Entrevista – Arthur Dapieve


06/02/2006


Confiança na nobreza da profissão

Solange Noronha
10/02/2006

 

Seu nome é associado geralmente à música — e mais ainda ao rock. Afinal, foi este o tema de seus primeiros textos na imprensa (no Jornal do Brasil) e de seus primeiros livros (“BRock — O rock brasileiro dos anos 80” e “Renato Russo — O trovador solitário”) — e continua sendo este o tema da coluna semanal que assina no site NoMínimo. Quem acompanha sua carreira, no entanto, sabe que o carioca Arthur Dapieve, 42 anos, vai muito além.

No Globo, passou por diversas editorias e mantém no Segundo Caderno uma coluna em que os assuntos são os mais variados, podendo ir da política ao futebol — incluindo, é claro, a música. Na literatura, estreou finalmente no romance — idéia acalentada há mais de 20 anos — prestando homenagem a Cartola no título (“De cada amor tu herdarás só o cinismo”), depois de passar pelo humor (“Manual do mané”). E é com muito bom humor também que apresenta com Marcelo Madureira o quadro “Sem controle” no canal por assinatura GNT. O mestrado que está concluindo, porém, gira em torno de coisa muito séria e é com seriedade também que ele encara a nobre profissão de jornalista, conceito que faz questão de passar a seus alunos na PUC-Rio.

ABI OnlineVocê está concluindo mestrado. Dá para contar um pouco a respeito? Qual é o tema da sua  tese?
Arthur Dapieve — Falta defender a dissertação diante da banca, no começo de março. Meu tema é o modo como a imprensa trata o suicídio — quando trata, claro. Ela tende, primeiramente, a omiti-lo e, se for inevitável publicá-lo, dada a importância do personagem ou o transtorno que seu gesto causa no trânsito, por exemplo, usa eufemismos, desvia o assunto, tenta desqualificar a sanidade mental do suicida. Como jornalista, sempre me pareceu curioso que fosse assim. Como mestrando, descobri que não é um procedimento exclusivo da imprensa, mas se inscreve num velho temor de que o suicídio possa ser metaforicamente contagioso. 

ABI OnlineVocê se formou, faz mestrado e dá aulas na PUC-Rio. Do seu tempo de estudante para o tempo de professor, o que mudou nos cursos de Jornalismo brasileiros?
Dapieve — Como ex-aluno, mestrando e professor da mesma PUC, minhas impressões sobre os outros são isso: nada mais que impressões. Lá, a principal mudança foi a explosão da tecnologia, o que levou o departamento a se modernizar. Quando estudei, não usávamos, nem na faculdade, nem nas redações, computador. Era máquina de escrever mesmo. Fotografia, só em filme. Vídeo? O que era vídeo? Mas a boa formação humanística permanece a mesma. 

ABI OnlineQual é sua cadeira na PUC e o que você procura, essencialmente, passar para os seus alunos sobre o trabalho e a carreira?
Dapieve — Minha cadeira se chama Técnica de Redação em Jornalismo Gráfico. Ensino como escrever para jornais, revistas e sites. Explico que um bom texto é a base de toda atividade jornalística, mesmo aquela desenvolvida na TV ou no rádio. Porque quem escreve bem, pensa e lê bem. Isto é essencial. Então, fazemos exercícios em sala todas as semanas. Levo para casa, corrijo e, na aula seguinte, eles já têm o que fizeram comentado, individualmente. Na aula, coletivamente, discutimos os erros mais comuns, chamo a atenção para cacoetes, para o significado exato ou mutante das palavras etc. Também alerto contra qualquer tipo de erro, porque o erro corrói o texto e mata a credibilidade. É dela que vivemos. 

