Entrevista — Arthur Poerner


19/12/2008


Um entusiasta da juventude

Bernardo Costa
18/12/2008

O mais jovem brasileiro (26 anos na época) a ter os direitos políticos cassados, Arthur Poerner se destacou na imprensa brasileira por sua atuação contra o regime militar no Correio da Manhã. Como aluno de Direito da Faculdade Nacional, participava ativamente do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira (Caco) e fazia a ponte entre o jornal e os estudantes.

Na literatura, também resistia à ditadura, escrevendo livros de conteúdo político e de protesto. Em 1968, publicou pela Civilização Brasileira sua mais importante obra: “O poder jovem — História da participação política dos estudantes brasileiros”, proibido no início do ano seguinte em todo o território nacional.

Aqui, o jornalista e Conselheiro da ABI conta como foi sua prisão na redação do Correio da Manhã e sua passagem pelos porões do DOI-Codi, na Barão de Mesquita, que serviu de base para o romance “Nas profundas do inferno”, publicado na Espanha quando já estava exilado. Fala ainda das parcerias musicais com Baden Powell, João do Vale e Candeia, com quem se correspondia de Berlim para saber notícias da Portela e do mundo do samba.

Sempre atuando junto aos jovens, dando palestras em universidades de todo o País, lecionando Jornalismo na Uerj e acompanhando a UNE, Poerner conta que vê no jovem de hoje o mesmo interesse em mudar o mundo que havia em sua geração.

ABI OnlineQuando adolescente, no Colégio Amaro Cavalcanti, você participou de um jornal. Vem dessa época seu interesse pelo jornalismo?
Arthur Poerner — É anterior ainda. Nasci no Rio Comprido e cresci na Lapa, onde, na Gomes Freire, ficava o Correio da Manhã. Eu me lembro que naquela época tinha um almanaque anual do jornal, uma espécie de brinde de fim de ano, que era distribuído ali mesmo. Li aquele almanaque e fiquei fascinado. Na verdade, sempre gostei de ler e tinha uma propensão grande a escrever. Era bom em redação e me destacava na escola pelos textos, o que me dava um certo prestígio com os professores. Já no ginásio, no Amaro Cavalcanti, no Largo do Machado, eu e alguns colegas nos aventuramos a fazer um jornal muito modesto, além de um time de futebol com carteirinha de sócio e tudo. Mais tarde, na Escola Naval, quis escrever para a revista A fragata. Enfim, sempre gostei dessa atividade, desde pequeno.

ABI OnlineE como foi a estréia profissional? 
 Poerner — Minha família era bem pobre e havia uma espécie de acordo tácito, pelo qual meus pais garantiriam o ginásio a mim e ao meu irmão, e depois a gente teria que trabalhar e se virar. Fui boy, bancário, fiz várias coisas até surgir a oportunidade de fazer o concurso para o Colégio Naval. Passei, fui estudar lá e, em seguida, na Escola Naval, mas acabei sendo desligado por indisciplina. Já era um rebelde, embora ainda sem causa. Aí, deu para ir sobrevivendo, mas não me sentia bem nos empregos que conseguia, não encontrava algo que realmente gostasse de fazer. Até que, por intermédio do pai de um ex-colega da Marinha, conheci o Wagner Teixeira, um jornalista importante que me levou para o Jornal do Commercio, em 1962. No momento em que entrei naquela redação, onde me senti absolutamente integrado desde o início, percebi que tinha acabado minha busca vocacional, que o jornalismo era a minha profissão.

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ABI OnlinePor que, em 1964, você foi estudar Direito?
Poerner — Senti que era importante fazer uma universidade, ampliar meus conhecimentos. Como na época não existiam cursos de Comunicação, comecei a pensar em uma cadeira que pudesse enriquecer a atividade jornalística, à qual pretendia me dedicar, e prestei vestibular para a Faculdade Nacional de Direito, o que de fato foi muito útil, porque eu fazia jornalismo político — sem contar que comecei a me integrar no movimento estudantil e entrei no Centro Acadêmico Cândido de Oliveira, uma das mais antigas instituições de representação de estudantes do País.

