O discurso de Cícero Sandroni


30/03/2007


No dia 22 de janeiro de 1897, nascia no Recife, Alexandre José Barbosa Lista Sobrinho. Nasceu em casa, no assim chamado à época Bairro Velho, com sua vida boêmia e antigas construções de armazenagem e instalações portuárias, hoje inteiramente remodelado, e não sei se a especulação imobiliária não exigiria aqui colocar aspas em remodelado. Vindo ao mundo antes da sessão inaugural da nossa Academia, a 20 de julho de 1897, por feliz iniciativa do Presidente Marcos Vinicios Vilaça, lembramos hoje os 110 anos de nascimento do grande brasileiro com a aposição do seu retrato nesta Casa.

Sua vocação para o Direito surgiu cedo, talvez inspirada pelo tio, o político Barbosa Lima, constitucionalista de grande atuação no Império e na Primeira República. Bacharel pela Faculdade de Direito do Recife, viu-se impedido de participar de um concurso para a cátedra de Direito Internacional daquela instituição. Magoado, mas sem deixar nunca suas fundas raízes pernambucanas, viajou em 1921 para a então capital do País, com carta de apresentação do Barão de Suassuna, amigo de seu pai, para o Conde Pereira Carneiro, e logo estava empregado como redator do Jornal do Brasil. A prática diária do jornalismo do jovem recifense, iniciada naquele então, jamais o impediu de estudar os problemas brasileiros e, como cartão de apresentação à vida intelectual do Rio de Janeiro, publicou seu primeiro livro, “A ilusão do direito de guerra”, tese que apresentaria no concurso de Recife, se lhe dessem chance de disputar a cátedra, de antemão assegurada a um candidato apoiado em outros atributos que não os do saber jurídico.

Com pouco tempo de trabalho na redação no Rio de Janeiro, publicou, em 1923 “Problemas da imprensa”, onde estudou as questões do jornalismo e combateu a lei do Senador Adolfo Gardo, que instituía a censura à imprensa. No preparo, explica: “Não admito qualquer lei especial para a imprensa. Toda lei de imprensa, por menos dura que seja, é sempre uma forma de cercear a liberdade de pensamento.” O livro alcançou grande repercussão à época em que foi lançado, apesar do estado de sítio urgente no país, no Governo Bernardes. O autor discorreu com tal competência sobre o assunto que “Problemas da imprensa”, ao ser reeditado em 1988, 65 anos depois, “continha reflexão que não se esgotavam no tempo, e permaneciam atuais”, segundo o jornalista José Marques de Melo.

Desde os primeiros anos de sua vida pública, Barbosa Lima Sobrinho permaneceu na trincheira da liberdade, com petardos contra tudo o que considerava errado na política brasileira. Seu gosto pelo bom combate, o combate das idéias, sem jamais esquecer os princípios da cordialidade, foi constante em sua vida. Sempre agiu com firmeza sem perder a ternura, e seu nome foi registrado no “Livro Guiness de recordes” como o escritor na ativa (escreveu mais de 120 livros, e nenhum deles coletânea de artigos) mais antigo do Brasil. Esta longevidade coerente, levou D. Paulo Evaristo Arns defini-lo de forma exemplar: “Na condição de acadêmico, o Dr. Barbosa é imortal, mas eu penso que além de imortal, ele é eterno.”

