discursos oficiais.

Hoje o Brasil tornou-se o epicentro da pandemia na América Latina.  Os números de casos e de mortes oficiais que se multiplicam exponencialmente dia a dia revelam parte da tragédia anunciada. Sem equipamentos para atender de forma satisfatória os doentes e proteger os profissionais de saúde, sem testes suficientes para aplicar na população, os números apresentados pela mídia são parciais, dada a enorme subnotificação. Pessoas morrem em casa sem atendimento e notificação da causa mortis. Em vários estados têm sido abertas valas comuns, evidenciando o número de mortos exponencialmente maior do que os óbitos registrados por Covid-19.

Os cemitérios mais uma vez expõem a tragédia de um Estado que oculta crimes.  Desde os primeiros meses da incidência da Covid-19 os cemitérios indicavam um aumento acentuado de óbitos, sendo alguns atestados com registro de “insuficiência respiratória”, outros com “causa indeterminada”. Os cemitérios evidenciam mais uma vez uma realidade ignóbil de práticas de invisibilização de cadáveres tal como ocorrido na ditadura. Sem identificação e os devidos registros, procedimento que se desdobrou no período da democracia, no atual contexto pandêmico se repete, mascarando não só os dados sobre o alastramento da pandemia, como também da necropolitica em curso[1]. Refiro-me aos familiares de desaparecidos da ditadura que em sua incessante busca encontraram pistas sobre seus corpos, lançados em valas comuns de cemitério de São Paulo. O sofrimento das famílias de desaparecidos do passado e as da atualidade que não puderam fazer o luto de seus entes se atualiza com aquelas que hoje aos milhares não podem despedir-se dos seus.

A experiência existencial de desamparo na cena de tortura, que marca irremediavelmente os que a experimentaram, se conecta com o desamparo proveniente dos trágicos acontecimentos do contexto atual da pandemia e do pandemônio. As condições de desamparo, desalento e ameaça de morte que compõem o sofrimento dos que vivem hoje não estão distantes dos que estiveram cara a cara com o terror de Estado na ditadura.

Diante do crescimento do fascismo no Brasil é fundamental considerar a memória da resistência dos que se opuseram aos regimes autoritários, da força do testemunho dos que romperam o silêncio e se lançaram na construção da memória política que exige mudanças. Se a construção de memória sobre os horrores do período da ditadura se fez tardia e incompleta, se a violência brutal do racismo institucional está por ser feita, a persistência dos que lutam contra a tortura, pela reparação e pela justiça se potencializa nos dias atuais no cenário desta pandemia / pandemônio através do grito desesperado que se tornou rebelde em dimensões continentais: “pare, não consigo respirar!”

*Vera Vital Brasil é Psicóloga Clínico-institucional, membro da Equipe Clínico Política RJ, coordenadora do Projeto Clínicas do Testemunho RJ (2013-2015), membro do Coletivo RJ Memória, Verdade, Justiça, Reparação, consultora externa de Territórios Clínicos de la Memoria, Argentina.

[1] Vide Boletim CAAF – https://www.unifesp.br/reitoria/caaf/boletim-caaf-unifesp/158-boletim-caaf-unifesp

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Leia matéria do El País, sobre a tragédia no povo ianomami na pandemia

https://brasil.elpais.com/brasil/2020-06-24/maes-yanomami-imploram-pelos-corpos-de-seus-bebes.html