Fazer parte do Caco, ser jornalista e começar a escrever livros de conteúdo político foram fatores que contribuíram para eu me destacar na carreira e, também, ser punido pela ditadura. Tanto é que estreei em 62 como repórter do Jornal do Commercio e já em 5 de julho de 66, com 26 anos, fui o brasileiro mais jovem a ter os direitos políticos suspensos por dez anos, a partir de decreto presidencial do Marechal Castelo Branco. Pouco antes, em maio, houve um movimento dos jornalistas, centralizado na ABI, para a eleição de cinco representantes da categoria para o diretório regional do MDB. Fui um dos escolhidos, junto com Paulo Silveira, José Luiz Costa Pereira, Hermano Alves e Fabiano Villanova Machado. Era um passo para ser candidato nas eleições de 66, tanto que o Hermano foi eleito deputado federal e o Fabiano, estadual. E eu já estava com os direitos cassados.

ABI OnlineConte mais sobre as manifestações estudantis da época.
Poerner — Havia uma atividade muito grande. Hoje, muita gente cobra dos estudantes essa mesma hegemonia, mas é impossível, pois o movimento estudantil, atualmente, é um entre vários movimentos sociais. Na ditadura, todos os outros focos de resistência — como o sindicalismo urbano e o rural, ainda incipiente — tinham sido eliminados e os estudantes assumiram a dianteira no combate ao regime, os protestos, as passeatas. Como participante do Caco e redator do Correio da Manhã, que liderava a resistência à ditadura na imprensa, eu era um ponto de contato entre os estudantes e o jornal.

ABI OnlineQual era a sua editoria no Correio da Manhã?
Poerner — Eu cobria política externa, no Itamaraty, e tinha ali como colegas, entre outros, o Sérgio Cabral, credenciado pela Folha de S.Paulo, e o Elio Gaspari, do Diário de São Paulo. Em 65, fui cobrir o encontro dos chanceleres brasileiro e argentino, que articulavam uma frente contra o Chile, país então ainda a salvo das ditaduras no Cone Sul. Quando voltei de Buenos Aires, propus a Niomar Moniz Sodré Bittencourt, proprietária e Diretora do Correio da Manhã, ir a Montevidéu fazer um levantamento de como estavam os exilados brasileiros e tentar entrevistar o Brizola. E foi o que fiz. Em decorrência disso, quando retornei ao Rio, minha credencial no Itamaraty foi cassada pelo Secretário-geral Pio Corrêa, que tinha sido Embaixador no Uruguai. Foi a primeira punição que recebi da ditadura e teve grande repercussão, com protestos da ABI e no Congresso Nacional. Passei a ir aos botecos da antiga Rua Larga, perto do Palácio do Itamaraty, esperar que o Gaspari e o Cabral me passassem informações que pudesse levar ao Correio da Manhã.

ABI OnlineComo você se tornou Diretor da Folha da Semana?
Poerner — Em protesto contra o golpe militar, ingressei no Partido Comunista, que tinha um semanário legal circulando nas bancas. Com a edição do AI-2, que instaurou o bipartidarismo, permitindo a existência apenas da Arena e do MDB, o Diretor dos dez primeiros números da Folha da Semana, Alfredo Tranjan, um jurista, renunciou ao posto. Então, o Maurício Azêdo — hoje Presidente da ABI —, o Sérgio Cabral e outros que já colaboravam com o jornal me convidaram a assumir o cargo, em que permaneci até ter os meus direitos políticos suspensos.

   Em 1965, com Miguel Arraes, na Argélia

ABI OnlineFale um pouco do início de sua carreira como escritor. A política é sua maior motivação literária?
Poerner — Sem dúvida, acho que sempre escrevo no sentido de esclarecer e divulgar a realidade existente e interferir nela de maneira positiva. Minha estréia foi com “Assim marcha a família”, organizado em 65 pelo José Louzeiro, que convidou alguns colegas para escreverem o livro, que mostrava os verdadeiros problemas que deveriam ter mobilizado as senhoras das “marchas da família com Deus pela liberdade” — e, evidentemente pela propriedade. Era um livro de protesto, que teve problemas em vários estados e foi prefaciado pelo Carlos Heitor Cony. Fiquei com o tema moradia, que me trouxe algumas experiências interessantes. Na Mangueira, por exemplo, conheci o Cartola, que se tornou um grande amigo.

