Governo e movimentos sociais


23/12/2008


Colaboração de Altamir Tojal, jornalista, escritor e sócio da ABI

A relação entre os movimentos sociais e o Estado foi uma das questões centrais na Oficina de Debates promovida pela Universidade Nômade no último dia 18, no Departamento de Direito da PUC-Rio. 

Foi um debate horizontal, que teve a participação de Antonio Negri, Christian Marazzi, Yann Moulier-Boutang, Oscar Vega, Raul Prada, Cesar Altamira e outros pensadores e professores presentes no Rio de Janeiro para o Fórum Livre do Direito Autoral, realizado de 15 a 17 de dezembro por iniciativa da Escola de Comunicação da UFRJ. 

O debate foi coordenado por Giuseppe Cocco, da Universidade Nômade e da UFRJ, e por Francisco Guimaraens, também da Universidade Nômade e da PUC-Rio. Participaram cerca de 80 pessoas, durante todo o dia. A pauta original constou de quatro itens: 

1) O ciclo político “virtuoso” na América Latina: potencialidades e impasses.
2) A crise “global” do capitalismo global das redes.
3) Movimentos e produção de subjetividade.
4) A procura do commonwealth

Críticas à Carta dos Movimentos 

Embora todo o temário original tenha sido abordado nas discussões, com destaque para a questão da “financeirização” na economia contemporânea — a partir de abordagens propostas por Christian Marazzi —, o debate sobre a relação entre movimentos sociais e o Estado foi o que teve mais intervenções e mobilizou o maior número de participantes. 

Um dos textos de referência do evento foi a “Carta dos Movimentos Sociais ao Presidente Lula”, divulgada em novembro. Subscrita por mais de 50 organizações, ela apresenta propostas ao Governo para enfrentar a crise econômica global. 

A carta recebeu diversas críticas, entre as quais a de que não expressa a multiplicidade dos movimentos. Outro ponto assinalado seria um viés neokeynesiano, que revelaria certa nostalgia da política econômica do Governo militar. Também foi questionada a ausência de referências a ações afirmativas, o que seria reflexo de diversos movimentos estarem se convertendo em aparelhos políticos, tornando-se presas fáceis do Estado, e não conseguirem se comunicar e cooperar entre si. 

Paulo Henrique Almeida, da UFBA, disse que a tradição da esquerda de ser contra o comércio e os bancos a desarma para o mundo atual, que é baseado em trocas e finanças. Ele assinalou que a carta propõe a eutanásia dos rentistas e do capital financeiro, como se nós não fôssemos parte das finanças. Também pede de volta a “substituição de importações” e outras propostas do repertório da esquerda nacionalista e da direita fascista. Portanto, cabe questionar o que seria uma política de esquerda nesta crise. 

Não se governa sem os movimentos
 
Antonio Negri concluiu uma de suas duas breves intervenções, lembrando que hoje não se governa, a não ser com os movimentos.
Os debates destacaram o reconhecimento dos avanços, nos últimos anos, das políticas públicas no Brasil, resultantes, em grande parte, da relação entre os movimentos sociais e os governos. Mas assinalou-se que esse encontro também diminui os movimentos e o próprio Estado, e que caberia rediscutir o que é movimento social hoje. 

Isto suscitou controvérsia. De um lado, considera-se que não cabe aos intelectuais definir o que é movimento e como cada um deles deve atuar, pois seria uma tentativa de captura. 

Outra corrente entende que professores e intelectuais em geral fazem parte do “proletariado cognitivo”. A hierarquização e a fragmentação promovidas pelo capitalismo cognitivo passa pelo domínio do tempo desses trabalhadores, que, portanto, necessitam e devem discutir o tema, partindo de suas próprias questões. 

Giuseppe Cocco concordou que há problemas na relação entre os movimentos e o Estado, mas destacou que há uma prática rica e potencialidades positivas. A dificuldade da relação estaria na questão maior da crise da representação, cujo debate deveria considerar o vazio provocado pelo enfraquecimento dos movimentos sociais organizados. 

Francisco de Guimaraens ponderou que é preciso discutir a relação dos movimentos com o Estado com o cuidado de não jogar fora a água da bacia com a criança junto. Para ele, o debate não deve ser seqüestrado pela direita nem pela esquerda estatizada e precisa levar em conta quanto e quando o Estado é comum. 

O público e o comum 

Vale observar que o debate considerou uma base conceitual que diferencia três ordens de domínios: o privado, o público e o comum, o que repercute em noções relacionadas à propriedade e ao direito. O conceito de comum tem sido discutido a partir de trabalhos de Negri — como sua conferência no II Seminário Internacional sobre Capitalismo Cognitivo, realizada no Rio em outubro de 2005, e em livros como “Império e multidão” — e Michael Hardt, entre outros autores, e diferencia-se da idéia de domínio público.
Também cabe assinalar que a “problematização” do papel do Estado tem amplo destaque na crítica marxista muito antes dos ataques do neoliberalismo. 

Produção de subjetividade 

Outro aspecto da crise comentado na ocasião relaciona-se à produção de subjetividade. Na crise anterior, dos anos 70 e 80, vivíamos sob a ditadura e o País enfrentava uma crise fiscal. Isso contribuiu para formar uma subjetivação que legitimou as políticas neoliberais e a idéia do Estado mínimo. Cabe indagar, portanto, que processos de subjetivação estão ocorrendo agora, nesta crise — que não é simplesmente uma questão técnica. É preciso atenção a seus efeitos sobre a dinâmica dos movimentos, principalmente a pressão para reduzir os orçamentos das políticas sociais.
Negri e outros participantes comentaram o crescimento dos atuais movimentos globais que protestam contra o pagamento, pelos mais pobres, dos custos da crise econômica. 

Patrocínio e aparelhamento 

Concluindo este registro sobre a “Oficina de 18 de dezembro”, ficam aqui uma especulação e uma indagação:
Hoje, como assinala Negri, não se governa sem os movimentos sociais. Há uma circulação política potente na relação entre os movimentos e o Governo, produzindo políticas públicas de interesse da sociedade. Mas essa relação também é de patrocínio em diversos casos no Brasil. Se isso propicia suporte material, também limita a autonomia e a liberdade dos movimentos e favorece vícios próprios do público e do privado. É necessário, portanto, discutir como essa relação de patrocínio afeta os movimentos e o próprio Governo. Será que a debilidade de alguns movimentos sociais e mesmo o empobrecimento do repertório conceitual da esquerda não decorrem do vício do aparelhamento político, entendido como promiscuidade na relação entre eles e o Governo?