Um negro explorando as brechas de uma sociedade racista


29/10/2022


Por Antonio Werneck e Marcos Gomes (Comissão de Igualdade Étnico-Racial da ABI)

A sociedade brasileira é cruel, preconceituosa e legitima a misoginia. A frase caberia num texto do escritor Lima Barreto, mas o autor é o cineasta Luiz Antonio Pilar, que acaba de lançar o filme “Lima Barreto, ao terceiro dia” em exibição nos cinemas do país. Pilar é o primeiro de uma série de entrevistas que a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) preparou para marcar o mês da Consciência Negra e o centenário da morte do escritor Lima Barreto.

No papo franco com jornalistas da Comissão de Igualdade Étnico-Racial da ABI, o diretor detalha, em cerca de uma hora, o processo de produção e filmagem do longa metragem; lembra as dificuldades enfrentadas pela produção durante a pandemia; e compara, com as devidas proporções, sua trajetória com a de Lima Barreto. A entrevista estará disponível a partir das 10 horas, do dia primeiro de novembro, data do centenário da morte de Lima Barreto, no canal ABI TV no Youtube.

A entrevista

– A sociedade brasileira insiste em não se corrigir, dando margens para que essas críticas sejam pertinentes mais de um século depois da morte de Lima Barreto. O que a gente vive hoje, com raríssimas e poucas mudanças, é reflexo de uma sociedade cruel, preconceituosa e que legitima a misoginia – diz Pilar.

Negro e de origem pobre como Lima Barreto, Luiz Antônio Pilar nasceu e cresceu no subúrbio carioca. Desde a década de 1980, quando foi cursar direção teatral na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), na Urca, ele vem percorrendo brechas em um país que ainda hoje é racista e de privilégio branco.

O diretor lembra, por exemplo, sua experiência de ser preto numa universidade com maioria branca.

– A gente, o negro, vivia no limbo. Eu percebi logo uma cidade partida. Como Lima Barreto, que sempre foi colocado à margem da sociedade; que não estava inteiramente absorvido pelo grupo que frequentava, eu me sentia no mesmo lugar – conta o diretor.

Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu em Laranjeiras, Rio de Janeiro, no dia 13 de maio de 1881 e morreu no dia primeiro de novembro de 1922, aos 41 anos de idade. Filho do tipógrafo Joaquim Henriques de Lima Barreto e da professora primária Amália Augusta, ambos mestiços e pobres, sofreu preconceito a vida toda.

Sua obra é áspera, vigorosa, com pitadas de humor refinado e com doses de críticas à sociedade da época, aos políticos e aos costumes burgueses do Rio de Janeiro. “Nasci sem dinheiro, mulato e livre”, escreveu certa vez Lima Barreto.

O escritor perdeu a mãe muito jovem vítima de tuberculose pulmonar. Em “Diário Íntimo” toca no assunto: “Desde menino, eu tenho a mania de suicídio. Aos sete anos, logo após a morte de minha mãe, quando eu fui acusado injustamente de furto, tive vontade de me matar. Foi desde essa época que senti a injustiça da vida (…)”.

Criticado e excluído até mesmo nos meios acadêmicos, enfrentou o alcoolismo, problemas de saúde mental e foi internado mais de uma vez. A experiência de vida está muito presente em sua obra composta de romances, contos, memórias, folhetins e crônicas. Como jornalista desempenhou funções de repórter, redator e editor.

O texto afiado e a crítica social presentes em sua obra levaram vários críticos a comparar Lima Barreto com Machado de Assis. O escritor Carlos Drummond de Andrade foi um deles: Em artigo assinado no Jornal do Brasil em maio de 1981, o mineiro captura trechos de “Coisas do reino de Jambom” (de Lima Barreto) para criticar a segurança pública, os políticos e a falta de investimento do governo na agricultura. Na época, o país vivia uma ditadura militar e era governado pelo general João Figueiredo.

Escreveu Carlos Drummond com humor e sarcasmo: “Lima dar informações preciosas sobre plantação de galinhas, usando técnica que subverte nossas práticas atrasadas de ninhos de palha e mesmo incubadeiras. Enterra-se a galinha, depois de uma postura de uma dúzia de ovos (…). Ao fim de dois meses, a ave germina e, ao completar dez, nós temos um arbusto frondoso que nem pé de jabuticabeira (…)”.

Em 7 de maio de 1917, João Ribeiro, outro que rende homenagens, assina uma crítica no jornal “O Imparcial” onde reconhece o talento de Lima Barreto: “Numa e a Ninfa (publicado em folhetins no jornal “A Noite” em março de 1915) é um estudo da vida social e política do nosso tempo. É realmente um dos raros livros que espelham com verossimilhança, senão com fidelidade, os vícios e costumes da sociedade”.