Ainda em 65, ocorreu um fato determinante em minha vida. O Miguel Arraes, preso no dia do golpe como Governador de Pernambuco e levado para Fernando de Noronha, conseguiu um habeas corpus, veio para o Rio e pediu asilo na Embaixada da Argélia. Amigos dele me escalaram para a missão de acompanhá-lo e acabei ficando três meses e meio naquele país, que tinha se tornado independente em 62, após 132 anos de domínio francês. Lá, recebi um convite do Ênio Silveira, editor da Civilização Brasileira, para escrever um livro sobre a realidade argelina, pois não havia nenhum em língua portuguesa. “Argélia: o caminho da independência” foi publicado em 66 e algumas correntes o consideraram a favor da luta armada, embora não fosse esta a minha intenção. Durante muitos anos, era sempre procurado quando um novo embaixador daqui era designado para a Argélia, para conversar sobre o país.

Em 68, lançamento da 1ª edição de “O Poder jovem” na Ucam, no Rio

ABI Online“O poder jovem: história da participação política dos estudantes brasileiros” foi publicado em julho de 68, depois da Passeata dos Cem Mil e antes do AI-5, quando se tinha a ilusão de que a abertura estava próxima. Houve, nesse momento, uma demanda maior de livros de conteúdo político?
Poerner — Até o AI-5, muitas obras tentavam explicar e compreender como o golpe tinha sido possível. A verdade era que nós, brasileiros, já nos considerávamos a salvo desse tipo de intervenção militar. Lembro que em 63 houve um golpe no Equador contra o Presidente Arosemena e os comentários aqui eram de que nós já estávamos em outra fase, acreditávamos mesmo que não éramos mais uma república “bananeira”. E, de repente, um governo constitucionalmente eleito é derrubado. 

Na área editorial, a Civilização Brasileira representava a mesma resistência que o Correio da Manhã no jornalismo e os estudantes no movimento social. O Ênio Silveira me apressava a concluir “O poder jovem” e, quando ele já estava com os originais, o Edson Luís foi assassinado. Tive que escrever uma nota suplementar. Nesse episódio, como as lideranças estudantis já sabiam que eu estava escrevendo o livro, fui convidado para carregar o caixão. O Ênio achava que “O poder jovem” era muito forte, mesmo com as perspectivas de que se poderia avançar no processo de democratização naquele momento, e me pediu um outro prefácio além do que já tinha sido escrito pelo Antônio Houaiss. O primeiro nome que ele me propôs foi Magalhães Pinto, que era Ministro das Relações Exteriores e naquela altura já tinha adotado uma linha mais moderada, mas eu não aceitei, porque não queria ter meu nome associado a alguém que tinha tido participação no golpe militar. Aí veio o 1º de maio de 68 e o Abreu Sodré, então Governador de São Paulo, permitiu a comemoração do Dia do Trabalhador e foi às manifestações, sendo inclusive apedrejado pelo povo que protestava contra a repressão. O Ênio logo sugeriu que ele escrevesse o prefácio, mas também resisti. Quando vi que ele não ia desistir, eu me lembrei de uma entrevista que tinha feito com o General Peri Bevilaqua, nacionalista que depois se destacaria muito no Superior Tribunal Militar contra o absurdo das punições, sendo também punido após o AI-5. Ele acabou fazendo o prefácio e o texto do Houaiss ficou sendo a apresentação.

 Com Alfredo Vianna, Prestes e José Louzeiro,
quando presidiu o Sindicato dos Escritores

ABI OnlineO livro foi um dos primeiros oficialmente proibidos pela ditadura.
Poerner — Sim, ao lado de 19 obras de autores como “Che” Guevara, Mao Tse-tung e mais um único brasileiro além de mim, Nelson Werneck Sodré, com “A história militar do Brasil”. A Veja estreou em 68 trazendo na última página a lista dos mais vendidos e “O poder jovem” ficou lá muitas semanas. Foi uma alegria descobrir que, quando mandaram apreender o livro, ele já estava esgotado. Anos depois, no exílio, recebi uma segunda edição clandestina, feita por estudantes da PUC-SP em 77, quando o movimento estudantil voltou às ruas para lutar pela Anistia.