Eterno e sempre nacionalista, o que para alguns hoje constitui um anacronismo, uma visão retrógrada e perigosa, capaz de levar um país à vertigem das ditaduras dos mais variados tipos do espectro ideológico. Tudo isto a léguas de distância do pensamento do Dr. Barbosa. Em entrevista que me concedeu ele afirmou: “Escrevi um livro, ‘Presença de Alberto Torres’, para mostrar as idéias fundamentais daquele pensador, um grande nacionalista. Nacionalismo é o mesmo que patriotismo, um conceito que em certo momento da nossa história foi desvirtuado, mas que hoje, mais do que nunca, precisa ser incutido na mente de todos, especialmente dos jovens. Nacionalista é aquele que defende sua nação, o patrimônio de sua nação, é quem deseja o desenvolvimento de sua nação, o bem estar do povo de sua nação. Este é um nacionalista. Você não encontra nenhum país no mundo que não defenda os seus interesses. Todas as grandes economias, as economias desenvolvidas, basearam-se nos princípios nacionalistas. Não estou falando de xenofobia. Não tenho nada contra capitais que venham para o Brasil ajudar o nosso desenvolvimento e que fiquem aqui, criando raízes e riquezas. Mas o conceito de globalização hoje difundido baseia-se no nacionalismo das nações hegemônicas, que estão defendendo os seus interesses e os interesses de suas empresas globalizadas, ávidas por lucros além-fronteiras. Ou então dos investidores internacionais do mercado financeiro, esta nuvem de gafanhotos que vem buscar os dividendos dos nossos juros altos e, quando se sentem inseguros, migram para outras paragens em busca de lucros maiores ou de menores riscos, sem a menor consideração com o País que exploram. O Brasil, como nação independente, deve defender sua economia, seu mercado, sua indústria, seus trabalhadores, seu povo. Os que agem dessa forma são nacionalistas. Os outros, não.”

Desculpem-me se nesta tarde não falo dos livros de contos do dr. Barbosa, de seus estudos filológicos, dos ensaios jurídicos e das suas interpretações da História do Brasil, com ênfase nos estudos da História de Pernambuco ou do seu magnífico discurso de posse nesta Academia, uma peça literária em que analisa seus antecessores e faz um balanço na produção intelectual do País até 1936, ano em que ingressou nesta casa. Mas o tempo é breve, e a defesa de sua memória no campo da pregação dos seus ideais é imperativa.

Há que distinguir, portanto, suas idéias e seu pensamento nacionalista, do clichê que se formou sobre o nacionalismo, remetendo-o a um gueto onde se pode encontrar desde o populismo demagógico das ruas e dos panfletos, ao falso nacionalismo explorado pelos que pregam as formas do governo discricionário e ditatorial. Para estes, o nacionalismo é utilizado como instrumento de ambições pessoais, sinônimo de lideranças carismáticas e demagógicas, ou então, no poder, de expansão de suas fronteiras, e agressões ao direito internacional, caldo de cultura, na nossa era, do stalinismo, do nazismo, do fascismo e do imperialismo japonês, estopim para as guerras de extermínio do século XX. E hoje presente nos sangrentos conflitos entre o nacionalismo fundamentalista e expansionista de Bush e reação terrorista do nacionalismo fundamentalista do Al Quaeda e seus símiles.

Nada mais distante do pensamento do Dr. Barbosa Lima Sobrinho do que o quadro acima descrito. Estudioso dos problemas da economia — foi professor de Teoria Econômica por vários anos — e profundo conhecedor da História do Brasil, distante da esquerda de todos os tons e matizes — foi Governador de Pernambuco eleito pelo PSD, o grande partido conservador da democracia de 1946 —, mas também crítico dos que, de uma forma aberta ou velada aceitavam um avanço ambicioso, sem qualquer tipo de controle ou regulamentação, das grandes corporações sobre um mercado nascente e crescente, a exemplo do Brasil. Para estes, o Estado, e aqui com letra maiúscula, não passava de um estorvo. Durante toda a sua vida ele estudou influência das forças exógenas na estrutura econômica do Brasil e bem cedo concluiu pela necessidade de defendê-la. Esse, e só esse o seu nacionalismo.

Em seu livro “Japão: o capital se faz em casa”, Barbosa Lima Sobrinho descreve a recuperação da economia japonesa no pós-guerra e o desenvolvimento do País com a utilização da poupança interna. Leu mais de 200 livros sobre a economia japonesa e concluiu que o capital de casa estabelecera os alicerces do desenvolvimento japonês. Em suas palavras: “Ao contrário de países como o Brasil, México e Argentina, que continuavam em estágios primários de desenvolvimento, a economia japonesa se recuperou no pós-guerra graças ao esforço dos japoneses e de sua grande capacidade de acumular a poupança interna. E seus líderes se recusavam a contrair empréstimos externos, mesmo aqueles ‘generosos’ de organismos internacionais. Então escrevi meu livro para mostrar o exemplo japonês ao Brasil.”

