Lula, Cabral e axé no adeus a Abdias


27/05/2011


Com grande movimentação de pessoas, desde o final da tarde desta quinta-feira, 26 de maio, a Cinelândia foi palco de uma das homenagens póstumas ao jornalista, ator, diretor de teatro, artista plástico e ex-Senador Abdias Nascimento (1914-2011), cujo corpo foi velado no saguão da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro. Ele morreu aos 97 anos, na segunda-feira, 23, no Rio, e teve o corpo cremado na manhã desta sexta-feira, 27.
 
 
Centenas de militantes e lideranças do Movimento Negro brasileiro e autoridades lotaram o ambiente da entrada principal da Casa legislativa carioca, para participar do velório de Abdias, que contou também com a presença do Governador do Rio, Sérgio Cabral, e do ex-Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva.
 
 
Lula chegou ao velório na companhia do Governador e disse que o preconceito racial, contra o qual Abdias foi um lutador incansável, é uma doença difícil de curar. E falou sobre a condição do negro no Brasil:
— Acho que os negros já conquistaram muito espaço desde a Constituição de 1988, mas ainda falta muito. O preconceito é uma doença que não tem cura fácil. O remédio para combater o preconceito racial leva anos, mas penso que estamos avançando, declarou o e-Presidente.
 
 
Lula lembrou os anos de militância política e as iniciativas de Abdias inclusive na esfere pública em prol da igualdade racial no Brasil e disse que as políticas de Ação Afirmativa implantadas no País foram adotadas inspiradas também na sua contribuição para o avanço desse processo. Ele elogiou a criação de cotas para negros nas universidades públicas:
— Acho que o sistema de cotas nas universidades hoje é uma realidade, enquanto que o Pro-Uni colocando 40% dos jovens negros na universidade é uma revolução. A primeira turma de formandos na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) é uma coisa extraordinária, e penso que o Abdias faz parte de todas essas conquistas. Abdias enquanto viveu prestou uma contribuição enorme ao Brasil, declarou o ex-Presidente da República.
 
 
Por meio de nota enviada ao Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio de Janeiro, Lula já havia se manifestado dizendo que Abdias foi um lutador brilhante e incansável contra o racismo e por um Brasil melhor. “Militante político, jornalista, professor, intelectual e artista, sua coragem e inteligência na defesa da auto-estima dos direitos e da auto-estima dos afro-brasileiros são um exemplo e motivo de orgulho para todos nós. Nesse momento de dor, me solidarizo com sua esposa, Elisa Larkin Nascimento, com todos parentes e amigos”, disse Lula por meio da nota. 
 
 
O Governador Sérgio Cabral também destacou a importância de Abdias Nascimento na luta contra o racismo, elogiando a maneira como o ex-Senador conduziu suas propostas de defesa dos direitos dos negros:
— Ele era um intelectual, artista plástico, uma pessoa com uma elegância cultural que dava a ele um peso muito significativo na luta pela igualdade racial e pelo respeito religioso. Um brasileiro que marcou a História do País, disse o Governador.
 
 
Estiveram presentes também à cerimônia os Deputados federais Edson Santos (PT-RJ), Benedita da Silva (PT-RJ) e Vivaldo Barbosa (PDT-RJ), o jornalista e ex-Deputado Carlos Alberto de Oliveira, o Caó.  
 
 
Cerimônia
 
 
Ícone das lutas contra o racismo no Brasil, por mais de 40 anos, e uma das maiores autoridades brasileiras em relações raciais, Abdias Nascimento foi saudado com uma celebração ecumênica autorizada pela família com a participação de integrantes da Comissão Contra a Intolerância Religiosa (CCIR), formada por representantes do Candomblé, Umbanda, Igreja Católica, Comunidades Judaica e Islâmica, Igrejas Evangélica e Protestante.
 
 
As manifestações de apreço à figura de Abdias foram lideradas pela viúva, Elisa Larkin do Nascimento, que lembrou que entre os importantes itens da agenda de lutas de Abdias Nascimento se encontrava também a defesa pela igualdade dos direitos da mulher, “da mulher negra especificamente para a qual ele sempre teve essa atenção”.
 
 
Elisa ressaltou que Abdias foi também um dos grandes defensores dos direitos dos quilombolas, que na cerimônia foram representados por moradores do Quilombo de Campinho, de Parati, que é um dos lugares que Abdias visitou para uma de suas pesquisas no início dos anos 80.
 
 
Como pesquisador e artista plástico, Adbias Nascimento sempre manifestou o seu apreço pelas religiões de matriz africana, e com isso ganhou o respeito e a consideração das Irmandades do Candomblé e da Umbanda, como ficou claro na saudação especial que recebeu da Ialorixá Mãe Beata de Iemanjá:
— Estou aqui neste momento não para me despedir de você e sim para lhe dar um até logo, pois nosso pai Olorum (Orixá que representa a divindade máxima) quando precisa de um de seus filhos prediletos ele o chama para o seu verdadeiro convívio, e assim neste momento ele lhe escolheu meu irmão e meu professor. Porém, sabendo que esta lacuna não haverá quem preencha, a lacuna do teu potencial da sua sabedoria física e mental. Grande guerreiro, “Oxun rerê catiri catê”, declarou Mãe Beata, em uma saudação iorubá referindo-se a Oxum, Orixá da qual Adbias era devoto.
 