ABI OnlineFalando em carreira, as aulas entraram na sua vida antes dos jornais. Depois vieram JB, Veja Rio, Globo, NO., NoMínimo em cargos variados, sempre com a música em primeiro lugar. Foi uma coincidência ou uma preferência?
Dapieve — Começou como uma coincidência. Se eu tivesse entrado no jornalismo pelo esporte, estaria lá até hoje, feliz da vida. Aliás, comecei a colaborar com o JB fazendo resenhas de livros, não de discos. Continuou como uma preferência pela música, que aprimorei com fins profissionais. Mas, neste tempo, na redação que o leitor não vê, já fiz outras coisas. No Globo, editei os artigos por um ano e meio, fui editor de Política por dez meses, editei o suplemento O Globo 2000, com a retrospectiva do século XX, por dois anos… Ótimo que tenha sido assim. Ficar sempre inteiramente na mesma área pode ser entediante. 

ABI OnlineOs livros também começaram com temas musicais e viés jornalístico (um, pelo menos, é reunião de textos publicados em sua coluna no Globo). Como é para você este processo criativo, até mesmo para selecionar as crônicas do jornal que merecem destaque e longevidade?
Dapieve — Os livros começaram como um reflexo da minha atividade jornalística mais visível, a música. Foram desdobramentos dela, na verdade. Aproveitei muito do que apurei como repórter para “BRock — O rock brasileiro dos anos 80” ou “Renato Russo — O trovador solitário”, por exemplo. No caso de “Miúdos metafísicos”, seleta de colunas entre 1993 e 1999, a escolha se deu meio a meio: parte os textos que eu mais gostava e parte os textos que os leitores mais pediam. É curioso que raramente ambas as coisas coincidem no mesmo texto. 

ABI OnlineE a estréia no romance, como aconteceu? Você “mudou de gênero” até no título, tirado de Cartola.
Dapieve — Quando entrei numa faculdade, entrei não por vocação jornalística. O que eu queria era escrever romances. Tanto que, no então vestibular unificado, eu me inscrevi foi em Letras. Na PUC é que eu me inscrevi em Comunicação. A vida fez com que eu demorasse quase duas décadas para retomar o plano original, publicando um romance. Um romance, aliás, que em linhas gerais já estava em gestação há quase 20 anos! Este período nas redações, porém, foi muito importante para eu exercitar a escrita, obter um estilo, perceber por onde seguir… Quanto ao título, “De cada amor tu herdarás só o cinismo”, ele revela uma das minhas grandes admirações, por Cartola. Embora tenha escrito majoritariamente sobre rock, sempre curti muito as coisas dele, do Paulinho da Viola, do Candeia, do Nelson Cavaquinho… Ou Bach, Mahler, Miles Davies e Bill Evans.

ABI OnlineComo foi conciliar livro, aulas, mestrado, colunas…? Fazer uma obra de ficção deve ser muito mais trabalhoso.
Dapieve — Sinceridade? Foi terrível. “Foi” porque, tendo posto o ponto final provisório no mestrado, neste momento estou me achando um vadio, apesar de continuar trabalhando em todo o resto. E foi terrível não apenas porque uma dissertação ou um romance sejam trabalhosos — e são —, mas porque eles têm muito pouco em comum. O mesmo se dá com TV e colunas, por exemplo. Ou entre isso e as aulas. Ao menos de tédio eu não morro… 

ABI OnlineIsto é verdade, pois você atua em vários mercados e segmentos — do acadêmico e literário aos veículos TV, jornal e site. Como os vê hoje, especialmente levando em conta a tão falada ameaça da imprensa pela internet?
Dapieve — Não há ameaça alguma. Cada vez que surge um novo meio de comunicação, o que há é uma reorientação dos já existentes, de modo a explorar melhor seus pontos fortes, suas características essenciais. Quando o rádio surgiu, achava-se que o jornal ia acabar… Quando a TV surgiu, achava-se que o rádio ia acabar… Que nada. Cada meio possibilita um tipo de abordagem, um tipo de acesso, uns mais rápidos, outros mais profundos. E a boa formação educacional ajuda a entender e a usufruir isso. 