Para muitos, o exemplo não vale para o Brasil. Mas é bom lembrar que a fórmula japonesa descrita pelo Dr. Barbosa em seu livro, transformou um país em escombros ferido duas vezes pelo ataque nuclear, em pouco tempo, na segunda economia do mundo. Alega-se que com o apoio de capitais de fora o Brasil vem conseguindo, aos trancos e barrancos, índices de desenvolvimento que o colocam hoje em 10º lugar neste campeonato no qual se disputa quem tem o maior produto interno bruto do planeta. Aconselho aos que assim pensam que visitem o site do Ministério da Fazenda, no setor da dívida externa e façam o cálculo: é aterrador. Nos últimos dez anos, para amortizar a dívida contraída e pagar os juros, o Brasil já passou mais de um trilhão de dólares para cofres do exterior. Ao contrário dos japoneses o Brasil optou por colocar esta absurda quantia de dinheiro nas mãos dos outros. Desprezou a idéia de construir aqui uma economia desenvolvida com seus próprios recursos que, como demonstra o quadro sintético do Ministério da Fazenda, existiam, mas foram tragados, pela banca na orgia da construção da dívida externa e na sua atual desconstrução.
Sólido, íntegro, coerente e infatigável, depois da campanha da anti-candidatura à presidência, ao lado de Ulisses Guimarães em pregação cívica pelo Brasil, Barbosa Lima Sobrinho foi eleito Presidente da ABI. Estava então no vigor dos seus 81 anos, idade em que a maioria absoluta dos que lá chegam já estão aposentados há muito tempo. Tornou-se assim, na História da ABI o mais idoso dos jornalistas brasileiros a exercer aquele cargo, depois de ter sido o mais jovem, aos 26 anos. Nesta Casa, foi o segundo acadêmico em anos de permanência entre nós, 63 anos — o primeiro foi Magalhães de Azeredo, com 67 anos, mas passou a maior parte desse tempo em Roma — e um dos mais jovens presidentes antes dos 50 anos, no biênio 1953/54.

No honroso convívio, quase diário, na ABI, com Barbosa Lima Sobrinho, encontrei nele a personificação do ideal da cultura clássica, mens sana in corpore sano. Se, aos 101 anos de idade ele já não era mais capaz de ir a pé de Recife a Goiana, numa caminhada de 40 quilômetros, como fez na juventude, na companhia de seu amigo e também futuro acadêmico Múcio Leão, mantinha a saúde centenária em excelentes condições: pressão de garoto, 12 por 8, de causar inveja a tantos de nós, tranqüilidade perene e paz de espírito que transmitia aos companheiros de Diretoria da ABI — só se irritava com os fracassos do seu Fluminense no futebol. A higidez física e mental estruturava a base orgânica para o exercício diuturno da bravura cívica, da coragem moral e da capacidade de refletir com independência sobre o Brasil.

Discorrer sobre a vida e a obra do Dr. Barbosa Lima Sobrinho constitui tarefa fascinante, uma viagem no tempo e no espaço de descoberta do Brasil, do Brasil tal qual é hoje e o que poderia ser, caso as chamadas elites brasileiras, os donos do poder, tema de Raymundo Faoro, seu sucessor na cadeira número 6, agissem de forma mais consentânea com os interesses do País e do seu povo.

Nesta oportunidade, quando por iniciativa do seu Presidente, Ministro Marcos Vinicios Vilaça, conterrâneo do Dr. Barbosa, a Academia Brasileira de Letras procede à aposição do seu retrato nesta Casa, não poderia lembrar de falar sem me referir, mesmo de passagem, a algumas de suas idéias. Pareceu-me oportuno deixar registrada memória do intelectual participante, do pensador que, baseado em sua vasta cultura, sua inteligência e sua coragem cívica, tantas vezes demonstrada na História recente do País, jamais abdicou — a exemplo de grandes acadêmicos, e cito aqui apenas um, outro grande pernambucano, Joaquim Nabuco — do direito de discutir e intervir na vida pública do Brasil. Muito obrigado.