Jornal da ABI: Ditadura, sim, e impiedosa


15/05/2009


A importância histórica dos cartunistas brasileiros para a liberdade de expressão é um dos assuntos abordados na edição nº 339 Jornal da ABI. O tema serviu de inspiração para a mostra ABI — 100 Anos de Luta pela Liberdade, no CCJF, conforme matéria nas páginas 11 a 14. Outro destaque é para a obra do cartunista Henfil, considerado por Luís Fernando Veríssimo “um típico produto daquela época dura da censura”, porque foi a grande novidade do humor brasileiro durante o regime militar. O período de exceção implantado com o golpe de 1º de abril de 1964 também é comentado no editorial “Ditadura, sim, e impiedosa”, cuja íntegra reproduzimos a seguir. 

Ditadura, sim, e impiedosa

Passados 45 anos do Golpe de Estado que depôs o Presidente constitucional João Goulart, era presumível que já se tivesse cristalizado e assimilado por consenso o entendimento de que a ruptura então produzida instaurou um amargo período de nossa existência nacional, seja pela brutalidade que nele imperou, seja pela sua extensão, que se prolongou de lº de abril de 1964 a 15 de março de 1985, quando a posse do Vice-Presidente José Sarney, em substituição ao Presidente eleito Tancredo Neves, assinalou o retorno do poder aos civis marginalizados pelos militares que se haviam assenhoreado do poder.

Esta é uma quadra desafortunada de nossa História, que superou em iniqüidades e em duração outro momento que se considerava insuscetível de repetição, a ditadura do Estado Novo, instalada em 10 de novembro de 1937 e derrubada em 29 de outubro de 1945. Tal como esta, o regime 1964- 1985 recebeu a denominação adequada, a tipificação daquilo que ele realmente foi: uma ditadura, pontilhada, repleta, como em todo sistema em que prevalece o poder absoluto, de agressões e crimes contra a dignidade da pessoa humana.

É incompreensível e inaceitável que ainda haja vozes, e no setor de imprensa, um dos mais castigados pelo regime discricionário, que busquem justificar a absolvição desses crimes, sob a cediça alegação de que não estivemos sob uma ditadura, mas sim numa dita branda ou ditabranda, neologismo de extremado mau gosto, que se oporia, pela decantação de suas sílabas, à ditadura que a consciência civilizada repudia. Mais inaceitável ainda é que essa tentativa de inversão do sentido do termo e da situação que este retrata tenha partido de importante órgão de imprensa, a Folha de S. Paulo, que fez sinuosa manobra para tentar vender gato por lebre e veicular esta adulteração da verdade histórica. A jogada foi tão infeliz e tão ofensiva à memória recente de nossa evolução política que o conceito encontrou repúdio na própria equipe do jornal, posto assim diante de um paradoxo: sua opinião não mereceu crédito ou adesão nem em seus domínios.

Quando se contesta que a ditadura tenha sido branda, o que se está fazer é o registro de que essa quadra de supressão das liberdades públicas, dos direitos civis e dos direitos humanos foi marcada pela impiedade dos usurpadores do poder, por seu desrespeito às normas elementares que regem a convivência humana, sua arrogância, seu cinismo, como o demonstrado no episódio do assassinato do jornalista Vladimir Herzog nas masmorras do II Exército, em São Paulo, em 25 de outubro de 1975. Após esse crime nefando contra um homem de boa-fé, que se apresentara às autoridades militares na presunção de que não se depararia com seres possuídos pelo demônio, seus algozes e matadores tentaram simular que ele cometera suicídio, versão apresentada de forma inepta, tão inepta quanto o simulacro urdido por seus carcereiros.

O regime militar cassou, prendeu, exilou, torturou, assassinou, demitiu, desaposentou, processou, condenou, censurou, expulsou, degradou, mentiu, deu sumiço a pessoas, privou a cidadania do direito de voto. Tudo isto só constituiu atos brandos na concepção dos áulicos, dos fariseus, dos puxa-sacos. Os democratas conhecem isto pelo seu verdadeiro nome: ditadura.