ABI OnlineComo vê a exigência de diploma para jornalistas? O que resolve e o que fica faltando apesar da lei?
Dapieve — Sou contra a exigência de diploma. Conheço grandes jornalistas, experientes e não tão experientes, formados em outra coisa, Sociologia ou Biologia Marinha. Exigir o diploma deles teria nos privado dos seus textos, do seu talento. Além disso, um diploma não é garantia de nada, de nenhuma aptidão para a profissão, sobretudo dada a proliferação de cursos mercenários de Jornalismo. Mesmo sem esta exigência, porém, é claro que as redações serão formadas majoritariamente por quem tinha a aptidão desde sempre e se dedicou a ela nas faculdades sérias, diplomando-se em Jornalismo. A lei, me parece, era apenas mais uma tentativa de enquadramento da classe durante o regime militar.

ABI OnlineDe um modo geral, como vê o nível dos cursos de Jornalismo no Brasil?
Dapieve — Vale aqui a ressalva da resposta anterior. Em visitas a outras faculdades, vejo as públicas com bons corpos docente e discente, mas péssimas instalações. E algumas privadas com ótimas instalações, corpo docente se aprimorando, até por exigência do MEC, mas alunos desinteressados em realmente aprender. Diferentemente do que pensam muitos alunos — estimulados, é verdade, por donos de universidade que pensam assim —, o aprendizado não é uma mercadoria, entregue embalada para presente ao fim de quatro anos, desde que se pague a mensalidade, claro. Aprendizado exige compromisso, entrega, esforço, interesse.

ABI OnlineAs qualidades exigidas do jornalista são também as do cronista ou colunista? Afinal, você escreve sobre música no site NoMínimo, mas no Globo sua coluna vai de filosofia e política a futebol, cinema, TV — e música também, claro. O quanto é verdadeira a história de que o jornalista sabe um pouco de tudo e, no fundo, não sabe nada de coisa alguma?
Dapieve — Não, as qualidades exigidas não são as mesmas. Mais que outros colaboradores do jornal, o cronista/colunista está liberado de exigências ou de apego a temas. Quando cheguei ao Globo como subeditor, vindo da Veja Rio, comecei escrevendo basicamente sobre o que já havia escrito no JB: música, cinema e literatura. Quando me tornei colunista, levei estes temas e acrescentei outros, como filosofia, história, futebol…. Concordo que o jornalista sabe um pouco de tudo, mas ele também deve, cada vez mais, saber muito de uma determinada coisa — no meu caso, esta coisa é a música.

ABI OnlineAutocrítica é fundamental no trabalho do cronista ou colunista?
Dapieve — Sim. Se não, com o nome no alto do texto, antes até do título, ele corre o risco de se perder numa tremenda egotrip, que não interessa a ninguém, além dele mesmo e do seu círculo íntimo. O leitor não merece ser excluído, nunca.

ABI OnlineComo nasceram o quadro “Sem controle” — do programa “Armazém 41”, do GNT — e a parceria com o Marcelo Madureira?
Dapieve — Foi uma idéia do primeiro diretor do programa, Pablo Pessanha. Ele nos conhecia (tinha sido meu aluno na PUC em meados dos anos 80) e já tinha presenciado, em festas, papos idênticos aos que vão ao ar na TV. Idênticos, não: bem mais pesados! O Marcelo, eu conheço desde que fui editor responsável pelo Segundo Caderno do Globo, com o qual ele e o Hubert Aranha colaboram escrevendo o Agamenon Mendes Pedreira. Somos amigos há mais de dez anos. O quadro passa uma impressão de entrosamento e espontaneidade porque é precisamente assim. Somos amigos e não há roteiro.

ABI OnlineO Marcelo é engenheiro de formação e tornou-se humorista, tem um jeitão gaiato. Você é jornalista com fama de tímido. Como funciona essa mistura? Você diria que há algo de jornalístico no programa ou ali só aflora sua veia humorística, exposta também em “Manual do mané” (co-autoria com Sérgio Rodrigues e Gustavo Poli)?
Dapieve — Funciona, né? Às vezes, a gente troca: o Marcelo se torna o jornalista, cheio de informações, e eu o humorista, cheio de piadas. Acho, na verdade, que eu sempre fiz piadas, em mesas de botequim ou redações, a diferença é que agora me profissionalizei… No livro, com o Sérgio e o Poli, e na TV, com o Marcelo.