ABI OnlineConte o que aconteceu no Correio da Manhã com a notícia do AI-5.
Poerner — Lembro bem do dia 13 de dezembro de 68. Não havia nada no Itamaraty, porque o Ministério estava reunido com o Marechal Costa e Silva no Rio, para tomar uma atitude diante da recusa do Congresso em processar o Márcio Moreira Alves, meu colega de jornal. Liguei para o Peralva, Diretor de Redação, que recomendou: “Se eu fosse você, hoje nem viria aqui.” Eu disse que queria ficar a par dos acontecimentos, e ele retrucou: “Se quiser vir, venha. Mas não garanto que consiga sair.” E tinha toda razão. Quando o radialista Alberto Cury começou a ler em cadeia nacional o texto do AI-5, o jornal foi invadido. O Peralva desceu para ver o que estava acontecendo e foi imediatamente algemado e jogado num camburão. Lá em cima, nos avisaram que os militares estavam atrás de mim, do Edmundo Moniz e do Franklin de Oliveira. Corremos para o andar da oficina e fugimos por uma janela que dava para os fundos de um prédio da Rua do Lavradio, onde passamos a noite.

No meio desses momentos trágicos, houve um episódio engraçado. A Niomar, que era prima e cunhada do Edmundo, armou um esquema para tirá-lo dali: mandou um macacão para ele vestir e se misturar aos operários que trabalhavam no jornal. Só que o Edmundo tinha sido tuberculoso na mocidade, tomava muito cuidado com ventos e, mesmo no verão carioca, sempre andava de terno escuro e colete. Então, ficamos Franklin e eu ali no chão, julgando se o Edmundo já estava com aparência de operário; ele se apresentava, nós o reprovávamos seguidas vezes. Até que, finalmente, depois de confiscarmos o relógio e os óculos com hastes de ouro, ele pôde sair conforme o plano e seguiu direto para a Embaixada do México. No dia seguinte, Franklin e eu fomos avisados de que podíamos sair, mas não devíamos ir à redação. Passamos a escrever com pseudônimo — eu era Américo Paiva. Caí na clandestinidade até ser convidado pelo PC para representar a esquerda brasileira num evento na Finlândia, com a recomendação de me manter lá fora o máximo possível. Então, da Finlândia, fui para a Iugoslávia, a Polônia, a Argélia e outros países, onde fazia alguns trabalhos como jornalista e ia me virando. Até que tive que retornar ao Brasil.

ABI OnlineE aí você foi preso… 

        Com Didi em Frankfurt, na Copa de 74

Poerner — Pois é. O Correio já tinha sido arrendado pelos irmãos Alencar e estava engajado na campanha do Coronel Mário Andreazza para a Presidência. Fazia meu trabalho discretamente, mas em 2 de abril de 1970 fui preso na redação, levado para o Dops e depois para o DOI-Codi, onde fiquei três meses e meio. Quando saí, fui demitido e tinha que me apresentar toda quinta-feira no Ministério do Exército, na Praça da República, para assinar uma lista atestando que eu estava no Rio.

Então, decidi que tinha que sair do País, o que aconteceu graças a uma articulação com a Embaixada alemã, que estava organizando a Feira do Livro de Frankfurt e me convidou a participar, juntamente com Jorge Amado, Adonias Filho e Eduardo Portella. Pedi o visto ao Coronel a quem me apresentava toda semana e, diante da primeira negativa, argumentei: “Mas vocês não vivem dizendo que o Brasil sofre uma campanha de deformação de sua imagem no exterior? Estou sendo convidado pelo Embaixador alemão, que sabe que eu quero ir. O que ele vai pensar?” Consegui o passaporte, mas na Alemanha fui avisado por um diplomata do Itamaraty que não o apresentasse em lugar nenhum, pois ia ser apreendido. Então, tive que pedir asilo político.

ABI OnlineLá você escreveu mais dois livros.
Poerner — Primeiro, fui convidado a participar de “Memórias do exílio”, de autoria coletiva. Depois veio o romance “Nas profundas do inferno”, a digestão de tudo o que eu tinha visto e vivido na prisão.

