Um presidente que não vai para o céu


17/06/2022


Ana Helena Tavares (*)

 

Em setembro de 2012, eu me vi em meio a um protesto de posseiros pela posse de terras indígenas no norte do Mato Grosso, região da chamada Amazônia Legal. Cara a cara com um líder dos manifestantes, com seu chapéu estilo “rei do gado”, ouvi dele que o bispo que eu estava ali para entrevistar – Dom Pedro Casaldáliga – tinha “muitos amigos no Planalto”. E ele completou: “Esse bispo não vai para o céu”. Como eu era a única jornalista ali e eles tinham interesse de que o protesto fosse noticiado, arrumaram um carro para me levar até um ponto de ônibus onde pude seguir viagem até a casa de Pedro.

Hoje, dez anos depois, estou prestes a viajar de novo para aquela região para, entre outras coisas, visitar o túmulo do bispo. A conjuntura política é inversa. Se fosse vivo, Pedro bem poderia repetir os famosos versos de Cazuza: “os meus inimigos estão no poder”. E eu, se hoje fosse entrevistá-lo, talvez não fosse tratada com tanta tolerância por um jagunço de latifundiários.

Afinal, no Brasil atual, são eles, os grandes donos de terras, os desmatadores, que têm “muitos amigos no Planalto”, e estão fazendo deste país um pária internacional e uma terra arrasada.

Como dizia Pedro, citando Luís XV, o pensamento desse pessoal é “après moi, le déluge”. Ou seja, “depois de mim, o dilúvio”.

Escrevo estas linhas no dia de Corpus Christi de 2022, sob o impacto da revelação de que o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Philips foram assassinados, esquartejados e incinerados na região da terra indígena do Vale do Javari.

São mártires que tiveram suas vidas ceifadas por defenderem a natureza e os povos originários.

Não tinham amigos no Planalto, muito ao contrário. Bruno foi demitido de seu cargo na FUNAI por fazer exatamente o que deveria fazer: defender os indígenas. Dom Philips, por seu trabalho de documentação de violações aos direitos humanos, era visto como um estorvo pelo atual presidente.

A Amazônia já era perigosa antes de 2018, não há dúvida. Dorothy Stang não me deixa mentir. É inegável, porém, que um presidente de extrema-direita, cujo símbolo principal são dedos em formato de arma e que declara, como no último dia 15/06, que “Jesus não comprou pistola porque não tinha naquela época”, é um agente de proliferação da violência.

Mais do que isso, aos desmontar o estado brasileiro, aparelhando órgãos vitais como a FUNAI, o atual inquilino do Planalto age deliberadamente para proteger não os oprimidos, mas os opressores. Claramente, todos aqueles que buscam denunciar quem pratica a opressão são empecilhos a serem silenciados.

Como já dito, em breve estarei de novo diante do cenário que, há uma década, me fez entender um pouco as raízes da desigualdade social neste país, que hoje sei ser fundado numa profunda inversão de valores.

O bispo que me disseram que não iria para o céu era aquele que defendia os pobres, os negros, os escravizados, os indígenas. O presidente que tantos cristãos acreditam que vai para o céu é aquele que defende os ricos, os escravagistas, os latifundiários, os garimpeiros ilegais.

Nos 200 anos de uma independência incompleta, é preciso virar essa chave. O céu do Brasil já tem mártires demais. Que o sangue deles não seja em vão e que suas mortes não fiquem impunes é o mínimo. A verdade é que será preciso refundar o Brasil.

Esperemos que a refundação comece em 2023, de preferência com o atual presidente na cadeia.

 

* Jornalista e biógrafa. De suas viagens, resultaram dois livros-reportagem. “O problema é ter medo do medo – O que o medo da ditadura tem a dizer à democracia” (Revan – 2016), que reúne 26 entrevistas com pessoas que resistiram à ditadura militar, incluindo Pedro Casaldáliga. E “Um bispo contra todas as cercas – A vida e as causas de Pedro Casaldáliga” (Vozes – 2019). É diretora de Ação Social da ABI