ABI OnlineRepercutem de alguma forma sobre você declarações irreverentes mais radicais do Marcelo? Colegas jornalistas e intelectuais mais conservadores fazem patrulha ideológica?
Dapieve — Patrulha, não, ao menos não ainda. Acho que os colegas sabem separar quem disse o quê, a gente vive discordando e discutindo. O espectador comum, este sim, às vezes confunde quem disse o quê e cobra correção política dos dois. Bem, tudo o que tanto eu quanto o Marcelo não pretendemos ser, não só na TV, é politicamente corretos.

ABI OnlineE o veículo? Já tinha intimidade com as câmeras da TV?
Dapieve — Já tinha dado um número razoável de entrevistas e depoimentos para a TV, sem maiores problemas, em parte porque dar aula ajudou a quebrar a minha timidez essencial.

 Dapieve, Miguel Pereira e Jesús Hortal

ABI OnlineIa falar sobre isso, de timidez não combinar com turmas cheias. E você ainda é constantemente chamado para dar palestras. Quais são os temas mais comuns?
Dapieve — Falo basicamente sobre jornalismo cultural, música ou, menos freqüentemente, história da Segunda Guerra e política internacional. Por achar que tenho domínio do que falo, nem penso muito se as platéias têm dez, 20 ou 200 pessoas. Abro a boca e falo, simplesmente. Frio na barriga só dá antes ou depois…

ABI OnlineNas palestras, o contato com estudantes de Jornalismo também deve ser constante. Qual o principal interesse que você nota neles? Há muita diferença entre os alunos de hoje e os de 20 anos atrás?
Dapieve — Eles têm muita curiosidade sobre jornalismo cultural. Muitos sonham escrever nos chamados segundos cadernos. Ótimo. Mas eu tento mostrar a eles que é um trabalho como qualquer outro, que isso não os torna artistas ou amigos dos artistas e que o lazer periga se confundir perigosamente com o trabalho. Cada disco que se ouve, cada filme a que se assiste, tudo, tudo pode virar pauta. Ao mesmo tempo, enfatizo que o conhecimento específico sobre as diversas formas de arte deve nascer até antes da faculdade de comunicação, de um hobby, por exemplo. A principal diferença que noto diz respeito às revoluções tecnológicas. Os alunos de hoje têm mais informação do que os de 20 anos atrás, mas elas são fragmentadas, confusas. O professor precisa estabelecer conexões entre elas, limpar um pouco a área, organizar as cabecinhas. 

Sérgio Rodrigues e Dapieve

ABI OnlineE como os estudantes da área e recém-formados estão percebendo o mercado jornalístico no Brasil?
Dapieve — Tento animá-los. Embora hoje tenhamos menos jornais impressos, temos sites, temos mais canais de TV abertos e pagos, mais rádios. Tanto há mais postos de trabalho quanto há mais possibilidades dentro do próprio mercado. Quando me formei, na metade de 1985, apenas uma pessoa tinha um estágio bem encaminhado na área de Jornalismo. Hoje, a cada formatura da qual participo, quase todos os alunos têm um caminho diante dos olhos. Estão estagiando ou trabalhando na área. Ou nas áreas próximas. O jornalista é multiuso.

ABI OnlineHá alguma mensagem especial que você dê em suas aulas e palestras aos futuros jornalistas brasileiros?
Dapieve — Adéquo a mensagem a cada turma ou momento. Atualmente, me preocupo que eles não considerem a própria profissão uma forma de crime, como os políticos flagrados com as calças na mão dizem e repetem. A nossa profissão é nobre — o mesmo não pode se dizer do propósito deles. Somos importantes exatamente para vigiar e alertar os leitores sobre o desvio do dinheiro público, sobre o exercício do poder em proveito próprio. Uma imprensa livre e independente dos Três Poderes é fundamental para a manutenção da democracia e da ética.