Poerner e Gabeira são homenageados no Sindicato dos Jornalistas na volta ao País

ABI OnlineO que o motivou a escrevê-lo já longe do perigo?
Poerner — Mesmo estando a salvo, ainda tinha pesadelos e às vezes acordava pensando que estava na Barão de Mesquita, no DOI-Codi. Aquelas coisas terríveis me perseguiam. Pensei em escrever sobre isso e tomei a decisão ao ler sobre a função terapêutica da literatura e da arte em geral, muito usada por Nise da Silveira no tratamento de pacientes psiquiátricos no Engenho de Dentro. Comecei a me sentir melhor na medida em que escrevia sobre minha experiência. Na mesma época, o (Fernando) Gabeira, que tinha estado preso comigo, escrevia “O que é isso companheiro?” e de vez em quando me ligava da Suécia para confirmar algumas coisas, como o nome exato da Folha da Semana. Ele escreveu, de certa forma, já rejeitando a experiência; eu busquei outro caminho, mesclando alguma ficção para ter mais liberdade, para não citar certos nomes, e sem amargura e lamentações, pois aquela tinha sido uma luta necessária.

Minha intenção era mostrar as atrocidades e os tipos de torturadores. Tinha aqueles que confiavam no método para chegar à verdade, acreditando que se uma pessoa recebe uma carga de tantos volts e continua dizendo que não sabe de nada não deve estar mentindo, pois ninguém agüenta aquilo. Mas havia os que não estavam interessados na verdade e sim no prazer de torturar. Quando o livro ficou pronto, consegui fazê-lo chegar ao Brasil, mas nem a mobilização de gente como Chico Buarque viabilizou a publicação aqui. Então, o Jorge Amado, autor do prefácio, me encaminhou à agente literária dele em Barcelona e “Nas profundas” saiu na Espanha, em 78, e logo depois na Itália, onde recebeu prêmio de literatura estrangeira. Em 79, com a abertura, finalmente foi editado no Brasil, com o prefácio do Jorge e orelha do Alceu Amoroso Lima.

No exílio, em Roma, com Garrincha

ABI OnlineFoi possível trabalhar como jornalista no exílio?
Poerner — Tive muita sorte nesse sentido. Estabeleci contato com o Pasquim e, em 71, comecei a colaborar com o jornal. No ano seguinte, a rádio Voz da Alemanha, que transmitia para 34 países, me chamou para trabalhar. Logo surgiram convites de jornais e TVs alemãs e também de Portugal, sobretudo depois da abertura, em 25 de abril de 74. O Gabeira, por exemplo, trabalhou numa loja de roupas, substituindo etiquetas asiáticas por européias, foi motorneiro de metrô… Um dos casos mais patéticos de que tive conhecimento foi o de um advogado que tinha sido Secretário de Segurança ou Justiça do Miguel Arraes e trabalhava como vigia noturno em Paris. Isso é terrível, é um duplo exílio, de país e de profissão. Disto, felizmente, fui poupado.

ABI OnlineEm 79, o senhor voltou ao Brasil, mas não definitivamente. Por que retornou à Alemanha?
Poerner — Cheguei aqui num momento de muita festa e alegria, mas precisava de emprego. Não poderia ficar no Brasil sem trabalho. Como não consegui nada e o salário da rádio alemã me permitiria viajar para cá uma vez por ano, voltei para lá. Depois, o Mino Carta me convidou para ser correspondente da IstoÉ na Alemanha e países limítrofes, e eu fui ficando. Até que juntei dinheiro para comprar um apartamento no Leme e voltei definitivamente em 84, já convidado pela TV Globo para ser editor de Cultura. Depois, o Neiva Moreira me convidou pra trabalhar nos Cadernos do Terceiro Mundo, fiz resenhas literárias para o Estadão e a IstoÉ… Para o Pasquim, lembro que escrevi pela última vez em 1990, me recuperando do meu primeiro infarto. Pedi máquina de escrever e fiz um artigo no hospital. 