Já Tristão de Ataíde, em artigo publicado em “O Jornal”, em novembro de 1922, lembra: “Quando, em 1908, mansamente, se extinguiu Machado de Assis (…) vinha nascendo uma obra que iria prolongar a tradição, interrompida, com a morte do grande humorista. Nesse ano, escreveu Lima Barreto as Recordações do escrivão Isaías Caminha (…)”

O grande crítico Gilberto Mendonça Teles vai mais longe ao falar do escritor: “(…) Depois de Machado de Assis, o resto seria o silêncio, como no final de Hamlet, se não tivesse havido a síntese de Lima Barreto e, por ela, as experimentações dos modernistas e a retomada realista dos romancistas de 1930 (…)”.

No último dia 13 de maio deste ano,  dia do nascimento de Lima Barreto (se estivesse vivo ele estaria completando 141 anos de vida), o jornalista e escritor Ivan Cavalcanti Proença, convidado pela nova diretoria da ABI fez uma  palestra sobre o escritor. Proença lembrou naquele dia da recusa da Academia Brasileira de Letras (ABL) em aceitar Lima Barreto em seus quadros.

Ivan Proença afirma que Lima foi duro e contra o “Manifesto Futurista”, execrando seu autor, o poeta egípcio-italiano Filippo Tommaso Marinetti; não aceitou o futebol elitista de sua época, com “goal-keeper” e “center-forward”; e reagiu aos textos rebuscados do escritor Henrique Maximiano Coelho Netto, fundador da cadeira número 2 da ABL.

– Lima Barreto dizia que burguês bebe champanhe e herói bebe aguardente; e clube de pobre é o bar. E sua distração era perambular sozinho pelas ruas do subúrbio do Rio. Ele foi recusado pela Academia Brasileira de Letras e disse “por mais que não queiram, eu sou um literato”. Personificada, a ABI proclama que você foi um literato maior de nossas letras, e um brasileiro muito querido por todos nós – afirma Ivan Proença.

O cineasta Luiz Antonio Pilar explica que o filme é resultado de um roteiro preparado a partir de um texto de Luiz Alberto de Abreu, pensado originalmente para o teatro.

– A peça foi escrita para ser dirigida na década de 1990, em São Paulo. Não sei o que aconteceu que não houve a montagem. Até que em 2013 eu montei no Rio, no Teatro Dulcina. E foi um grande sucesso. Eu percebi ali o valor estético e cinematográfico do texto. Na hora falei: vou fazer um filme.

Sem querer dar spoiler, “Lima Barreto, ao terceiro dia”, tem 1h44m de duração, e apresenta basicamente três momentos da vida do escritor: um primeiro nos revela Lima Barreto mais velho, internado no Hospício Nacional dos Alienados, em 1919, no Rio. Um outro momento mostra o escritor jovem; e o terceiro, já num plano ficcional, são apresentados os personagens “Triste fim de Policarpo Quaresma”. No elenco, entre outros, estão Luis Miranda, Sidney Santiago e Orã Figueiredo.

Na conversa com a ABI, Luiz Antonio Pilar fala ainda na importância do resgate de  heróis negros da história:

– Os personagens negros merecem mais que efemérides. Sempre que eu produzi, sempre que a produção for minha, a escolha prioritariamente será pela temática preta – afirma o diretor.

A iniciativa de  homenagear o escritor em seu centenário de morte foi do jornalista Marcos Gomes, diretor da Comissão de Igualdade Etnico-Racial. Ele lembra, por exemplo, que Lima Barreto era frequentador assíduo da biblioteca da ABI, e um jornalista completo que trabalhou como repórter, revisor e editor.

– Não existe conteúdo revolucionário sem forma revolucionária. Com sua prosa aparentemente displicente, o escritor afrontou a esgrima retórica dos salões da “belle époque”, pondo nu as contradições da primeira república. Por meio de obras de rara clarividência e atualidade, como “Triste fim de Policarpo Quaresma” e “Os Bruzundangas”, ele fez da literatura uma missão – afirma Marcos Gomes.

O presidente da ABI, jornalista Octávio Costa, lembra que Lima Barreto era socialista e defensor da Revolução Russa, que dedicou sua obra à denúncia da injustiça social, do racismo e da insensatez dos poderosos. Segundo Octávio, o escritor foi perseguido e marginalizado pela elite cultural da época.

– Mas o talento de Lima Barreto sobreviveu a tudo e hoje ele está entre os grandes escritores de nosso país. Aos seus colegas jornalistas, deixou nas “Recordações do Escrivão Isaías Caminha” um registro fiel e precioso da imprensa no início do século 20. Descreve mazelas das redações que persistem até hoje, como os baixos salários e os desmandos dos proprietários de jornais. Dizem que Edmundo Bittencourt, dono do “Correio da Manhã” (na ficção, o playboy Ricardo Loberant. dono de “O Globo”) ficou furioso com o relato de Lima. Mas, para nós, o livro é um documento genial e eterno – conta Octávio.

A caricatura do jornalista Lima Barreto utilizada nessa matéria foi reproduzida do livro Lima Barreto Triste Visionário, de autoria da Profa. Lilia Moritz Schwarcz, editado pela Companhia das Letras