 
Mãe Beata acrescentou que na qualidade de mulher negra nasceu para lutar, aprendeu muitas coisas e mais ainda com a convivência com Adbias:
— Recebi aprendizado dos nossos ancestrais, porém em ti também me espelhei, acredite continuarei na luta e não hei de fraquejar, a tua estrada eu seguirei, sou a sua irmã Beata de Iemanjá, afirmou.
 
 
Zumbi
 
 
Sob forte emoção Benedita da Silva disse que com a morte de Adbias os negros perderam a sua grande liderança, mas que o legado dele tem proporcionado ao País avançar com a experiência e a importância da sua determinação na defesa do povo negro brasileiro. De acordo com Benedita, Abdias era um líder que se tornou uma referência nacional a exemplo de Zumbi dos Palmares:
— Ele é o nosso Zumbi, na expressão máxima de liderança que fez com que os adversários o respeitassem pela dignidade e fecundidade com que ele defendeu o seu ideal e os ideais de todos os negros, afirmou a Deputada, referindo-se às lutas do ex-Senador.
 
 
Para Benedita da Silva, por tudo aquilo que produziu Abdias Nascimento estará sempre presente na vida de todos os brasileiros, pois deixou um grande legado, por meio da arte (“onde se destacam as marcas da religiosidade de matriz africana que sempre defendeu”), do Teatro Experimental do Negro e nos livros que escreveu.
 
 
O radialista e pesquisador Rubem Confete falou da importância histórica do Porto do Valongo, no Centro do Rio, por onde chegavam os escravos. Segundo ele, esse foi um dos pontos da conversa que teve com Abdias em um encontro na Nigéria, em 1977, quando este estava no exílio:
— Foi daí que Abdias lançou para o mundo a grande verdade dos problemas de quatro milhões de negros que desembarcaram no porto do Valongo no Rio de Janeiro, afirmou Rubem Confete.
 
 
Confete lembrou que foi nesse momento que Abdias juntou-se à Elisa Larkin do Nascimento, que era acusada pelo Movimento Negro afro-americano de ser agente da Agência de Inteligência norte-americana (CIA):
— Era um momento crítico e os Panteras Negras diziam “cuidado com essa mulher”, porque ela é da CIA. Mas graças a ela o nosso mestre Abdias Nascimento evoluiu ainda mais a partir daqueles anos. Essa é uma questão que temos que discutir hoje. O porto do Valongo está aí e por ele se constrói a nossa História. Esse homem (Abdias) nos deixou um legado e cabe a cada um de nós prosseguir. Axé Abdias, Axé Elisa!, declarou o radialista.
 
 
Memorial
 
 
Aproveitando a deixa de Rubem Confete, o interlocutor da Comissão Contra a Intolerância Religiosa, Ivanir dos Santos, sugeriu que o Estado do Rio erguesse um memorial em homenagem a Abdias Nascimento no antigo porto do Valongo. A proposta foi apresentada ao Governador Sérgio Cabral, que gostou da idéia e disse que vai aguardar uma manifestação da família para tratar do assunto.
 
 
Para Ivanir dos Santos a importância de Abdias para o Movimento Negro brasileiro pode ser medida pela coerência entre o discurso e as atitudes:
— Ele foi uma fonte de inspiração para mim, principalmente pela coerência que manteve até os últimos dias de sua vida. Abdias nunca abandonou a agenda do Movimento Negro, nem quando assumiu cargos públicos, como Secretário de Estado no Rio, deputado e senador. Ele foi um dos pioneiros dessa agenda. O herança que deixou para nós, vamos deixar para as outras gerações, afirmou Ivanir dos Santos.
 
 
O historiador Joel Rufino dos Santos, que conviveu com Abdias por mais de três décadas, destacou a firmeza com que Abdias tratava a causa política, sem nunca perder a gentileza no trato pessoal, inclusive com seus oponentes:
— Eu sou testemunha da luta dele há 40 anos. A sua batalha contra o racismo foi um embate pela justiça social. Mais o que sempre me impressionou era o contraste entre a ênfase que ele dava nos discursos e a delicadeza nas relações pessoais, declarou Joel.
 
 
A atriz Léa Garcia — que foi casada com Abdias e uma das integrantes do Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado por ele em 1944 — disse que a emoção do momento quase a impedia de descrever tudo de importante que ele fez em relação à política no Brasil e em benefício da igualdade racial dentro do país e no mundo:
— Abdias é o nosso ícone, não o estamos perdendo, pois ele estará sempre presente nas questões políticas e raciais brasileiras. Eu agradeço ao Abdias o incentivo que me deu, por ter me dado essa possibilidade de representar. Eu sou agradecida de ele ter feito parte da minha vida como companheiro e pai dos meus filhos, avô dos meus netos. Ele foi uma pessoa que me orientou muito dentro da minha profissão, afirmou Léa Garcia.
 
 
A família de Abdias informou que as cinzas do líder negro serão depositadas na Serra da Barriga, em Alagoas, local onde foi erguido pelos escravos o Quilombo dos Palmares, o maior símbolo da resistência negra no Brasil, durante o período da escravidão.