ABI OnlineComo começou a escrever letras de música?
Poerner — Cresci num ambiente que propiciava isso, na antiga Lapa, com seu carnaval de blocos de sujo… Depois, como jornalista, o contato se tornou mais amplo. Fiquei muito amigo do Zé Kéti, do Ismael Silva e do João do Vale, meu parceiro numa música gravada pela Vanja Orico. Depois da prisão, criei com Jorge Coutinho, Haroldo de Oliveira e Leléu da Mangueira o show “Cartola convida”, que ficou dois meses em cartaz na Praia do Flamengo, 132, de onde a UNE havia sido expulsa — numa noite, a de maior público, os convidados eram Pixinguinha, João da Baiana e Donga. Também aprofundei relações com o Candeia, com quem fiz duas músicas. Depois, o Baden Powell foi a Berlim em 72, ficou lá em casa e, nesse período, fizemos três composições. A 3ª edição brasileira de “Nas profundas do inferno” é dedicada a várias pessoas, entre elas três grandes amigos que não pude encontrar quando voltei do exílio, pois tinham morrido no ano anterior: Candeia, Ismael e Otto Maria Carpeaux.

ABI OnlineVocê nunca deixou de atuar junto aos jovens. Como foi dar aula de Jornalismo na Uerj?
Poerner — Uma experiência muito boa, da qual lembro com saudades. Mas, depois, como já passava dos 40 anos de serviço ativo e queria me dedicar mais à literatura, achei melhor me aposentar. Além disso, nessa minha atividade, recebo muitos convites para viajar, e é muito chato quando o professor falta à aula.

ABI OnlineVocê dá muitas palestras pelas universidades do País. Que temas costuma abordar?
Poerner — Geralmente os relacionados à participação política da juventude. Este ano, por exemplo, muitas palestras foram relacionadas ao 40º aniversário de 1968, quando a velha ordem mundial sofreu um tsunami, especialmente na área política e social. Desde que voltei ao Brasil, procuro participar ativamente de tudo. Teve gente que estranhou eu querer viver “num lugar onde tudo é incerto”. Mas é aqui o meu País, é aqui que tudo me interessa mais.

ABI OnlineQual é a sua visão dos jovens de hoje? 

Poerner — Há mais individualismo e pragmatismo, mas vejo neles o mesmo interesse em mudar o mundo. Ano passado, fui ao Congresso de 70 anos da UNE, em Brasília, e estavam lá uns sete mil estudantes dos mais variados pontos do País. Eles dormiam no chão, tinham viajado em condições desconfortáveis, ou seja, tinham interesse em participar. E muitos conheciam “O poder jovem”, eu era abordado constantemente. Há quem tenha opinião desfavorável sobre os estudantes de hoje, achando que jovem tem que ser, necessariamente, contra. Mas por que, se agora há um governo que dialoga com ele? Aí, dizem que a UNE é chapa-branca. Não concordo com isso. No próprio nascimento do movimento estudantil, em pleno 1937, a UNE começou se relacionando muito bem com o Presidente Getúlio Vargas, que tinha aquela visão da sociedade organizada por blocos de interesse — quer dizer, a criação da entidade se ajustava ao seu pensamento. Logo vieram os problemas, a UNE se voltou contra o Estado Novo e perdeu um estudante em Pernambuco, Demócrito de Souza Filho.

Quando comecei a estudar marxismo, aprendi uma coisa básica: tudo está em permanente transformação. E se a realidade política e histórica muda, seria impossível os estudantes continuarem os mesmos. Eles podem estar menos utópicos e coletivistas, mas esta é uma tendência mundial — a meu ver, gerada pelo próprio sistema capitalista, que ainda não vai deixar de existir com essa crise financeira global, mas, certamente, vai ter que mudar.

ABI OnlineQuais são seus próximos projetos?
Poerner — No ano passado, o amigo Michel Misse, escritor e Diretor do Departamento de Sociologia da UFRJ, se dispôs a iniciar a gravação das minhas memórias. Já temos mais de 30 horas gravadas, mas sempre acontecem coisas mais urgentes: entrevistas, artigos, palestra na Bahia, a revisão da segunda edição do livro “Leme — Viagem ao fundo da noite”… Mas espero voltar às memórias, que não será um relato linear, mas episódico. O problema é que nunca fui daqueles intelectuais reclusos e distantes. Gosto do contato com gente de todas as áreas, do samba, do futebol, do candomblé, do movimento negro, da cultura popular. E, sempre que convidado, tenho o maior prazer em participar e compartilhar experiências e conhecimentos.